Um possível glossário para ler António Barros, em jeito de introdução

António Barros, de A a Z, por Clara Almeida Santos. [Texto]


Diz o dicionário da Língua Portuguesa da Academia de Ciências que um glossário é um substantivo masculino com duas aceções: “vocabulário que explica termos obscuros por meio de outros conhecidos” ou “vocabulário dos termos técnicos de uma arte ou ciência”.

[Procuro o dicionário para procurar o significado rigoroso de glossário e encontro dois vocabulários. Já aqui as palavras à procura de espaço, à procura de dizer o que às vezes as palavras não conseguem dizer. Mas são as palavras a matéria-prima, também tantas vezes de António Barros. Precisamos das palavras tanto quanto precisamos dos silêncios que também se definem pelas palavras, quando significativamente ausentes.]

Surge a forma do glossário como evidente por quatro motivos.

O primeiro: António Barros, o António Barros (com artigo definido, masculino singular) é, ele próprio, um substantivo masculino, ou melhor, um masculino substantivo, que aqui a ordem dos fatores não é arbitrária.

[Outro parêntesis reto – postulação que aprendi com o António Barros, como tantas outras coisas – para afirmar que também no título deste texto o “possível glossário” é coisa diversa do “glossário possível”.]

O segundo: o glossário cumpre-se, por definição já transcrita, usando termos conhecidos para explicar outros obscuros. Substitua-se “obscuros” por outra coisa, usando já a metodologia do glossário. Por “não lineares” ou “não evidentes”, por exemplo. Este glossário apresenta-se como uma chave de leitura, uma introdução à pessoa e à obra. Desiderato pretensioso, dada precisamente a complexidade do homem e do trabalho em causa. Mas necessário numa abordagem primeira, “em jeito de introdução”, como se apresenta este texto na forma de conjunto de textículos.

O terceiro: o glossário fornece os termos técnicos de uma arte ou ciência. Há um jargão em António Barros que exige hermenêutica. Talvez os principiantes na leitura do artista aqui encontrem dados úteis. Uma forma de conhecimento sintético que é do nosso tempo, na linha d’Os Superficiais de Nicolas Carr. Redundará em sabedoria se se seguirem as hiperligações fornecidas – são proposições sintagmáticas para um percurso individual de caráter paradigmático. A superação desta unidimensionalidade – própria das definições porque elas só servem porque não podemos andar com o mundo às costas – só será conseguida por contacto com António Barros e a sua obra.

Quarto: a lógica alfabética do glossário não podia adequar-se mais aos propósitos. Tem uma visualidade intrínseca. Tem a vertigem do início e do fim, numa tentativa de conter o universo em símbolos – radical presunção humana obviamente inalcançável.

A informação e a emoção de ora em diante vertidas chegam de já mais de uma década de amizade e de trabalho em partilha com o António Barros. Amizade e trabalho aqui necessariamente por esta ordem, sintagma a que acrescento a admiração. Edição de palavras feita com uma entrevista pelo meio, conversa havida à procura de linhas de cosedura dos retalhos de que é feita a nossa história. A manta glossemática (Hjelmslev é para aqui chamado porque precisamente a expressão e o conteúdo, a forma e a substância são precisas para entender António Barros, no seu ser e na sua obra) que se segue é assumidamente pessoal.

NB: o texto que se segue não exige uma leitura linear. Mas exige, isso sim, muitas leituras adicionais porque não esgota o entendimento dos termos.


A. Artitude.AB. Uma assinatura, a começar. Tudo em António Barros é artitude. Nada por acaso, nada deixado ao acaso, tudo construído com sentido consentido. No mínimo que faz, o artista coloca o que é. Pessoano e heteronímico. E por isso não numa letra singular – A – como é costumeiro, mas na cumplicidade da relação – AB. O princípio da ordem, alfabética, no caso, é assim com António Barros, em António Barros, relação. Nem sempre a relação convive harmoniosamente com a atitude artística. Mas esta é aqui artitude e isso muda tudo. Se a arte É atitude (como a poesia é, para António Barros, atitude poética) é obrigatória a em relação dialógica. Com os objetos, que se transfiguram em obgestos, na dialética de A e B; com os outros com quem o artista mantém uma proximidade frequentemente pedagógica, como em B e A, BA; com o ambiente e a circunstância, em constante alquimia, BA, símbolo químico do bário, metal dotado, como AB, de elevada reatividade.

B. Balança. António Barros é balança, nascido a 11 de outubro. O ano de 1956 dita que seja, no zodíaco chinês, serpente. O alinhamento dos planetas alimenta frequentemente. Basalto.

C. Coimbra. Círculo de Artes Plástica de Coimbra. Constelação.

D

E

F. Funchal.

G. Gill Sans.

H

I

J

L. Lucidez perigosa. Luto. Em António Barros, o luto é uma atitude. Como substantivo.

M

N

O. Obgestos, progestos.

P

Q. Quinta das Cruzes, Funchal.

R. Rua Larga.

S

T. Teatro Académico de Gil Vicente.

U. Universidade de Coimbra.

V. Valsamar. As palavras de José Tolentino Mendonça (com quem é partilhada a atlântica origem) fazem nesta obra coro com o trabalho de António Barros, ou melhor fazer par, pois é de uma valsa que se fala agora. Uma coreografia do mar, com banda sonora colhida da areia negra em compasso binário com as ondas na subida das marés. Água e pedra. Palavras em atitude poética com a escultural poesia. O ‘environment’ criado para este objecto em texto, parte da leitura de um poema de José Tolentino Mendonça visitado pelo cénico desenho que António Barros colhe à coreografia do mar, quando na subida das marés estas vestem as praias de areia negra (Funchal de 2007). Num tempo primeiro, e para resultar em livro, os autores (na comunhão atlântica que originariamente os cruza), formularam um diálogo ‘operático’, onde o texto e a imagem se reencontram numa física enunciação aquática. Formulada agora uma esculturalidade para o lugar do Museu da Água, o ‘objecto-livro’ que assim se opera em “Valsamar”, é parte integrante de uma continuada plástica latente. Uma ‘arte natura’. Toda uma convulsiva visualidade que, na palavra, de novo ousa-se fazer gerar.

X. Uma cruz. Rodamos um pouco o X  para mais esta cruz se parecer com a outra, a de Cristo, a da morte, da doença, saúde ou auxílio. Mas agora preta e feita de gravatas sujeitas a cortes. Forma da obra Insulae de António Barros que bebe inspiração no Alfabeto de Paul Valéry e na cruz de Beuys. Gravatas feitas a partir da roupa do artista, a sua segunda pele. Preta. A cultura fluxista tão cara a António Barros é inscrita pelo artista na “cultura de ritualizações de emancipação que a realidade académica de Coimbra, na sua Universidade, convoco, e, não menos, as condições etno-simbólicas das plurais insularidades que a palavra instrumentaliza nas diferentes enunciações poético-experimentais”. O X marca o lugar e o tempo. E marca também uma identidade em catarse e a contas com a vida. António Barros nasceu na Quinta das Cruzes no Funchal e é lá que constrói a sua cruz. Liga Coimbra e Madeira. Mas o X, 90º depois, é também marca de positivo, de mais, da lógica aditiva da soma. Contas feitas e, porém, sempre por fazer, que o X pode ser qualquer número.