Texto de António Barros sobre os seus objectos, em diálogo com o obgesto ‘Ser_vil’. [Texto. Ligação]
Sobre os meus objectos, e na contextualidade implícita destes no enunciado como “arte do objecto”, cumpre-me sinalizar que esta consciência de uma objectualidade singular do eu e seus envolventes convoca o “não eu” e as suas comungantes procuras.
Assim, formulo aqui uma sumária sinalização para a importância da elaboração de uma auto-identidade (que o meu trabalho desafia de uma forma convergente com o conhecimento de si) mas que advém, com total naturalidade, da razão da criatividade como construção da confiança. De uma existência humana segura, advogada pela “confiança criativa” enunciada por Giddens.
É também essa confiança quem nos elabora por implícito reflexo os medos. O medo da perda, e até o do perder da própria vida. E é essa, também, a condição e o propósito do meu objecto de obra resultar, no que lhe é arte, como genoma da esculturalidade consciente.
É assim, na apreciação das rotinas adquiridas (onde o convulsivo e o minimal e até o repetitivo se elaboram), que surgiu todo um motor condutor de uma necessidade da observação operacional, tendo então me obrigado a zelar pela construção de um espaço laboratorial no Círculo (CAPC), e que resultou sendo um objecto activo no diagnóstico de uma arte do comportamento como o foi a Oficina de Interacção Criativa, seguida do programa Artitude:01.
Em “O self: Segurança Ontológica e Ansiedade Existêncial”, parte integrante do estudo “Modernidade e Identidade Pessoal” de Anthony Giddens, o autor, de uma forma solidamente fundamentada, formula no texto referido um entendimento da singular importância das rotinas adquiridas, assim como das formas de domínio a elas associadas e como elas são, nos primeiros tempos da vida dos indivíduos, muito mais do que apenas modos de ajustamento a um mundo pré-dado de pessoas e objectos. Estas realidades, analisadas por Giddens, demonstram-se, segundo este, assim constitutivas de uma aceitação emocional da realidade do “mundo externo” sem a qual é impossível uma existência humana segura. E essa aceitação é, em si, a origem da auto-identidade através da aprendizagem do que é não-eu.
Giddens inicia a análise com uma abordagem da imagem da auto-identidade, e de como ela deveria assumir um “modelo de estratificação”, conceito que convida a uma leitura atenta de anteriores estudos do autor como “Central Problems in Social Theory (1979) e “The Constitution of Society (Cambridge: Polity Press,1984).
Enunciando a importância da segurança ontológica e confiança, Giddens não ignora a importância das “experiências” de Garfinkel com a linguagem corrente, sabendo que elas se ligam às características elementares da existência humana, e de como a consciência prática resulta tão fortemente como a âncora cognitiva e emotiva dos sentimentos de segurança ontológica.
Mas o leitor da obra de Giddens não é menos despertado para a importância dos contributos de Donald W. Winnicott, e para o que Erikson definiu como “confiança básica”, no contexto do “espaço potencial” e dos “objectos transitórios” de D.W.W. (para alguns autores definidos como “objectos transitivos”), como factores de real importância numa disciplina de rotina.
Se para Giddens o estabelecimento de confiança básica é a condição para a elaboração da auto-identidade, também a criatividade está ligada à confiança. A confiança em si pela sua natureza é em certo sentido criativa, porque implica um compromisso que é um “salto para o desconhecido”, mas não deixa de nos alertar o autor para a consciência de que confiar obriga também encarar a possibilidade de perda, perda da confiança básica, e logo daí, o surgir do medo da perda que é, em si, um gerador de esforço consequente.
Em suma, os ensinamentos de Giddens orientam-nos para a consciência de que um envolvimento criativo com os outros, e com o mundo-objecto, é quase de certeza um componente fundamental de satisfação psicológica e da descoberta de “significado moral”, ou seja: a noção de que a experiência da criatividade ‘como’ fenómeno de rotina é um adereço básico para um sentimento de valor pessoal, e logo para a saúde psicológica.
É este o propósito da arte essencial resolvida. A minha busca fundamental.
Teremos então aqui condição para fazer entender a minha actividade artística como agente de auto-conhecimento e de superação. Não de dimensão fágica, mas de vivenciação convocando o lugar.
Assim, partiremos de uma condição, a de que o processo criador “é uma emergência na acção de um novo produto relacional que provém da natureza única do indivíduo por um lado, e dos materiais, acontecimentos, pessoas ou circunstâncias da sua vida por outro” (Carl. R. Rogers).
Nesta razão a construção de um objecto criativo individual ou grupal, e conduzido no sentido da acção dinâmica, solicita uma coabitação interactiva na condição construtiva relacional – um singular compromisso do desempenho do corpo.
Definindo-se que cada pessoa é uma fonte de energia pela qual comunica e afere a personalidade, cada um expressa-se pelos seus movimentos, e se a sua expressão é livre e adequada a uma situação pretendida, ela experimenta um sentir de satisfação na líbertação da sua energia. Assim, o prazer estimula o organismo a aumentar a sua actividade metabólica, e é com o prazer ainda, nas actividades voluntárias da acção da vida, que se atinge um nível propiciatório da acção criadora. É neste saber que se atende que subjacente a cada desejo, sentimento, ou pensamento, haja um impulso a que Lowen definiu como um movimento energético emissor. Um impulso que pode resultar num olhar ou num gesto. Um movimento ou uma palavra – elementos potenciadores da composição no objecto em devir.
Progredindo na interacção criativa, e na gestão das suas buscas, estabelece-se o equilíbrio entre a energia pessoal e a energia contextual. Este é o estimulador do desenvolvimento da personalidade, e é na sua construção que o empenhamento metedológico para a actividade criativa se confere.
Conquistada esta condição, e a sua legítima resolução de comportamento, reúnem-se os meios para uma apropriação de novos ganhos da aprendizagem como fonte de prazer e, na exploração em nós, de um espaço potencial com valor criativo.
Winnicott criou a noção de ‘espaço potencial’ a partir dos seus estudos sobre o desenvolvimento da pessoa desde os seus dias primeiros. No jogo da relação mãe-filho, o bébé goza de um sentimento de omnipotência, dada a satisfação de necessidades que a mãe lhe contempla, e assim, ele sente-se fundido com ela como um ser único. Mas a evolução da criança obriga a separação levando-o a considerar a mãe como outro. Aí nasce a primeira consciência do outro, mas também do espaço que surge na distanciação entre ele e a mãe. É nesse espaço – denominado “espaço intermediário de ilusão”, ou espaço potencial -, que a criança irá recorrer ao seu próprio corpo, ou a objectos do exterior para preencher o vazio na falta da mãe. Esses objectos sobre os quais a criança investe com grande força afectiva, ganham um valor simbólico de substitutos da própria mãe.
A esses objectos Winnicott chamou de ‘objectos transitivos’, e estes, como os fenómenos transitivos, integram um ‘espaço de ilusão’ que está na base do início da experiência. A transitoriedade destes objectos, substitutos simbólicos da mãe, conduzem a que a criança mais tarde venha a abandoná-los logo que se encontre confiante, e adaptada a novos ambientes – na posse de novos ganhos. Contudo, esta ‘área intermediária de ilusão’ acompanha a criança ao longo do crescimento sendo rica de potencialidades, pois é a esse nível que o jogo, lúdico ou dramático, se passa. Assim, as aquisições fundamentais feitas neste período de desenvolvimento da criança vão conduzir a que esse espaço potencial persista com valor criativo no próprio adulto sob várias formas – fenómenos transitivos – como os mitos culturais, o trabalho criativo ou as próprias artes. Este espaço intermédio de ilusão não conduz contudo à perda do sentido de realidade, permitindo um retomar das tarefas obrigatórias e uma adaptação ao real, obrigando a novas procuras e ganhos num percurso evolutivo. Assim, no avanço do crescimento há perdas, e logo lutos a fazer, mas há também, e por excelência, novos investimentos que são igualmente fonte de prazer e reforço da identidade.
O ‘espaço potencial’, essa área criativa priviligeada do jogo, aqui jogo dramático, é um espaço de eleição da aprendizagem, espaço potencial, habitado por objectos e fenómenos transitivos, que podemos recordar no domínio da memória, mas sem nos tornarmos demasiado nostálgicos para não permitir regressões, e gerindo a devida resolução das suas perdas de modo a que não fiquem lacunas por preencher.
Assim, na construção da identidade, surge uma sucessão de perdas e ganhos que por uma questão de equilíbrio psíquico nos obriga a uma alternância entre o prazer e o desprazer, entre o real e o imaginário e a razão, porque tenha de existir por tudo isso, este ‘espaço potencial’, que nem é totalmente interno ou externo, mas sim, o verdadeiro ‘espaço criativo’.
Este espaço potencial, ou ‘espaço criativo de ilusão’, proporciona na construção da experiência criativa a exploração das linguagens do corpo, a não verbal – os sinais corporais -, a que Ray Birdwhhistell criou, para as definir, a Quinésica. Disciplina que estuda os aspectos comunicativos do comportamento adquirido e estruturado do corpo humano em movimento. Nesta experimentação quinestésica desenvolve-se então uma comunicação interpessoal particular através de pequenos gestos – os metassinais.
São assim múltiplas as situações e os instrumentos contributivos na comunicação criativa onde o corpo, é ele, um suporte priviligiado das afirmações estéticas, quer na exploração de si próprio, como na interacção com os materiais. Aqui, elegem-se materiais necessariamente pobres – retomados da própria natureza.
Assim, nesta exploração da relação do corpo com a matéria experimentam-se relações de tipo háptico, aquelas relativas à pele, ao tacto no seu conceito mais amplo, e em que o corpo é o principal intermediário deste tipo criador.
Surgem imagens libertas caracterizadas pela distorção, pela desproporção, ou até ao próprio exagero do desenho – o que o torna expressionista.
Todos estes elementos são contributivos do objecto criativo. Da realização da comunicação interpessoal na eleição da situação vivencial da arte. Essa integradora da vida como arte, e da arte como vida.
Assim se definiu o meu percurso (na apropriação dos objectos que se resolvem a partir da sua transitividade; quer das palavras libertadas), na consciência de que: Ler o poema – é esperar alguém desconhecido; Ser o poema – é como viver um dia perfeito.
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