Uma voz em estilhaços: o que fica? (a propósito de 5 homeóstatos de José Alberto Marques)

Texto de Maria do Carmo Castelo Branco de Sequeira sobre 5 homeóstatos de José Alberto Marques. [Texto. Imagens]


Este texto faz parte de Dossier de Homenagem a José-Alberto Marques. Leia outros textos e releituras em > Homeóstatos de José-Alberto Marques: Uma Homenagem pelo Arquivo Digital da PO.EX.


A. Comecemos, em tom de leitura primária, identificadora, por seguir 5 dos homeóstatos de José Alberto Marques, não arbitrariamente escolhidos, como iremos esclarecendo, mas tentando verificar, em paralelo, se o número “cinco” continua a ser, de facto, o símbolo do equilíbrio, da harmonia (patente, não por acaso, nas catedrais góticas), ou se é, igualmente, o desestabilizador dessa ordem, ou, em última análise, o que desenha, praticando, a pretensão de quebrar todos os sinais de ligação arquitextual.


1. “Sem luz. a noite acontece. ventre escuro. sombra: neve. alguém: o teu grito…


Imagem de Homeóstato 1, José-Alberto Marques, 1965, in Operação 1 (1967). Também publicado em Poesia Experimental 2 (1966); Antologia da Poesia Concreta em Portugal (1973); Antologia da Poesia Experimental Portuguesa Anos 60 – 80 (2004).


… Por vezes, como aqui, o poema constrói-se a partir de um Princípio – o Verbo.

Começa por instituir, pausadamente, uma narrativa, dá-lhe sequência breve, quase nominal, mínima, para logo a interromper e rapidamente a destruir com a força de um inesperado Apocalipse – Apocalipse que transforma as letras, os vestígios de uma sílaba ou de uma palavra em pictogramas esfarelados, sombras da cor de uma unidade perdida, obrigando-nos, assim, a entrar num caos de fragmentos, de estilhaços onde mesmo a leve sombra do simbólico dificilmente se manifesta.

Porém, não refeitos ainda, da destruição, logo começamos a descortinar nela significações expressivas, onde os sujeitos voltam a instalar-se e a reunirem-se na sombra, tornados forças verbais transformadoras, que mostram, primeiro alguém, saído da sombra, do frio (da neve), para se ir definindo como um “rosto” que se tece. Então, num ritual amoroso, o grito transforma-se em nova frase: que se alonga verticalmente…

a noite /ve m /c o m i/ go /
                                       só ve m”                                        eu grito    
                                                                                            tu
                                                                                       m  eu/
                                                                                    a m             o
                                                                                                      r

… e o texto, recuperado outro, assume-se na verticalidade reveladora do triângulo, completando-se, ou encontrando o seu fechamento semiótico.


2. Outras vezes, porém, o texto estende-se numa rede de lexemas, em desagregação iniciática mas legível, onde a desordem se manifesta como aparência (deslocada, espraiada), enquanto vai formalizando a isotopia do calor fervilhante, em progressão sensível e determinada (teu sonho lento / o teu sonho quente/ ver teus sonhos de lume), para se erguer /refazer com intensidade maior, na declaração final (?), vermelhos teus sonhos de lume: liberdade quente


Imagem de Homeóstato 2, José-Alberto Marques, 1965, in Operação 1 (1967). Também publicado em Antologia da Poesia Concreta em Portugal (1973).


para logo se diluir, por quebra de iteração e de repentina e opositória fuga semântica, para se fixar num outro quadro isotópico, oposto, sintético e disfemicamente agressivo: ossos – como se a cadeia simbólica que formalizava a ideia crescente da paixão, se isolasse brutalmente numa finda irreversível: a Morte, concretamente representada, como se quisesse recuperar intertextualmente e no seu inverso mais duro, o soneto anteriano, “Mors – Amor”.


3. Outras vezes, ainda, o poema ergue-se, a princípio, como espécie de descrição, ou avaliação sumária, ou mesmo (se “abstractizarmos” o concretismo dos constituintes) como tema alongado, existencial, mas firmemente nominal, telegráfico e próximo: estas grades. a rua. portos e peitos mas. nossa a vida.


Imagem de Homeóstato 3, José-Alberto Marques, 1965, in Operação 1 (1967). Também publicado em Antologia da Poesia Concreta em Portugal (1973); Antologia da Poesia Experimental Portuguesa Anos 60 – 80 (2004).


Depois, como para recolher o material linguístico envolvido e o seu possível sentido, desagrega-se em secções verticais, onde surgem, como que caoticamente, recolhas lexicais aparentemente ao abandono, em movimento progressivo, mas variável:

  • Assim, essa aparente desagregação, percorre e quase esgota todos os determinantes, desde o artigo definido, à utilização do morfema zero, ou isolando uma vogal central integrante do nome (começando, assim, a interiorização), para chegar progressivamente ao deíctico reforcivo da proximidade e da ligação ao sujeito: as grades / grades /gr[a]des (a) / grades / estas grades;
  • Igualmente no plano de uma sensível interiorização, vai progressivamente transformando a sinédoque em metáfora, através da reiteração das variáveis do nome “peito”: Começa pelo plural reiterado, retoma o singular; isola igualmente (retirado do centro da palavra), não uma vogal, mas um ditongo; para logo acrescentar (juntando, através da copulativa) o singular duplicado (singularizado) do nome: peitos / peitos /peito // p[ei]to (ei) // e peito /peito;
  • A progressiva assimilação de dois sujeitos erguidos das palavras permite e explica o deíctico possessivo, nossa, para que se reencaminham outros espaços: o nome singular, primeiro, em morfema zero, rua, para logo se individualizar em a rua, bem como o plural portos (em coluna centralizada) e, depois e fundamentalmente, a coluna final, reiterativa do signo vida, tanto a determinando como substância simples (a vida), como a generalizando (vida).
  • Assim, estas falsas colunas, aparentemente colhendo seccionalmente as variantes lexicais, vai conjugando, de forma gradativa variantes de variantes, para as reencontrar, especularmente e já implicitamente “explicadas”, na frase final, não sem antes nos oferecer o nó significativo que faltava: os dois campos isotopicamente opostos: o que está fora, estranho, quase obstáculo: (grades, rua); e o que está dentro (peito, vida). Será, porém, o lexema porto (com o seu sentido de chegada e possibilidade de encontro) que, apesar da interrupção sonora provocada pela proximidade de oclusivas iniciais (portos e peitos), permite, por força da continuidade articulatória labial e pela aliteração que os une, criar a necessária sequencialidade (o caminho) para o deíctico acolhedor, “nossa vida”.

9. Diferente dos anteriores, porque, paradigmático da ligação cratiliana da palavra ao referente, este homeóstico procura desenhar essa mesma íntima relação, negando a arbitrariedade sígnica. De facto, não lemos, olhamos simplesmente e ouvimos o som, combinando sinestesicamente os sentidos e cineticamente sentindo o movimento.


Imagem de Homeóstato 9, José-Alberto Marques, 1965, in Operação 1 (1967). Também publicado em Antologia da Poesia Concreta em Portugal (1973).


Assim, por um lado, as letras, em diagonal, que formariam o vocábulo VENTO, combinam no próprio seio da palavra, a constritiva labial que se repercute no som nasal sequente, para encontrar o tom interceptador da oclusiva dental “t”, encaminhando-se ambas para a representação verbal do som (espécie de onomatopeia imitativa pura), através da união da sibilante com o mudo h, como que criando um inovador grupo chiante (sh).

Por outro lado (e paralelamente), a fuga do centro da construção da imagem de certos sons nasais prolongados, como acontece com a ligação, en, ou do o que termina o nome “vento” e que se percute como semi-vogal (u) – essa fuga, dizíamos, imita um crescendo sonoro que se alonga em direcção horizontal e vem encontrar, já mais perto de nós, outros sons fortes, isolados e novos – enquanto combinatórias de consoantes lábio-dentais – sons que nos alcançam e, de repente, nos põem, diante dos olhos, um movimento – aquele que gera o som – e que parece sair da página e vir directo a nós, como uma pancada.


10. Finalmente, uma última (talvez a mais bela) perspectiva de “ruína textual” que se repercute nos “homeóstatos” de José-Alberto Marques:

“a secura da pedra da catedral antiga tem veios na garganta e escuta
a voz misteriosa do silêncio que ao soar
reflecte o vento do tempo, do tempo em
o grito lento”


Imagem de Homeóstato A, José-Alberto Marques, 1993, in Imaginários de ruptura (2002).


Saído de uma frase (quase síntese ou envoltório), como o 1 e o 3, mas mais longa, esta, e construída em dois tons e não equivalentes valores sintácticos – facto que a alternância da escrita normal e do negrito tornam evidente –, este homeóstato poderia pressupor um caminho semelhante de expressão visualizada que iria encontrar a sua própria finda por processos equivalentes: ou como conclusão/expansão dos dados iniciais, ou como total reiteração destes.

Aqui, porém, o caminho é diferente, desdobrando-se em socalcos que cortam a página em diagonal, para reconstituírem, despida dos determinativos, a frase nua que a escrita normal desenhara, reduplicando, agora, o seu posicionamento original:

a secura da pedra
a voz misteriosa
reflecte
o grito lento

Esta reconstituição nua dos constituintes principais da frase, não se opera, porém, sem um movimento de expansão/libertação simulada e caótica das vogais que vão preenchendo os espaços vazios da página, como que sugerindo visualmente a passagem da História, que só pode ser recuperada como leve vestígio ou “como grito lento”.

Entretanto, como se fossem dados desnecessários (e opondo-se ao reforço de importância simbólica que o negrito parecia conceder-lhes) a página liberta-se (sem totalmente se libertar, mas omitindo-a como desnecessária) da marca temporal, da memória, que palavras como “catedral antiga”, “silêncio”, “vento do tempo, do tempo”, referenciavam. A secura (da pedra), o mistério (da voz), o grito (reprimido) mantêm-na, de facto, latente…


B. Acrescentemos agora, muito rapidamente, muito sumariamente, o que esta “poética” latente, subjacente a todos estes homeóstatos pode reunir (agregar) das possíveis “regras” significantes, aqui de certa forma, visualizadas, sob a superfície de textos poéticos:

  • Em primeiro lugar, a concretização de uma poética de significantes que, explorando a construção da página, pressupõe não só a omissão, como também o ressurgimento de uma história da poética, e ainda o futuro das linguagens poéticas electrónicas;
  • Dentro desta ideia englobante, a re -descoberta aparente de um dispositivo de ruptura, de um corte estético, tratados como quase imposição, mas também como “defesa” do novo, não considerado individualmente, mas alargado aqui à evolução geral da Poética – dispositivo que poderíamos integrar naquela espécie de “angústia” que Harold Bloom designou por Knosis (A Angústia da Influência. Lisboa, Cotovia, 1991: 28) e onde, de forma subtil, se enquadra o último homeóstato;
  • No plano interno, o avivar de uma nova sintaxe que utiliza não só a palavra, mas se estende a outros campos da arte e à recriação da página;
  • Neste sentido, a redescoberta de um pensamento visual, no sentido que lhe dava Melo e Castro (“Entrevista a Haroldo de Campos” (Antologia da Poesia Concreta em Portugal. Lisboa, Assírio e Alvim. 1973: 148 -149) e, consequentemente, o desenvolvimento das qualidades sensíveis do material sígnico;
  • No caso específico destes poemas de José-Alberto Marques, a consciência de “poesia”, enquanto destruição, visionada através de aparentes ruínas dispersas, que não perdem, todavia, o seu sentido e a sua beleza – a sua verdade, no sentido que Guilherme lhe dava no fim de O Nome da Rosa (“Nunca duvidei da verdade dos signos, são a única coisa de que o homem dispõe para se orientar no mundo. Aquilo que nunca compreendi foi a relação entre os signos.”);

Por parte do receptor: a transformação da leitura, por exigência de um outro olhar (não só de percurso horizontal, mas de inspecção cruzada e vertical);

Consequentemente, a exigência genérica desse novo leitor que reúna estas condições (ou desejo) indicadas por Melo e Castro: “o utente do poema que se aperceba das informações de que for capaz”.

Foi essa a nossa tentativa de leitura destes 5 homeóstatos de José Alberto Marques, caminhando no meio das ruínas, mas tentando descortinar nelas, a poiesis, ou os vestígios dos passos do poeta.