Linguística e Poesia: A Palavra Nova

Parte de um ensaio de Arnaldo Saraiva que se destinava ao segundo número da revista Poesia Experimental. [Texto. Ligações]


Saraiva, Arnaldo. 1967. “Linguística e Poesia: A Palavra Nova”. Diário de Notícias, 27 de Julho, Ano 103o, no 36420, Suplemento “Artes e Letras”, pp. 15-16.


Termómetro, sonda da linguagem – do modo de ser ou de viver – dos tempos, a poesia tinha forçosamente de dar o salto mortal salvador que rompeu com a fonética, com a morfologia, com a sintaxe tradicionais, salto que a prosa só agora começa a tentar dar com igual decisão, graças ao exemplo de Joyce, sobretudo.

Mas a ruptura da poesia com a palavra alfabética exigiu, naturalmente, a ruptura com o verso. Cassiano Ricardo, jovem brasileiro de mais de 60 anos, autor de um livro corajoso, Jeremias sem Chorar, chamou à nova unidade rítmica do poema linossigno, designação que me parece bastante infeliz, pois, se há algo que a nova linguagem poética começa por rejeitar é justamente a linearidade (como, aliás, Cassiano reconhece). Mário Chamie foi mais feliz ao designá-lo por signo de conexão. Por mim, acho que a palavra sintagma, poderia ainda substituir, provisoriamente, aquela designação, se acaso necessitar de ser substituída.

A ruptura com a palavra tradicional originou, sobretudo, e naturalmente, a criação de uma nova palavra. É ainda muito cedo para tentar caracterizar essa palavra. Não é cedo, porém, para dizer que, por motivos já expostos, ela se aproxima do significado de verbo, e que tende para o ideograma ou para o ícone, muito mais do que para o símbolo. Isto equivale a dizer que, por um lado, tende para a simplificação, para a concentração, para a anti-eloquência, e, por outro, para a complexidade, para a simultaneidade, para a aproximação ou maior fidelidade às coisas que nomeia ou representa, cuja «distância» começava a ser uma fonte de angústia para o poeta tradicional.

A nova palavra não quer estar tão «distanciada» da coisa e do conceito como no célebre triângulo de Ogden e Richards: quer situar-se e movimentar-se circularmente ou concentricamente com eles.

Mas a ruptura com a palavra tradicional levou ainda à consciência do espaço proposta pelo concretismo. Ao contrário do que geralmente se pensa, nunca a poesia abdicou do espaço – e a melhor prova dá-no-la o próprio verso e a própria estrofe tradicionais, cuja distribuição espacial chegou a ser considerada decisiva para a distinção entre poesia e prosa.

Só com o concretismo, porém, o espaço ganha na poesia a importância que já lhe concedia nas artes plásticas; só com o concretismo o espaço começa a ser explorado sistematicamente. A imagem projectada pode assim «exprimir nas três dimensões de espaço o que a linguagem fonética exprime apenas na dimensão de tempo»: está «ligada quase por natureza ao simbolismo cósmico»; e restitui à linguagem «a dimensão do inexprimível, a possibilidade de multiplicar as dimensões das coisas em símbolos visuais instantaneamente acessíveis» (cfr. Le geste et la parole, de André Leroi).

Mais liberta e precisa, porque mais concreta, a palavra tornou-se, paradoxalmente, como nos primitivos mitogramas, de que se aproxima, mais rica, complexa, profunda e associável. E este poder associativo, de tipo mecanicista, que faz pensar no cálculo das possibilidades, renega a ditadura da imaginação até há pouco vigente, ou retira-lhe grande parte do prestígio que até há pouco usufruía. Renegada essa ditadura, retirado esse prestígio, a poesia, não há dúvida, democratiza-se: o papel do criador torna-se menos relevante, enquanto o do leitor ganha maior importância. O leitor é hoje, mais do que nunca foi, co-autor. E o criador passa a ser considerado menos como inventor do que como achador – trovador (aquele que encontra, trouve).

O poema não mais aludirá expressamente à festa do aniversário, às palpitações de um coração amoroso, às belezas da Primavera, às madrugadas de esperança (sic) política, às infelicidades de um pobre pecador. O poema bastar-se-á a si mesmo; passará a começar e a acabar no poema. E tentar interpretá-lo ou compreendê-lo em razão, por exemplo, da biografia do autor seria o mesmo que tentar explicar ou entender a descoberta da relatividade em função da cebola que Einstein comeu ou não comeu.

De resto, Einstein nada tem a ver com a relatividade a não ser que a descobriu que a encontrou; se aceitamos a sua existência, a relatividade é tanto de Einstein como nossa, porque existe independentemente da formulação teórica que ele fez, e porque ele em nada a «modificou».

O poeta de hoje só terá também que encontrar a poesia. Encontrá-la – e passar. Se ficar na história é só porque foi ele o primeiro a encontrá-la, não porque foi o único a tê-la. Não fazia realmente sentido que, numa época em que a máquina pode escrever poemas, continuasse a dar-se ao poeta a importância que se lhe dava nos tempos românticos.

Mas não foi sobre este único aspecto que a poesia se democratizou. Sartre afirmou algures (Situations, II) que «a poesia não está do lado dos signos» (alfabéticos deveria ter acrescentado) «mas do lado da escultura, da pintura, da música». A partir do momento em que a poesia passou do lado dos signos alfabéticos para o dos signos ideogramáticos, a partir do concretismo, começaram a desaparecer os problemas da tradução poética: a poesia começa a poder ser lida por todos os homens de todo o mundo, semelhantemente ao que já sucedia com a música, a pintura, a escultura.

Por outro lado, a poesia experimental (e não se esqueça – que experimental é uma definitio rei) anula por natureza o conceito de génio e de herói, tão presente na poesia tradicional, mesmo naquela que mais devia rejeitá-lo: a poesia dita realista. Na verdade, dizendo-se ao sentido do povo, ou confundido com o povo, o poeta dito realista não perde oportunidade para denunciar a sua aura de mensageiro, para impor o seu prestígio de chefe, para exigir a sua medalha de lutador. De tal modo que, como já uma vez escrevi, ao lermos os seus poemas, somos impressionados não pelo «idealismo» congénito nesses poemas, mas tão só pelo «idealismo» que esses mesmos poemas nos indicam que possuirá o seu autor. A maior parte dos poetas ditos realistas, que põem o acento tónico no realismo em vez de o porem na poesia, querem resolver pelos poemas aquilo que deviam resolver os poemas, ou que devia resolver-se ao nível dos poemas. Ora à poesia experimental não serve nenhuma revolução – pela simples razão de que é a revolução.

Pelo mesmo motivo, a poesia experimental ultrapassa francamente todas as ideologias e anula de vez as antíteses que não raro se queriam ver entre determinados autores e as suas obras e entre a forma e o conteúdo. A poesia experimental vem dar a força de um axioma à muito citada afirmação de Maiakowski: «Não há arte revolucionária sem forma revolucionária.»


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[Agradecemos a Arnaldo Saraiva a autorização que permitiu disponibilizar este texto no Arquivo Digital da PO.EX]