Texto de António Aragão publicado no Suplemento do «Jornal do Fundão», caracterizando a posição experimental como uma posição de movimento, e a poesia experimental como visual, verbal, táctil ou auditiva. [Texto (transcrição). Imagens]
«Intervenção e movimento»
Transcrição >
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O excessivo culto do indivíduo afastara a possibilidade duma intensiva participação dos outros no objecto artístico mesmo até desse modo recuado como já fora praticado em velhos ateliers, escolas e comunidades primitivas.
O endeusamento extremista da individualidade ofereceu, sem dúvida, um flanco bom de comportamentos e válidas oportunidades, mas, por outro lado, cavou mais largo e fundo o fosso entre o artista e o público, distanciando o fruidor do plano de participação que é afinal o único plano em que o sentir toma posse física ou material, ou seja, a posse total do objecto artístico.
Mas o prestígio do individualismo atingiu o seu termo: o seu estado é agónico. Tendo perdido a base ontológica sobre que assentava, poroso e esgotado, atingiu o seu máximo grau de fusão, dentro já dos limites do colectivismo.
Assim, no interior desses limites colectivos, o indivíduo que cria qualquer coisa, cria não apenas para os outros mas com os outros.
De facto, no seio das comunidades modernas de grande consumo e forte informação, acontece como não podia deixar de ser, uma maior interpenetrabilidade dos campos campos de criação e participação (arte colectiva), quer dizer, surge uma aproximação mais densa entre o fabricante ou criador e o necessário consumidor.
Todos se interpelam, convocam e actual em comum.
Hoje o fruidor, o comum dos homens, o denominado público, em frente de certos objectos artísticos, deixa de lado a cómoda ou incómoda posição estática de simples receptor de sensações e passa a actuar como interveniente, como elemento activo, participante, como provocador das suas próprias emoções.
Ele já não necessita apenas. Necessita-se. Já não está em frente munido somente da sua antena receptiva, mas, pelo contrário, prolonga-se, estende-se, projecta também os seus dados, joga o seu prazer.
Por seu lado, o artista deixou de ser o isolado, o solitário, o bruxo exilado na clássica torre de marfim e mistério, para descobrir o seu jogo, oferecer os seus segredos, exibir os seus truques, pedindo em troca que os outros desvendem os seus e se descubram.
A reciprocidade tornou-se lei assente e idioma social no respectivo entendimento. A penetrabilidade dos dois campos um no outro, o do artista e do fruidor, destruiu as posições extremas em que até aí se separavam: fundiram-se, interligaram-se irremediavelmente mediante o objecto criado. À posse apenas «espiritual» sucedeu-se a posse física. Em lugar da dourada contemplação surgiu a interessada intervenção contemplativa: inter-acção: acto-mútuo de concordância criativa.
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A mesa está pronta para todos. Esta é a grande messe. Cada qual pode servir-se à vontade: intervir é possuir. As coisas que um faz pertencem a todos. Todos se comprometem nelas, usando-as e intervindo, tornando-as mais suas, indefinidamente.
Acabou-se com a pontificante mensagem. O formulário, fechado numa organização definitiva e composta univocamente, desapareceu. Existe um desejo inconcebível de abrir todas as portas. Os nossos olhos escutam o som dos nossos passos.
À ordem lógica contrapõe-se a desordem da imaginação. A euritmia opõe-se à simetria. A «forma aberta» barroca substitui o centralismo clássico. O finito da comunicação é abafado pelo infinito plurivalente das formas.
E é por motivo desta ambiguidade ou imprevisibilidade que se verifica um acréscimo de informação, a qual é directamente proporcional à própria entropia (A. Moles), exactamente porque a informação «é função da improbabilidade da mensagem recebida».
O jogo aumenta, sobe sempre. Cresce. As suas consequências são, por assim dizer, imprevisíveis.
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Um poema objecto ou qualquer expressão plástica com proposta de intervenção do público transcendem o simbólico instituído ou afastam-se da sua por demais deficitária projecção.
Dá-se, de facto, o sacrifício do próprio símbolo, isto é, não a destruição do símbolo na sua expressa representativa, mas desaparece esse lado significante, reduzido e formalístico, que faz com que a vida corra como um rio, que uma pedra incarne a pureza ou um ramo se transfigure em braço.
Este sacrifício do simbólico é provocado sobretudo pela velocidade de consumo em que se debate a civilização contemporânea.
Os símbolos esvaziam-se, tornam-se inoperantes.
A primeira fase deste ocamento dá-se quando o símbolo se transmuda em puro sinal ou num private simbolism.
Seja como for, o símbolo está em constante desgaste. A sua maior ou menor resistência depende da carga de ambiguidade que armazena.
Abandonando a imediatez semântica ou seja de conteúdo mais ou menos explícito, o símbolo, dantes exposto onticamente (estética tradicional), reverte-se para o campo dos sinais (estética actual), explodindo em pleno consumo.
Por esse facto, os objectos artísticos, agora fabricados, funcionam mais nitidamente como sinais sem pressupostos de sobreaviso semântico determinado.
Convém notar que esta fusão gestáltica da evidência dos sinais com a função do objecto e seu desenho é necessariamente uma maneira generosa e exposta da linguagem. Sem dúvida de linguagem polivalente e ambígua, mas linguagem, sem dúvida, repetimos, que permite ao sinal uma pluralidade de dizeres em face das diversas circunstâncias e não se confina a uma única posição rígida e inalterável como até aqui o símbolo teimosamente exigia e compartimentava.
Jogo mágico por excelência! Jogo de recriação constante. Uma espécie de metajogo onde o homem, e portanto as situações, se refazem e alteram em projecção não limitada, ou infinita, o que é afinal um «projecto» de escala mais humana, visto que o infinito é o valor mais evidente que o homem sempre pretendeu alcançar.
A certeza é esta: os símbolos caíram à sua. Reduziram-se a sinais. E, agora, por toda a parte, os sinais surgem.
Há sinais num bocado já arruinado de cartaz, num pequeno sítio dum muro, nuns restos de sucata e lixo, numa indicação insuspeitada, num fragmento, em pedaços de jornais, no que esteve perto do homem ou saiu das suas mãos, em tudo o que se gastou e teve seu uso ou vive ainda em pleno consumo.
Exactamente porque os símbolos gastam-se como as baterias: descarregam-se.
Os sinais, pelo contrário, são as evidências que permanecem sempre apontando.
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É fácil portanto compreender porque apareceu uma arte bruta fabricada com restos ou porque se recortaram pedaços de jornais para fazer poemas ou se compuseram colagens e reabilitaram objectos encontrados ou de uso comum. Cabe dizer a propósito que estas colagens nada têm a ver com aquelas praticadas pelos surrealistas, as quais eram compostas a partir duma simbólica surreal, quer facultada por outras e divergentes associações, quer as oníricas e subconscientes, e expondo sobretudo uma «moral» bastante exuberante e, por isso, demasiado alienatória.
Agora, ao contrário, as colagens e a série de objectos encontrados pretendem em especial potencializar-se, isto é, continuarem apenas como objectos, francamente objectos em relação uns aos outros.
Despidos dos silogísticos discursos e sem os gramaticalismos formais que definem e demarcam, estes objectos, abertos a uma imensidade de propostas, revivem naturalmente as suas próprias cargas arrefecidas.
Deste modo continuam a condensar-se, a fornecer o que em si nasce, vive e morre sem qualquer outro termo perspectivista que exceda as suas próprias existências – cómicos, ridículos ou trágicos quando deparamos com eles ou agressivos quando nos provocam.
Já não vale a pena chorar nem bater à porta com a imprudência do iluminado. Já ninguém se interessa: são muitos os ruídos. Ninguém está presente para esperar nem ouvir.
Por isso a agressividade e a comicidade substituem as anteriores admoestações.
Sabe melhor apedrejar rindo do que mendigar choramingando o direito que nos cabe. Arte do cómico. Arte cómico-dramática. Arte da agressividade.
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A intervenção no objecto dado ou criado proposta ao fruidor pelo artista oferece uma visão dinâmica da arte e revela um outro lado pouco comum.
Trata-se, sem dúvida, de obras de movimento onde cada fruição jamais resulta igual a si mesma (Umberto Eco), nesse mesmo sentido de campo de possibilidade a que se refere Henri Pousseur.
Por isso o estilo da obra de arte, tal como se entende à maneira convencional, desapareceu.
O artista apenas oferece uma estrutura, expõe uma base, uma matriz, e deixa o resto ao acaso das intervenções.
Esta posição duma arte do movimento tem já longos anos de história. Foram vários os pioneiros que antes dos mobiles de Calder, do Musiscope de Schöffer e das nebulosas de Malina ensaiaram procedimentos de movimentação.
Dum dinamismo potencial na obra de arte passara-se a uma dinâmica de facto.
Neste último caso dois caminhos são de considerar: ou o movimento existe fazendo parte da execução da própria obra ou é resultante duma intervenção.
Tanto num caso como noutro o espírito de dinâmica que os envolve é o mesmo.
Na música existe atitude semelhante.
Stockhausen, Luciano Berio, Henri Pousseur e Pierre Boulez, para me referir apenas a alguns dos músicos mais conhecidos, permitem nas suas composições a intervenção através de grandes variações interpretativas.
A proposta ilimitada que nos fornece Joyce no Finnigans Wake é verdadeiramente uma situação de movimento que ultrapassa de muito a dinâmica potencial.
O Livro de Mallarmé, para não lembrar outros recentes conseguimentos como os de R. Queneau, é o correspondente dinâmico mais notável no mundo poético.
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Um poema encontrado nos jornais, isto é, composto servindo-se do que neles se encerra diariamente, oferece uma base onde permanece a potencialidade do acontecer (movimento), ao mesmo tempo que elimina aquela posição estática comum aos poemas de formação tradicional. O poeta anula-se em grande parte para poder oferecer uma matriz que permita a obra em movimento dentro dum campo aberto de possibilidades. Em virtude disso o estilo tal como se entende normalmente deixa de existir. Assim surge certa linguagem negra, ausência de estilo e um misto de desencanto literário para os não iniciados.
Seja como for, Carlos Drummond de Andrade tem razão quando a meio dum dos seus poemas afirma que a poesia deixou os livros e hoje encontra-se nos jornais.
A atomização da linguagem, destruindo o convencional discurso, permitindo uma maior ambiguidade e variedade de situações, é outro exemplo nítido duma técnica de movimento.
O mesmo sucede com o processo combinatório, mecânico ou não, que enfileira ao lado das obras saídas da fase de movimento potencial.
Agora, por conseguinte, ao fruidor é-lhe permitido que a sua imaginação passe de espelho receptivo a operante, que ponha de lado para sempre a posição da absoluta subalternidade a que tanto se escravizara.
Finalmente todos podem intervir e sentir-se no acto da intervenção.
Através de outros processos, visuais e auditivos, onde a polivalência e a ambiguidade atingem elevado nível, são abertos novos campos de possibilidade.
O proponente criador, conviva das novas posições sociais do homem no mundo, sentiu a necessidade dum diálogo mais íntimo com aqueles que cada vez mais anonimamente crescem à sua volta.
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A posição experimental é francamente uma posição de movimento.
Uma poesia experimental, visual, verbal, táctil ou auditiva, essa poesia saída das máquinas ou dos jornais, não admitem fronteiras fronteiras para o espírito nem desprezam qualquer técnica para o seu conseguimento.
Por isso mesmo não se pode pretender fazer a análise duma poética nitidamente experimental usando um instrumento crítico inadequado ou fabricado sobretudo para o conhecimento de estruturas convencionais.
V(l)er tb > Poesia experimental – Suplemento do «Jornal do Fundão», 24 Janeiro 1965, org. António Aragão e E. M. de Melo e Castro
Website oficial sobre a obra de António Aragão > https://www.aragao.org/
[Agradecemos à família de António Aragão a autorização que permitiu disponibilizar este texto no Arquivo Digital da PO.EX]