Texto de Manuel Portela sobre o gerador textual implícito nos “homeóstatos” de José-Alberto Marques, os quais permitem visualizar o código genético da língua. [Texto. Imagens]
Este texto faz parte de Dossier de Homenagem a José-Alberto Marques. Leia outros textos e releituras em > Homeóstatos de José-Alberto Marques: Uma Homenagem pelo Arquivo Digital da PO.EX.
Escrever homeostaticamente é tentar chegar à fonte, impossível de tocar, da própria linguagem. É tentar chegar a esse momento articulatório em que o traço fonografémico institui o sistema de diferenças que, a partir de um conjunto limitado de elementos, origina a profusão de formas das línguas. Desse momento inicial, inscrito geneticamente nas áreas e circuitos cerebrais de onde emergem as línguas naturais humanas, e reinscrito nos sistemas de notação que as recodificam, só posso ter uma experiência simulada ao observar a infinita combinatória de sinais que sustém a cadeia da linguagem. A invenção da escrita e do alfabeto exteriorizaram a diferencialidade fonossemântica dos processos neuronais que sustentam o pensamento simbólico e as suas complexas cascatas de significação e ressignificação. Escrever é entregar-me à força gerativa e incontrolável desse código, submetendo a singularidade da experiência subjetiva aos seus mecanismos autopoiéticos e probabilísticos.
Ao transformarem uma sequência de palavras num gerador textual, os “homeóstatos” de José-Alberto Marques permitem visualizar o código genético da língua, com base numa amostra da produtividade gerativa do código de sinais que o alfabeto constitui. Esta possibilidade simulatória de capturar a replicação molecular e celular da língua depende ainda da intensificação da consciência do código alfabético materializado na máquina de escrever. Colocando nas mãos do escritor os sinais individualizados do alfabeto, o teclado oferece-lhe a experiência tátil e háptica da escrita como recombinação informacional de sinais (“neve: vento. alguém. teus pés. ombros. frio: cabelos de serpente”).
Imagem de Homeóstato 6, José-Alberto Marques, 1965, in Operação 1 (1967).
O monoespaçamento das letras na página, que me indica tratar-se da replicação das mesmas letras nas mesmas posições relativas em diferentes áreas da folha de papel, mostra-me que foi a partir da grelha cartesiana instituída pela mecânica funcional da máquina de escrever que o código alfabético se pôde tornar autorreflexivo. Os “homeóstatos” revelam a digitalidade computável da língua, através de uma representação diagramática que visualiza uma distribuição probabilística da ressequenciação das letras em novas palavras ou da sua reconstelação em novos ideogramas.
Esta analogia genética pode alargar-se aos mecanismos de replicação do ADN: a linha matriz (horizontal ou vertical) de cada “homeóstato” torna-se ela própria no genoma do poema, a partir do qual as diferentes unidades de inscrição-sentido podem ser geradas. As matrizes teriam portanto a função de regular o equilíbrio interno do poema enquanto sistema. Cada seccionamento de carateres e cada recombinação semântica ou visual resultante desse seccionamento representaria novas células de inscrição-sentido construídas com base no código original (“sem luz. a noite acontece. ventre escuro. sombra: neve. alguém: o teu grito”).
Imagem de Homeóstato 1, José-Alberto Marques, 1965, in Operação 1 (1967). Também publicado em Poesia Experimental 2 (1966); Antologia da Poesia Concreta em Portugal (1973); Antologia da Poesia Experimental Portuguesa Anos 60 – 80 (2004).
Ao leitor é dada a consciência material da palavra enquanto inscrição e do código que gera a palavra. A demonstração do alfabeto e da língua enquanto códigos não se limita a sublinhar a natureza da palavra como produto da agregação cibernética de sinais. É dada também ao leitor a consciência da leitura e do processo de articulação de sinais que a leitura constitui: juntar e separar letras, juntar e separar espaços em branco, otimizar o rácio entre redundância e ruído, isto é, processos que permitem tornar os elementos textuais em objetos de perceção e cognição capazes de ativar, a partir da notação gráfica, os múltiplos eixos e hierarquias de articulação da linguagem. Nesta relação dinâmica com a espacialização, num mesmo plano, do código e da mensagem, o sentido é experimentado como um processo de construção na superfície da página.
A combinatória permite encontrar palavras dentro de outras palavras ou sequências de palavras, fazendo-as derivar da sequência de carateres inicial, através de um processo de segmentação, transposição e reassociação, similar aos processos replicativos bioquímicos. Esta molecularização simulatória das unidades da linguagem torna possível visualizar a natureza homeostática de todo o sistema, cujo equilíbrio dinâmico resulta da relação entre o código e as suas múltiplas instanciações materiais. A coalescência temporária das letras em novas unidades semânticas ou visuais de sentido, que o leitor percebe (retrospetivamente) como estando microscopicamente aninhadas no código linear ou constelado, sugere também a sua natureza probabilística: certas combinações cristalizam sequências fonografémicas coincidentes com palavras, mas é possível perceber-se um campo combinatório mais vasto de sequências assémicas não cristalizadas como palavras. De modo semelhante, a perceção das constelações oscila entre a microapreensão letra a letra e a macroapreensão do padrão ideográfico. O sentido emerge como um certo número de possibilidades, linguística e visualmente realizadas a partir da infinitude gerativa do código.
Ao usar uma linha como matriz e código de todo o texto, explorando as permutações ou replicações consteladas de letras contidas nessa linha (“vermelhos teus sonhos de lume: liberdade quente: ossos”), os “homeóstatos” oferecem uma experiência radical da textualização do sentido, isto é, da produção a posteriori da subjetividade, a partir de um sistema de inscrições no qual a leitura tem também de se inscrever.
Imagem de Homeóstato 2, José-Alberto Marques, 1965, in Operação 1 (1967). Também publicado em Antologia da Poesia Concreta em Portugal (1973).
O texto produz-me como sujeito no ato de executar o seu programa. Ao invés de ser anterior à expressão, o sentido surge antes como um produto residual da própria expressão, excesso semântico imprevisto e exploratório, resultado quase acidental da recombinação de letras e da emergência de inscrições-sentido nessa recombinação. Por isso, este modo de construção me faz sentir o sentido, num loop metacognitivo que me permite perceber-me a ler e a inventar o sentido da escrita.
Esta intensificação da experiência do texto enquanto espaço de iteração e código de geração de sentido não deixa, no entanto, de referir a experiência subjetiva do mundo. Os campos semânticos introduzidos pelas dez linhas de código que controlaram as permutações e constelações contêm as referências necessárias à ancoragem experiencial do sentido, seja pelos campos semânticos das palavras (“sem luz. a noite acontece. ventre escuro. sombra: neve. alguém: o teu grito”), seja pela evocação mimética dos sons (“a secura da pedra /a voz misteriosa /reflecte /o grito lento”), seja ainda pela reconfiguração ideogramática das letras (“amor. tu. leve. braços sexo. teu nome. distância” e “nu. o homem vertical. válido”).
Imagem de Homeóstato A, José-Alberto Marques, 1993, in Imaginários de ruptura (2002).
Imagem de Homeóstato 7, José-Alberto Marques, 1965, in Operação 1 (1967).
Imagem de Homeóstato 8, José-Alberto Marques, 1965, in Operação 1 (1967). Também publicado em Antologia da Poesia Concreta em Portugal (1973); Antologia da Poesia Experimental Portuguesa Anos 60 – 80 (2004).
A tematização da experiência do amor sexual surge, de resto, nas três estratégias de representação – semântica, sonora e visual – e percorre vários textos. Os “homeóstatos” parecem assim procurar uma linguagem para a experiência do corpo e dos sentidos, evocando-a e simulando-a através das tensões gráficas, semânticas e sonoras do texto, como se na espacialização e na sonorização das letras da escrita pudesse ser capturada e emulada a autoconsciência do enlace sexual.
Na sua tripla lógica combinatória, gerativa e constelada, o equilíbrio homeostático pode ser entendido em dois níveis distintos: por um lado, como equilíbrio dinâmico entre o sistema do poema e o sistema da língua, que abre as permutações contidas no código letrístico do poema ao vasto sistema da língua, mostrando as possibilidades de circulação recursiva entre um e outro; por outro lado, como equilíbrio interno ao próprio sistema do poema, que controla a aleatoriedade de uma combinatória meramente fatorial das letras com um conjunto de restrições, que limitam a proliferação semiótica através de unidades de inscrição-sentido, semanticamente dependentes do campo de experiência evocado nas palavras da linha de código, ou por meio de constelações visuais que reorganizam as letras numa ordem ideogramática de figuração (ver Nota 1). Deste modo, o poema homeostático funciona como modelo textual da otimização da relação dinâmica entre experiência do sentido e sentido da experiência. É neste ponto de tensão entre código e texto que o motor da linguagem e a invenção do sentido se tornam, por instantes, observáveis.
Nota 1 – Tomando como base os 10 “homeóstatos” de José-Alberto Marques, o «gerador de homeóstatos», de Rui Torres e Nuno Ferreira, explicita a função codificadora da linha sequencial de texto em alguns dos “homeóstatos” originais (nºs 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 10), programando quer novas matrizes, quer novas permutações das letras contidas nessas matrizes. Esta versão programada formaliza o modelo textual do original, demonstrando a relação nele contida entre o motor textual e as instanciações textuais geradas pela recombinação dos seus caracteres em novas unidades de inscrição-sentido, isto é, a presença simultânea do texto-código e do texto gerado pelo código. Todavia, em cada novo homeóstato gerado, a seleção de carateres para formar novas palavras é feita a cada linha (e não com uma lógica sintática e semântica que seja independente da divisão de linhas e da mera formação permutativa de palavras), alterando quer o equilíbrio interno do poema, quer o equilíbrio entre o sistema do poema e o sistema da língua, a favor da aleatoriedade e da omnipresença do sistema linguístico.