Parte de um ensaio de Arnaldo Saraiva que se destinava ao segundo número da revista Poesia Experimental. [Texto. Ligações]
Saraiva, Arnaldo. 1967. “Linguística e Poesia: O Resto é Literatura”. Diário de Notícias, 3 de Agosto, Ano 103o, no 36427, Suplemento “Artes e Letras”, pp. 15-16.
Enganam-se os que ainda consideram forma – e tantos são – como sinónimo de técnica, ou como antónimo do conteúdo. Porque a forma é o conteúdo. A forma é o resultado da técnica e do(s) tema(s) e/ou motivo(s). O conteúdo também tem a sua forma intrínseca. A distinção que se quer assinalar quando se diz «forma e conteúdo» é apenas a distinção entre técnica(s), e tema(s)/motivo(s), ou entre expressão e exprimir.
Deste modo, a poesia experimental apresenta-se como viva (re)acção contra as ideologias – modernas formas de magia e de mitologia – que começaram a aparecer no século XIX. O homem moderno, à custa de viver demasiado por nomes (slogans, palavras), provocou o seu desgaste e saturação, desgaste e saturação tão flagrantemente acusados pela poesia experimental.
Acusando flagrantemente esse desgaste e essa saturação, a poesia experimental propõe ao mesmo tempo a única ideologia que não corre o risco de envelhecer, ou de trair a liberdade, do poeta e do homem: a própria liberdade; a única opção capaz de se revelar fecunda rubi et orbi: o homem.
Cada poema experimental é um acto de fé na liberdade, logo uma luta contra tudo quanto possa amputá-la, impedi-la, desvirtuá-la. Acto actuante que se prolonga até para lá do tempo do poema. Acto – não facto. E aqui me vejo de novo obrigado a discordar de Cassiano Ricardo, que define o novo poema como um dado feito. Porque o novo poema é, quando muito, um dado fazendo-se: é um dizer desdizendo-se ou um desdizer dizendo-se. O poeta experimental escreve como para experimentar saber por que é que tem desejo de escrever (de experimental, de saber), e por que é que tem desejo de escrever (de experimentar, de saber), e por que é que tem desejo, (Cfr. Pour un Nouveau Roman, de Robbe-Grillet): como que para dizer que não sabe e não acredita, a começar logo pela linguagem em que o vai dizendo.
A poesia experimental rejeita tudo quanto de algum modo já foi dito, já era sabido, já não exigia experiência. Alexandre O’Neill, na esteira de outros, proclamou que «a regra é não haver regra» – mas submeteu-se, naturalmente, à regra implícita na utilização de um tipo de escrita demasiado rígida, ou de uma sintaxe demasiado regrada, que, por isso, condicionou ainda a liberdade do poeta, mau grado o dinamismo que este lhe emprestou. Velásquez pintou as meninas e pintou-se a pintar. O poeta experimental aboliu as «meninas»; aboliu o «pintor», e deixou apenas o «pintar» (Cfr. Introducción a la Poesia de G. Fernández Moreno): deixou apenas a obra fazendo-se a si própria, desfazendo-se, refazendo-se.
Mas a liberdade, se nega a regra, não nega a consciência. O imprevisto, se exclui a lógica não exclui a atenção. A experiência, se não assegura os efeitos, não elimina os preparativos. Por isso, poesia experimental não é coisa fácil – e a sua aparente facilidade irá decerto escandalizar a auto-suficiência ignorante de alguns e entusiasmar a insuficiente boa vontade de outros. E se os poetas experimentais ignoram aonde conduzem exactamente as suas experiências, não ignoram a sua legitimidade, necessidade, valor, porque não ignoram as dificuldades em que estão envolvidos, e as lutas que têm de travar contra si próprios, contra os outros, e contra a tradição e a «segurança». O poeta experimental escolhe o partido da aventura continuamente renovada, na certeza de que outros virão a beneficiar, muito mais largamente do que ele, das experiências por eles levadas a efeito. A poesia experimental, vencida que seja a fase polémica, encontrará os seus «clássicos». Acaso ou não, não foram Sá de Miranda, Boscán, Surrey e Wyatt, mas foram os chegados depois – Valéry definiu o clássico como «o que chega depois» (Cfr. Variété II) – Camões, Garcilaso, Shakespeare, os maiores poetas do Renascimento português, espanhol, inglês. (É bom, no entanto, que se tenha presente a excepção, se bem que menor, de Ronsard…).
Nessa certeza-incerta do poeta experimental não estará expresso, aliás, o «espírito» de um tempo de pesquisas, de buscas, de conquistas, de descobertas – de construção e de destruição? – De um tempo em que, mais do que em nenhum outro, o homem se sente ao mesmo tempo tanta e tão pouca segurança sobre a terra?
Liberdade livre que renega as ideologias, a poesia experimental constitui um protesto vivo contra o que no Brasil já foi designado por «terrorismo cultural», que tem pretendido obrigar o escritor a optar como escritor por um determinado partido político, ou a submeter-se a estreitas limitações estatais. Mas poesia de um tempo que a define porque, por ela se define, poesia que é consciente porque quer ser livre, a poesia experimental não se desvincula da realidade, antes a «exige»: quem diz experimental diz «praxis», participação. Participação a poesia experimental é-o menos por palavras – cada vez mais gastas – do que pela actitude (exactamente, act-itude), menos por temas do que pelo exercício, e traz implícita a ideia de uma nova mentalidade: uma mentalidade que de facto defende e sobrevaloriza a liberdade do homem, e, com ela, condena tudo o que, ideológica, política, economicamente, o escravize; ou lhe limite as possibilidades de criação; uma mentalidade que ao fim e ao cabo vale como libertação e superação das antíteses esquerda-direita, Ocidente-Leste; uma mentalidade que considera o homem mais importante do que a ideologia.
A poesia experimental é, assim, uma das formas do novo humanismo, um dos anúncios e dos aspectos do novo Renascimento. Aliás, há uma inegável semelhança das últimas décadas e o do Quattrocento e Cinquecento. Lembrem-se, por exemplo, as navegações marítimas e as navegações espaciais; as lutas fanáticas católicos-protestantes e as lutas fanáticas fascismo-comunismo; o entusiasmo pelo «fenómeno humano»; o acelerado progresso social, técnico, científico; o cosmopolitismo; e, sobretudo, o amor da liberdade plena e responsável, e o gosto de experimentar.
Tal como um Sá de Miranda (Estrangeiros), ou um Duarte Pacheco Pereira (Esmeraldo de Situ Orbis), o poeta experimental está convencido de que a «experiência é a mestra e a mãe de todas as coisas». Por isso, não lhe interessa saber se se opõe a algumas escolas – porque se opõe a todas, ao menos como escolas. Não lhe interessa saber se a poesia tem andado errada – porque lhe basta saber que pode estar errada daqui por diante. Não lhe interessa escandalizar e deslumbrar o burguês – já porque ele próprio abandona justamente os caminhos que lhe poderiam proporcionar o êxito e a popularidade, já porque a poesia experimental nega a sobrevalorização do autor. Não lhe interessa chegar mais do que partir.
Interessa-lhe trabalhar, sem qualquer pressão que não seja decorrente desse mesmo trabalho. Interessa-lhe a aventura de que falava Verlaine, que é a aventura do próprio homem jogado no mundo. Interessa-lhe EXPERIMENTAR, que é a sua maneira de sobreviver, de antecipar um mundo novo, um homem novo.
E o resto – como dizia o mesmo Verlaine – «c’est littérature»: verdadeiramente.
Outros textos de Arnaldo Saraiva sobre Poesia experimental publicados no Diário de Notícias >
- Linguística e Poesia: A Agonia da Palavra (13 Julho 1967)
- Linguística e Poesia: Para um Novo Alfabeto (20 Julho 1967)
- Linguística e Poesia: A Palavra Nova (27 Julho 1967)
[Agradecemos a Arnaldo Saraiva a autorização que permitiu disponibilizar este texto no Arquivo Digital da PO.EX]