Texto de José Blanc de Portugal publicado no Suplemento do «Jornal do Fundão», sobre o primeiro número da revista Poesia Experimental (1964). [Texto (transcrição). Imagens]
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Se me permitem um leve «humorismo» de expressão, começarei por vos dizer que a Poesia foi, é e continua a ser o nosso mais sólido valor na economia literária. Como me atrevo eu a repetir uma tão evidente banalidade? Talvez porque, de tanto ter sido repetida, muita gente nem sequer dá por ela, e muitos têm a tendência de todos os tempos para considerar que novas formas poéticas, novas ou remoçadas tentativas de novas tentativas de expressão poética, coroadas ou não de êxito literário, correspondem antes a sintomas de decadência literária. O repisar de palavras que deliberadamente usei, pleonástico quanto a estilo, não o será quanto ao que quis dizer com suficiente precisão… É que, a mor das vezes, as novidades são repetições, ampliações, variações – ou o que lhes queiram chamar – de novidades de outros tempos – cá estou eu de novo a repetir pleonasticamente as palavras…
Um mesmo fenómeno, literário ou não, originado em qualquer sociedade humana, em qualquer época e em qualquer latitude do globo, há-de forçosamente apresentar características similares pois sai do homem e ao homem se destina. Não vou fazer aqui história da Poesia mas limitando-me por todas as formas e com os consequentes perigos de ser pouco explícito ou demasiado esquemático, não pensando senão na história da poesia portuguesa e num caso concreto, não houve quem lamentasse a introdução das novas formas poéticas do renascimento, precisamente quando a nossa poesia estava em vésperas de atingir o seu apogeu clássico com Camões?
A verdade é que num mundo limitado como o era o mundo ocidental da Idade Média, num mundo em que a latinidade se ia barbarizando e as línguas nacionais estava menos individualizadas – estou a referir-me às línguas novi-latinas – o mundo poético sentia-se mais unido e não havia grandes pruridos de nacionalismos poéticos. Mais: pelo menos na Península Ibérica, esse mundo latino e ocidental mantinha forçada ou voluntariamente certo contacto com o poetar arabizante do islamismo em expansão não sem que este fosse influenciado pelo poetar, digamos, cristão.
Tudo isto vem a propósito de me querer referir ao primeiro Caderno de Poesia Experimental, editado na colecção «Cadernos de Hoje», em que colaboram António Aragão, António Barahona da Fonseca, António Ramos Rosa, Melo e Castro, Herberto Helder e Salette Tavares; Na secção antológica do presente Caderno, figuram: Camões, Angelo de Lima, Mário Cesariny de Vasconcelos, Emílio Villa e Quirinus Kuhlman – este último em apresentação-tradução de António Ramos Rosa.
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Na realidade, e antes de mais nada, creio meu dever recomendar ao auditor realmente interessado pela poesia e pelos seus mistérios, a imediata aquisição, leitura e primeiro estudo do Caderno de Poesia Experimental a que me estou referindo.
Faço agora a primeira referência à introdução do Caderno, subscrita perlas inicias «H. H.» – por certo atribuíveis a Herberto Helder, porventura o poeta novo mais importante dos nossos tempos – e à sua parábola excelente. Como aperitivo apenas um excerto desse texto:
«… (…) ambiguidade, indefinibilidade e polivalência do real são testemunhados, no plano da representação estética, pela experimentação e o encontro sucessivo, determinados por desajustamentos e ajustamentos entre a imaginação e a realidade.
Trata-se de uma regra tradicional que a tradição esquece, quando perde o dinamismo sobre que assenta. Porque tradição é um movimento (…)».
Estes princípios parecem-me excelentes e excelentemente expostos nas suas linhas gerais.
Os organizadores – António Aragão e Herberto Helder – designaram o fascículo – de agradável apresentação gráfica – «caderno antológico».
A designação está certa: logo nas primeiras páginas aparece uma série de aforismos, afirmações, postulados ou pensamentos sobre Poesia cujos autores vão de Max Jacob a Pierre Garnier – que aliás se refere… à «determinação do homem», já «não pelo meio, pelo seu país, pela sua classe», mas sim, agora, hoje, «pelas imagens que recebe, pelos objectos que o rodeiam… pelo universo», o que é quase uma petição de princípios ou… uma verdade universal – já que o universo engloba pátria, meio, classe e… os objectos e suas imagens…
O primeiro Autor citado é, como já disse, Max Jacob que nos diz que: «A Poesia moderna rompe com todas as explicações». É possível que a Poesia Moderna em tanto que conjunto de poemas, de palavras «legalizadas» ou não, ou mesmo de «objectos», gráficos ou não, em si própria portanto, rompa com o totalitarismo de antigas artes poéticas; mas, não é menos verdade que nunca se «explicou» tanto a poesia do que nos nossos tempos…
Na verdade objectiva das coisas e dos factos históricos, é mesmo certo também que as «explicações» de poesia variam na sua formulação sem deixarem de ser classificáveis em categorias que são mais ou menos de todos os tempos embora enriquecidas, carregadas, de significações que podem levar a crer exigirem uma nova semântica.
Valerá a pena precisar um pouco estes termos.
Tem-se falado muito, de há uns vinte e tantos anos para cá, de uma teoria científica conhecida pelo nome de «teoria de informação» – ou da «comunicação» – e que tanto se aplica com vantagem à análise da experimentação científica como às telecomunicações de qualquer ordem e à comunicação literária. As origens dessa teoria são, historicamente, puramente científicas e altamente físico-matemáticas.
Nem por isso é difícil expor aos leigos o que nos interessa neste momento e, agora, é apenas isto: A informação – o que se «comunica», digamos para facilitar – é sempre um conjunto de um suporte e de uma semântica. Semântica de uma informação é o efeito psíquico dessa informação; suporte – ou «forma» – é o fenómeno físico associado a uma semântica para constituir uma informação (ou «comunicação»).
Ora, para que a Poesia Moderna exija uma nova semântica será pois necessário que o seu efeito psíquico seja diferente do produzido por uma poesia «não-moderna», o que é bastante duvidoso a não admitirmos que temos também de considerar um homem novo – ou moderno – diferente do antigo. Uns me dirão que tudo o que se passa no mundo nos prova que o homem de hoje é o mesmo de sempre e que progresso material não acarretou proporcional progresso moral; outros afirmarão o contrário sem se preocuparem muito com «moral» – coisa de que afinal todos falam pois trata dos «costumes»…
Assim se vê que sempre estaremos numa posição eminentemente dialética e que é teoricamente impossível decidir estaticamente a menos da aceitação de qualquer postulado mais ou menos limitador, mais ou menos alienante.
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Aludi aos conceitos de semântica e de suporte (ou forma) sempre unidos e indispensáveis sempre que há a analisar uma comunicação (ou informação) quer ela seja de natureza literária poética quer de qualquer outra espécie. Antes me refiro à parábola subscrita por H. H. – certamente Herberto Helder – que pode considerar-se a apresentação deste fascículo antológico do experimentalismo poético português contemporâneo.
Eis o apólogo ou parábola que atribuo ao poeta Herberto Helder:
«Era uma vez um pintor que tinha um aquário, e, dentro do aquário, um peixe encarnado. Vivia o peixe tranquilamente acompanhado pela sua cor encarnada, quando a certa altura começou a tornar-se negro a partir – digamos – de dentro. Era um nó negro por detrás da cor vermelha e que, insidioso, se desenvolvia para fora, alastrando-se e tomando conta de todo o peixe. Por fora do aquário, o pintor assistia surpreendido à chegada do novo peixe.
O problema do artista era este: Obrigado a interromper o quadro que o pintava e onde estava a aparecer o vermelho do seu peixe, não sabia agora o que fazer da cor preta que o peixe lhe ensinava. Assim, os elementos do problema constituíam-se na própria observação dos factos e punham-se por uma ordem, a saber: 1.º – peixe, cor vermelha, pintor, em que a cor vermelha era o nexo estabelecido entre o peixe e o quadro, através do pintor; 2.º – peixe, cor preta, pintor, em que a cor preta formava a insídia do real e abria um abismo na primitiva fidelidade do pintor.
Ao meditar acerca das razões por que o peixe mudara de cor precisamente na hora em que o pintor assentava na sua fidelidade, ele pensou que, lá de dentro do aquário, o peixe, realizando o seu número de prestidigitação, pretendia fazer notar que existe apenas uma lei que abrange tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Essa lei seria a metamorfose. Compreendida a nova espécie de fidelidade, o artista pintou na sua tela um peixe amarelo».
Eis um texto luminoso que, à primeira impressão, se manifesta como, digamos, anti-aristotélico – no que negue a famosa mimesis (a «imitação») – mas que se me afigura apenas consequência prática – «experimental» (para usar o termo) – dessa própria imitação ou mimesis tradicional que tem forçosamente de aparecer no início de cada tentativa de comunicação por intermédio de um suporte e de uma semântica…
O autor deste luminoso apólogo, clarividente e inteligente como é – H. H. (ou Herberto Helder…) – logo o vai reconhecer:
«Trata-se de uma regra tradicional que a tradição esquece, quando perde o dinamismo sobre que assenta».
E qual a regra a que alude o Poeta? A que se deduz do apólogo – ou melhor: parábola –; a de que é lícito ao pintor-poeta servir-se do amarelo para comunicar um vermelho que está a ser invadido por um negro, podendo aliás vir a substituí-lo por um azul, «sempre para se garantir a conivência com o real» – esta última frase é de Herberto Helder.
O poeta diz-nos ainda que essas: «ambiguidade, indefinibilidade e polivalência do real são testemunhadas, no plano da representação estética, pela experimentação e o encontro sucessivo, determinados por desajustamentos e ajustamentos entre a imaginação e a realidade».
Estes princípios de criação poética – criação poética é um pleonasmo etimológico, já o sabemos… – creio eu, aliás tanto permitem definir Poesia sem qualquer limitação como… o experimentalismo poético. Mas também aqui nem eu – nem o poeta que estou comentando – somos muito originais. Ele me dá razão quando logo esclarece:
«Em princípio, não existe nenhum trabalho criativo que não seja experimental; nesse sentido de que ele supõe vigilância sobre o desgaste dos meios que utiliza e que procura constantemente recarregar de capacidade de exercício». E continua:
«A linguagem encontra-se sempre ameaçada pelos perigos da inadequação e invalidez. É algo que, no seu uso, se gasta e refaz, se perde e ajusta, se organiza, desorganiza – se experimenta. Como diria um poeta, essa é a própria lição das coisas».
Ora tudo isto que lemos na apresentação do primeiro caderno antológico de «poesia experimental» tem muito que ver com um conceito, originariamente científico e exclusivamente introduzido em termodinâmica, mas que já fez o seu aparecimento na moderna crítica literária, o que se justifica cabalmente por ser princípio universal e também básico na teoria da informação (ou da comunicação) de que já vos falei.
O princípio, o conceito a que me estou a referir é o de entropia. A sua definição puramente físico-matemática (entropia é o integral de Clausius) está fora do nosso âmbito aqui. Mas não é difícil dar de entropia uma noção útil literariamente. A entropia é, essencialmente, uma medida do grau de desordem (ou acaso) de um sistema físico. A equação que define informação é analógica à que serve para medir a entropia do mesmo sistema. Um sistema desordenado, de alta entropia, contém alta informação; a entropia é constante quando se consegue o máximo de rendimento (na prática impossível); a entropia do Universo aumenta constantemente… Mas a explicação de tudo isto levar-nos-ia demasiado longe… Aliás, entre autores científicos que tratam da teoria da informação há que atentar no sinal da entropia, o que fez com que Brillouin considerasse a vantagem de se falar de entropia e de negentropia, isto é, entropia negativa.
Há entre entropia e informação uma ligação analógica da ordem das correspondências romântico-literárias que é uma repetição das correspondências mágico-naturais de tudo o que exista; mas, para além desse género de analogias é fácil, por científico, definir qualquer coisa de mais nitidamente preciso.
Daí que um físico eminente, Edington, se aventure a uma visão tão larga como a que exprimiu por estas palavras:
«A entropia é um dos poucos conceitos que se pode pôr a par de beleza e de melodia mais do que ao lado dos de massa e distância, pois só se discerne a entropia quando as partes são observadas em conjunto, e é vendo-as e ouvindo-as que descobrimos beleza e melodia».
Na verdade como diz o apresentador da moderna poesia experimental, a linguagem é algo «que no seu uso, se gasta e refaz». É o Poeta na sua ânsia de realmente criar, no seu empenho visceral de se opôr à degradação da energia e ao aumento da entropia; a querer sempre comunicar mais e mais…
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Da Poesia – experimental, ou não – continuemos falando.
Nada se pode manifestar, comunicar e ser comunicável sem uma espécie de diérese, de rotura, de separação. É caso para se dizer que o facto de comunicar, por natureza unitivo, implica o seu contrário: essa separação que é o oferecimento do que se comunica. Teríamos aqui mais um exemplo da universal conjunção de opostos que caracteriza tudo o que interessa à realidade total humana e até puramente físico-natural; …
Para haver uma comunicação literária que transmita qualquer coisa de novo há pois que separar, e reparar qualquer coisa de diferente. Para vos relembrar o conceito a que aludi na minha última conversa, isto é o mesmo que dizer que em toda a comunicação há uma alteração da ordem do sistema em que se efectua e que, portanto, se alterou o valor da entropia desse «sistema». A acção do Poeta – no sentido mais geral do termo, e, aqui, como sinónimo do «comunicador» – pretende não diminuir o conteúdo informativo do sistema; pretende mesmo aumentá-lo com o manejo de uma linguagem – da linguagem em que se exprime o comunicado. Isto corresponde, em princípio, a uma inversão do que sucede no mundo físico… Melhor diria: no mundo físico-matemático…
Vem a propósito um comentário sobre a linguagem que não usa qualquer matemática e a que usa os seus símbolos e estilos. Diz-se frequentemente que, para dar certas noções de física, a exposição «sem matemática» apenas dá «imagens», com poucas relações com «a realidade», enquanto que as exposições «matemáticas» dão melhor «visão» do real… Esta opinião corrente e seriamente acreditada merece uns momentos de reflexão…
Há sem dúvida conceitos matemáticos impossíveis sequer de representação gráfica – já não digo por palavras –. A linguagem matemática permite economicamente comunicar ideias dificilmente apresentáveis sem uma simbologia especializada. Por outras palavras: É mais fácil, muitas vezes mais sintético, comunicar por signos ou representações semi-ideográficas do que «por palavras». Os signos, representação de símbolos, têm maior «densidade» informativa do que as palavras…
V(l)er tb > Poesia Experimental – Suplemento do «Jornal do Fundão», Fundão, 24 Janeiro 1965. Organizado por António Aragão e E. M. de Melo e Castro.