Polémica entre Manuel de Lima e Jorge Peixinho acerca do Concerto e Audição Pictórica. [Texto (transcrição). Ligações]
Publicação no Jornal de Letras e Artes, Dir. Azevedo Martins, Ano IV – nº 173, 20 Janeiro 1965, P. 11.
Partindo deste postulado de John Cage: Todas as coisas nos dão a sua música, uma porta que bate, um automóvel que passa, um grito perdido no silêncio, ou mesmo os instrumentos ortodoxos executados de qualquer maneira menos aquela que é apropriada, enfim, desde que toda a matéria sonora saída de qualquer fonte é logo música, torna-se aparentemente fácil, comodamente acessível, a realização de uma sessão musical à maneira de Cage, mesmo que não sejam músicos a elaborá-la.
O público é que pode ser constituído por «conhecedores» da música clássica porque convém escandalizá-lo, fornecer-lhe dados para os seus complexos de culpa relativos à falta de evolução manifesta na música. Por outras palavras é preciso «épater le bourgeois» – partindo do princípio de que estar no outro lado, na assistência, é uma condição dos burgueses enquanto que no recinto da exibição se encontram automaticamente os artistas. Basta para isso atravessar a fronteira que separa uns dos outros e desta vez os atributos, o passaporte para estar no lado oposto, não são muito rigorosos: basta fazer um certo número de ruídos dando a impressão de que nem todos poderiam operar os mesmos efeitos. Nada mais simples como se vê, porque nem a atitude na vida, nem o trajo, nem as disponibilidades económicas ou o índice de «Struggle for life», nem o comportamento moral têm qualquer relação com a classificação particular de cada um. Uma vez que se põe o pé no espaço reservado (não se sabe porquê) aos «executantes» fica-se logo apto a escandalizar os que )também não se sabe porquê) ficaram do lado da assistência.
A partir do modelo fornecido por John Cage, ainda que nem todos os participantes tenham uma ideia precisa da sua intervenção na música e dos antecedentes que a provocaram, basta uma vaga noção desta forma de exercício aleatório (que Peixinho deve ter indicado provisoriamente) juntamente com reminiscências do surrealismo para não falar no dadaísmo, e logo se opera o «escândalo» – mesmo que os participantes vivam uma vida quotidiana mais integrada nas convenções do que muitos dos que se encontravam na assistência.
Há cerca de três anos, na Sociedade de Belas-Artes, o pianista David Tudor, colaborador de John Cage ofereceu de facto uma sessão exemplar desse tipo de execução em que Jorge Peixinho foi o comentador. Por esse motivo e pela frequência nos movimentos internacionais da música de vanguarda, Jorge Peixinho reconhece com certeza a diferença entre aquela e a que se realizou ultimamente na Galeria Divulgação em que foi inexplicavelmente o principal participante; e conhece acima de tudo o que resultou de definitivo para Cage do encontro com Tudor, por volta de 1950 e que não pode comparar-se sequer ao seu encontro com os poetas do grupo experimental cujo resultado nos foi dado observar na sessão organizada na Galeria Divulgação que passamos a comentar.
Basta começar pelo título: Concerto e audição pictórica para nos depararmos com a falta de adequação e o trocadilho de alguns números como o Funerão de Aragal (extraído do apelido de António Aragão) para se ver a carência de originalidade aliada ao propósito de escandalizar ão se sabe quem. Porque títulos deste género em Portugal já caíram em desuso mesmo nas récitas de universitários finalistas que outrora usavam este tipo de jogo de palavras. Outro exemplo é o de Sonata ao lu… ar livre que não é menos sintomático do equívoco em que nos parece ter sido baseado o concerto que como é sabido se tratava de um «Happnings» [sic].
Podemos contudo separar Jorge Peixinho e também Mário Falcão do equívoco e ficarmos um tanto perplexos como eles se deixaram envolver na confusão de ideias, posto que um e outro possuem um conhecimento directo desta forma de informação. E isto sem deixar de reconhecer nos que ficam excluídos, Salette Tavares, António Aragão e Melo e Castro, um outro mérito que não vem agora para o caso discriminar, noutras esferas que também não lhes favorece a sua participação, pelo contrário, está em desacordo com o aspecto «sério» dos seus conceitos.
Melhor dizendo: julgamos que estes poetas não dispõem de um amplo conhecimento da intervenção de John Cage na música e do sobressalto que provocou com o seu ácido corrosivo, numa organização secular que, exceptuando o nosso meio, chegara ao extremo da perfeição mecânica. E parece-nos ser precisamente no nosso meio que o processo de «desmontagem» da música que daí resulta menos se pode tentar. Talvez porque não se chegasse à grande montagem. Mas mesmo assim, a «desmontagem» operada por Jorge Peixinho não pode ficar em paralelo com a de Salette Tavares, António Aragão e Melo e Castro porque, na verdade, não existe por parte destes últimos um apurado conhecimento da matéria. Portanto, da sua parte não se opera a «desmontagem» senão por acidente, até porque, se fosse necessário não saberiam organizar o material, ordená-lo ou mesmo reconhecer a sua ordenação – fosse qual fosse.
Quando António Aragão ou Melo e Castro percutem num badalo estão somente a percuti-lo; Jorge Peixinho quando bebe água por um bidé no momento que intitulou Bido tráfico pode dar-nos, como músico, a garantia de uma revolta idêntica à da introdução do urinol de Marcel Duchamp na célebre exposição de Nova Iorque – contudo retardatária.
Por estas razões bem salientes e porque algo que aconteceu de original e de inventivo na sessão pertenceu somente a Jorge Peixinho, a experiência saiu débil e portanto pouco convincente. Caiu mesmo numa certa atmosfera fastidiosa. O único momento de excitação na assistência – e isso deve-se à sua boa-vontade – foi quando Jorge Peixinho «executou» num violino miniatura tendo como arco um revólver. No entanto, como invenção, não excedeu algumas peripécias dos «Augustos-de-soirée». Dir-se-á que se trata de outra coisa. Será assim, com efeito?
No campo propriamente da música não há dúvida de que o espírito de John Cage persegue os compositores de vanguarda. A sua investida na música e a repercussão que tomou nos domínios do concerto, levou o crítico americano Peter Yales à conclusão de que John Cage seria o compositor vivo destinado a exercer maior influência, independentemente da opinião favorável ou desfavorável que se formule a respeito da sua música.
O apelo de Cage: deixemos os sons aparecer por si mesmos, arrasta por toda a parte do mundo os temperamentos mais diversos por vezes para uma atitude de aparente audácia e que implica o risco (como no caso do recital da Divulgação) de se verem cercados por lhes faltar a outra dimensão que dá autoridade a John Cage e que levou o escultor Richard Lippold depois de uma convivência de vários anos, a considerá-lo o mais brilhante intelecto entre todos os homens que foi dado conhecer.
O que deve ter seduzido os poetas participantes nessa sessão reduz-se à liberdade aparentemente oferecida por John Cage, liberdade que, na prática não existe a não ser como cilada. É o que nos confessa Earle Brown, depois de ter chegado a essa conclusão durante a colaboração com John Cage na mesma ordem estética da eliminação do controle: Não há liberdade alguma na contribuição de Cage.
Parece-nos que a primeira coisa que deveria impressionar os participantes não musicais deveria ter sido a facilidade. Mas isso, deveria por sua vez levá-los a desistir. A facilidade não é a proposição de Cage. Pelo contrário.
O contacto de John Cage com Schoenberg foi doloroso como se vê pela sua própria confissão: Muitas vezes tentei explicar a Schoenberg que eu não possuía uma inclinação para a harmonia. Schoenberg respondia-me que sem essa inclinação para a harmonia eu iria sempre de encontro a uma muralha que não me deixaria passar. A minha resposta foi que eu iria consagrar a minha vida inteira a bater com a cabeça de encontro a essa muralha. E foi o que fiz desde então.
Por seu lado, Shcoenberg não lhe facultou plenamente a passagem ou a destruição dessa muralha. Cage queixava-se das reticências que Schoenberg fazia aos seus exercícios de composição e acrescentava mais tarda que o mestre dizia a todos os seus discípulos: O meu objectivo ao ensiná-los, é tornar impossível que vocês componham.
No entanto, o espírito justiceiro de Schoenberg levou-o a proferir um glorioso elogio a Cage. Segundo o relato de Peter Yates, Schoenberg, pouco antes de morrer, disse a alguns dos seus amigos: Cage não é um compositor, mas um inventor de génio.
Talvez Schoenberg se referisse antes ao espírito de invenção dentro de um processo pré-existente, a partir de dados que permaneceram mais ou menos esquecidos, num prazo suficiente para que os jovens actuais ao contrário de Cage tomassem como «surto» o que em certos aspectos era um «despertar». Para John Cage com os seus 52 anos, nunca foram perdidas as raízes que finalmente frutificaram a sua intervenção na música: Erik Satie, cujos manuscritos constituíram para Cage um precioso tesouro, a «arte do ruído» do futurista italiano Luigi Russolo (1916) a «lonisation», de Varese.
De resto, Cage torna o mistério menos denso quando declara: Enquanto que no passado o pomo da discórdia foi entre consonância e dissonância, parece que no futuro imediato será entre som e ruído.
Um simples som por si mesmo, para John Cage não é nem musical nem amusical. É simplesmente um som. Portanto não é a sua natureza que impede ou permite ser incluído numa composição musical. Tudo isto se nos afigura a leste da sessão realizada na Galeria Divulgação.
Onde se nota também que havia uma distência do complexo Cage e que nos leva a compreender que Jorge Peixinho não tenha submetido os seus colaboradores a um critério mais rigoroso, é no título que foi dado à sessão. Porquê audição pictórica? Onde estava a cor para justificar este rótulo? A menos que não se tratasse de um propósito para estabelecer a confusão. O verdadeiro título deveria ser Concert action ou «Happinings» [sic] se Jorge Peixinho estivesse acompanhado por quem conhecesse os outros adjuventos que completam a expressão de Cage como o «Iching» de raíz chinesa, claro está, paralelamente algumas «leis» do Budismo-Zen que vê a natureza como um campo de inter-relação ou «continuum» em que nenhuma parte pode ser separada do todo. A natureza é assim interpretada como sendo um infinito processo sem desígnio inerente ou objectivo praticável. O supremo objectivo – diz Cage – é não ter objectivo algum. Isto põe-nos de acordo com a natureza na sua imanente operação.
A circunstância responde por si própria. Aqui entra-se na zona do zenismo.
A experiência realizada por Salette Tavares, Clotilde Rosa, António Aragão, M. Melo e Castro, Manuel Baptista, Mário Falcão e Jorge Peixinho, reflectiu a falha de acordo e de conhecimento talvez mais profundo desta dilemática de Cage e por isso resultou num divertimento gratuito, num jogo de salão.
Por mais que fizessem – e não foi muito – os participantes, faltou o lado emotivo que todo o espectáculo deve conter. Só depois de uma grande concentração lhe seria possível cair «nesse estado de graça» que advém do exercício que permite situar o criador numa dimensão a partir da qual o pensamento do homem fica estranho à realização posto que uma das «leis» do zenismo indica que as obras só se realizam quando não são pensadas ou calculadas sem abstrair, contudo, que o homem é um ser pensante.
Também nos quer parecer que não é este o clima dos poetas experimentais; pelo menos não consta que se tenham referido a isso, ao contrário de Cage que fez a sua profissão de fé zenista. Isto leva-nos a crer que hoje já se age na prática de teorias que fundamentalmente se desconhecem. Resultado das infiltrações das várias teorias que nos fazem recear que as pessoas se reúnem por equívoco.
Possivelmente para os poetas daquele grupo o caminho do psicodrama de Moreno teria sido mais favorável à sua formação filosófica e literária. Provocar a catarsis estaria mais de acordo com a ordenação dos seus poemas, mais dentro das suas raízes literárias do que no campo dificilmente explorável de Cage.
Assim, o que ficou como impressão geral foi que se tratava de uma atitude ainda dadaística sem a virulência e o intervencionismo do primeiro Dadaísmo. Porque a via de acesso tem mais que ver com Ionesco do que com Tzara. Por agora ficamos por aqui. Mas este tema podia ainda originar outra especulação se na realidade a sessão merecesse ocupar mais tempo.
Outros textos relacionados >
- «Resposta a Manuel de Lima», de Jorge Peixinho
- «Quando os Androides de Cage renegam o dono», de Manuel de Lima
V(l)er tb >