Idade

Texto de António Barros sobre o CORES (colectivo surgido nos anos setenta no âmbito da comunidade artística Círculo de Artes Plásticas – unidade da Academia de Coimbra). Contexto do Obgesto ‘Idade de Coimbra’, de 2010. [Texto. Ligação]


“IDADE DE COIMBRA” surge na contextualidade dos obgestos inscritos nos motores de reflexão, como uma convocatória ao olhar sobre a “passagem do tempo”. Esse passar dos dias numa cidade de um desenho comportamental singular a que Nigel Rolfe chamava “slow life” [Projectos & Progestos].

Nesta busca incessante, onde cada um é desafiado a procurar a sua extensão, um prolongamento do corpo para a escrita, o lápis, o seu lápis, encontra antes do traço a sua cor. Somatório ou ausência de cor. A cidade sublima estas preOcupações. A cidade disponibiliza-se e convoca esse estar letárgico. Essa condição para que cada um se procure e (re)encontre. Defina a sua idade nessa “Idade de Coimbra”. Uma comunidade artística volante circunscrita a uma paleta de tintas de cores diversas surgiu na cidade. E procurou Idade. Uma comunidade que resultou nominalmente como grupo CORES. Hoje uma das memórias na memória de obgesto. De idade. Da “Idade de Coimbra”.


C O R E S, o Grupo. Do genoma à preparação do ‘movimento’


O Grupo CORES experiencial e actuante conjuga-se nos anos setenta como um impulsionador de novas linguagens, ou mesmo expressões como: “redesenhar o gesto”.

A “escultura social” enunciada nas plurais operações urbanas encontradas no comportamento grupal do CORES, formulava uma topografia da comunidade do lugar comprometida com o devir das ideias. Ideias outras. A seu tempo.

Um desenho verticalmente identitário. Ético. Pretensamente poÉtico. Sempre numa convulsiva e recidivante busca de sentido. Do seu desenho. “Desenho do gesto” alvorante e a marcar, então, uma era nascente.

Portando narrativas particulares, onde surgiam sequências previamente estruturadas, esse prolixo retrato do tempo-lugar narrado pelo CORES, resultava da captação dos formatos do estar de uma sociedade potencialmente emancipativa, mas sem códigos sólidos. Apenas sóLidos.

Enunciava-se assim a formulação dos gestos. Gestos encontrados. Os de alguém que buscava experienciação (e uma outra gramaticalidade para o dizer). Todo um dizer que, nessa territorialidade, convocava o corpo condicionado para seu suporte comunicacional. Mas aquele corpo comprometido com o signo e sua requalificação. Uma reedição dos gestos. Outros gestos. Então aqui coreograficamente compostos. Pautizados sim.

Os testemunhos iconográficos, e as diferentes imagens editadas, enunciam o existir de composições de elementos diversos e objectos no chão desenhando o ‘comprometido’ manifesto.

A ritualização exorcizava (nas circulantes deambulações pelo lugar social), os vícios da máscara deixada pela massificação. A máscara (irre)versível, como a colhida à denúncia pessoana: a [d]a máscara:” quando quis tirar a máscara, estava pregada à cara”. E ela – a máscara -, caminhante nas suas putativas obstinações, sempre, procurando gerar desenho norteador. Anunciador do quanto urgia, então, fazer soltar novas poliédricas ágoras.

Na moldura do CORES havia, nessa época e navegação, uma anulação da visibilidade do corpo sensorial. Teríamos agora um corpo-símbolo. Uma negação de proxémica gregária. Um cortejo icónico da fragmentação. A de um tecido social proliferativo de quereres antagonizantes. Um cenário explosivo e niilista mas timidamente desafiador de novas condições semânticas. E assim, toda essa performatividade desafiava um comportamento contido. Espasmódico. “Geometrizante”. Procurando so(l)tura capaz. Uma escrita de caminho. Andando. Sempre na solidez do chão-lugar-suporte. Sobre o chão. Na terra.

Situações únicas, sem formulações identitariamente repetidas, afirmavam uma não recorrência à teatralização dos actos, envolvências coreográficas ou circences. Procurava antes, denunciar como toda a “oratória” era pré-Ocupante. Que todo um trabalho de (re)Invenção (sem precedentes) estava a querer surgir no devir de uma outra, mas específica, linguagem plástica. Tudo parecia querer ser solene. Merecedor. Sublime.

Nesta ‘redenção’ havia um compromisso dos objectos-palavras-gestos. Mas de vocação catártica e acção sinérgica. Um constante desafio. Um ancorador de ru(ptur)as.

A anulação do rosto. A desmontagem de uma fulanização que resultaria (des)penalizadora das causas. Ou mesmo a banalização massificante das ideias, essas moldadas pela despersonalização, não era uma atitude constante. O rosto autoral surgia também. E desafiador. Sempre a questionar. Legendado. De traje múltiplo. Mas sempre sinóptico.

Havia uma arquitectura primeira. Sinalizadora. A pautização surgia na dominante das situa(c)ções pré-desenhadas.

Uma das acções teve, contudo, uma oportunidade de busca dos valores e identidade particular de cada elemento. Um colegial somatório de sensações convidando à enunciação de atitudes privadas. Mas havia um mapa mental. Uma geografia do lugar comprometido como objecto a merecer aturada observação direccionável.

Os diferentes módulos performativos eram polimórficos. Alguns desafiavam o potencial do ‘acaso’ e até mesmo a improvisação dos ‘actos’. Um convite à enunciação do ser que se quer ver não liberto mas, libertado.

Todo um trabalho consequente à consciencialização do lugar e suas marcas. Uma identidade própria, mas agora partilhada numa plataforma colegial com uma transversal circulação de vontades. O outro lado do ser a querer, do seu ser, uma irreverente bilateralidade?

Procurando sempre um reconhecimento prévio do espaço suporte para a acção, o colectivo tinha um conhecimento do ‘lugar-alvo’.

Da malha fundamental do ‘suporte’ emergia uma leitura primeira do que era a sua condição mórfica, como da sua potencial população circulante. Mas esta constelação de possibilidades não era determinante. Havia um assumido sentido de risco. Uma entrega convictamente exploratória.

Com uma plural constelação de atitudes, sem obrigar a um modelo prévio único, nem toda a operatividade era definida pelo círculo-ágora. Mas quando esse formato de arena era o eleito, cada um geria autonomamente o seu programa. Sem subordinação. Com um alinhamento antes colegialmente definido.

A acção comunicacional surgia entre cada um e o público – aderente ou em regeição; em aplauso ou negação -, mas nunca numa interacção entre os diferentes elementos da ‘paleta’. “Cores sólidas”. Sem possibilidade de mistura.

Perante a comunidade em público, que não era lida como meros “espectadores” mas como potenciais elementos participativos, a autonomia expositiva era assumida como – numa eleição da comunicação – conduzida pela expressão dominantemente visual. Das artes plásticas. Sem contacto entre os elementos.

A interacção com o público resultava, porém, meramente operativa para a auscultação de potencial cumplicidade. Surgiam assim – nas acções do CORES -, como formulações que resultavam comungantes, sediadas na dominante das vezes, na partilha com o utente de objectos de contemplação gerados na convulsiva performatividade latente.

Sem formular pretensamente diferentes “saídas”, cada um conhecia a arquitectura da sua operação exercendo a sua construção com consciência. A conjugação dos verbos de uma gramática prévia. Sempre exercendo com modo de exposição em paralelo, e nunca consequente ao outro enquanto condutor. Uma comungada nave norteada por uma vontade pré-definida. Assumida. Em sintonia.

Quando trabalhadas as plataformas das palavras elas “não se respondiam”. Eram as acções fundamentalmente visuais. Sem a troca das palavras ditas. Sem verbalizações partilhadas. Meras frases avulsas “singularmente” emitidas surgiam. Editadas para um auditório vago. Para todo um potencial sintonizador.

Como modo de um fazer reguladar das narrativas do comportamento (potencialmente) performativo, uma conquista do espaço surgia a marcar o território. Expositiva. Vivencial. Desenhando uma não moldura onde os diferentes potenciais utentes eram ganhos para a causa como fruidores de leituras plurais.

De modo súbtil, havia um cronograma prévio para a duração das acções. Gramática onde o tempo encomendado à saudação partilhada, era definido pela psicologia que cada causa solicitava. Tempos curtos. Convulsivos. Numa diagramação de sonho à procura de acordar. Tempos de percepção e desafio.

Assim, as acções vestiam diferentes condições e tempos. Contemplavam momentos diurnos ou nocturnos. Os movimentos eram formulados em tempos reduzidos. A movimentação era desenhada a partir dos ritmos naturais que as vivenciações do quotidiano ditavam. Sem teatralizar. Toda uma apresentação sem representação. Arte performativa.

Numa plasticidade construtiva, e recorrendo a diferentes objectos como “varas”, o mastro (antes bordão para a deslocação na marcha), resultava suporte de sustentação do cartaz – agora sinal de aclamação e aplauso. Operacional. Sinalizador. Sinóptico mesmo. Nunca como arma ou artifício vazio. Nunca artesanal, mas conceptualizante. Mas havia também uma recorrência ao próprio corpo ‘vestido’. Um exercício de procura do potencial e da consciência identitária estava latente. Uma busca de novas linguagens era um propósito constante. Aquele que resultasse enriquecedor do dizer em arte, onde breves frases, legendando vontades, inscreviam o desenho de algumas atitudes, mas não propriamente as da musicalização.

Explorava o CORES, fundamentalmente, uma plasticidade do comportamento – uma “escultura social” no sentido beuysiano.

Procurando activar o papel comunicacional, o pregão era um modelo condutor da aplicação da voz. A anunciação aclamente e o ‘chamamento’ surgiam sem uma exaltação excessiva. Era procurada alguma nobreza de resultado nestes breves textos que, aqui, polulavam em diferentes momentos sinalizados da operação. E então a “cor” era dita. Dizia-se numa composição urbana recorrendo ao corpo. As acções em arena formulando um desenho disciplinado que os próprios utentes (operativos ou meros observadores) consolidavam de modo sereno. A ritualização revitalizava hábitos de socialização em que a cidadania se fazia comportar sem excessos repreensíveis.

Nunca existindo nas intervenções “acólitos” previamente designados, fabricavam-se “esculturas sociais” sem público programado, ou com consequência prevista. Era todo um campo aberto perante o desconhecido o que aí se pretendia explorar. Um pretenso acto de diagnóstico e potencial socialização.

Disponibilidade.

Para finalizar as acções analisava-se a intervenção realizada.Todo o processo tinha (no contexto identitário em que se fazia hospedar) um objectivo formativo, convocando aí uma avaliação colegial e autoscópica.

Sem definir a sua cessação, o CORES assumiu-se no arco temporal em que o Grupo fez gerar as suas acções, e conforme o que o CAPC [Círculo de Artes Plásticas de Coimbra] proporcionou no seu pluridisciplinar percurso programático. Mas a história contributiva do CAPC na arte contemporânea não se esgota no CORES, e este modo grupal, tão pouco esgota a activdade operada pelo GICAPC [Grupo de Intervenção do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra]. Aí, os diferentes elementos do CORES seguiram múltiplos caminhos diversos. Pluridisciplinares opções e oportunidades estavam assim criadas a partir desse tempo genomático. Tudo porque no corpo do CORES não havia um entendimento obrigatoriamente único, mas salutarmente diverso.

Entenda-se a ‘conflitualidade’, essa latente em todas as conjugações, como uma catarse de emancipação. Toda uma condição oficinal em que novos desafios podiam ser formulados como a transição de cores e identidades. Tolerância. Abertura a novas e outras opções. Razoabilidade. Como mesmo uma desfulanização. Exorcismo. Diferenciação. A vontade grupal condutora. O querer individual dava lugar ao do colectivo. Democratização. O ser e os seus limites.

Sendo o CORES um colectivo eclético, a cumplicidade e forma como cada elemento assimilava e vivenciava o programa não era naturalmente igual.

Azevedo, sem mordomias, foi um singular e empenhado defensor desta tipologia de arte laboratorialmente ensaiada no CAPC dos anos setenta. Saldanha era uma alma entusiática e lúdica da actividade grupal. Hospitaleira. Contaminante. Sonhadora. Uma catarse fundamental das operações. Loff, interveniente constante e lúcida, formulava novos ensaios semânticos. Ganhava para os textos e os gestos a sua condição hermenêutica. Nada era gratuito, mas gracioso. Buscando eficácia. Sempre a fazer surgir uma epistemologia para o processo em que o conhecimento era aqui procurado. Cada um trazia o seu saber e experiência pluridisciplinar. Uma arte da vida para uma vida em arte. Partilhada. Fluxista. Toda uma “contaminação” transversal. Proliferativa. Sem legenda de propriedade nem referente autoral de quem gerou a ideia ou vontade. O autor era o Círculo. O ente galvanizador. O corpo único. Colegial. E disso, dessa assinatura de então, obriga fazer jus.


António Barros | Coimbra, junho 2012 – janeiro 2014


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