fakephone4a(n)droid

Texto de Rui Torres sobre objecto mixed-media fakephone4a(n)droid. [Texto. Imagens. Ligações]

Este texto foi também publicado no livro Fobias – Fonias – Fagias. Escritas Experimentais e Eletrónicas Ibero-Afro-Latinoamericanas, organizado por Rui Torres e Claudia Kozak para a coleção Cibertextualidades (Porto: Publicações Universidade Fernando Pessoa, 2019) e está disponível em acesso aberto @ https://hdl.handle.net/10284/7658


01 >> Porto, 2016

Em Março de 2016, respondendo a um convite do colectivo Media Instáveis, o qual “atua através de meios variáveis e sujeitos a desaparição”, preparei com o Nuno Ferreira, para a exposição Faz tu mesmx – arte por instrução, com curadoria de Ana Carvalho, Margarida Carvalho, Sofia Ponte e paula roush um primeiro fakescript: “// A fakescript for your faked life” . Trazia como sub-título a explicação e a técnica usada: “Just a simple and fake script in Basic, Java, C, and Perl”. Ficou exposto na parede da galeria Sputenik the Window, no Porto, entre 17 de Abril a 21 de Maio de 2016. Os “programas” nascer.bas, viver.java, morrer.c e ressuscitar.pl permitiam-me inscrever poesia num código falsificado: “Primaveras adormecidas, tempestades desconformes, manhãs magnéticas (…) Sombras cegas, sons eléctricos, tumultos invisíveis”.

Legenda: // A fakescript for your faked life (Impressão s/ papel/ 54 x 54 cm) @ Faz tu mesmx – arte por instrução, Porto, 2016. [Fotografia cortesia de Sofia Ponte]


02 >> Ponte de Lima, 2016-17

Posteriormente, a convite de Isabel Patim, organizadora do Lethes Art em Ponte de Lima, em 2016 (sujeito ao tema de ReCognição) e depois em 2017, desenvolvi nova versão dos Fakescripts . Impressos em papel autocolante transparente, os códigos HTML (coloridos) que estão “escondidos” nos botões de partilha de posts no Twitter e no Facebook estavam assim vacinados com poesia. Colei-os em bancos de jardim no centro de Ponte de Lima.

Legenda: Rui Torres a colar fakescripts coloridos em bancos de Ponte de Lima, para Lethes Art 2016. [Fotografia cortesia de Isabel Patim]

Escrevi então: uma poesia programada, porém inoperável, descansa no espaço público de uma cidade: impressa em objectos e corpos, pelos caminhos entre o museu e o jardim, aguarda a descoberta inquieta do cidadão. Uma operação poética, programada para ser apenas vista, inscreve, numa tecnologia digital de materialidade invertida (um código rasurado no suporte errado, i.e., um fakescript), o progressivo apagamento do amor. Um amor-código assim falsificado, integrando linguagens de programação, com coerência sintáctica, ambiguidade semântica, mas ineficácia pragmática, inscrevendo a poesia, ou o amor, essa experiência da poesia, no espaço líquido (aberto, aquoso, instável) de uma cidade. À beira-rio, à beira-mar: no precipício, em ponte. Contra (estranhando) certa condição digital: programação poética extraída da mediaesfera, impressa na ecosfera. À procura do vago, uma poesia – espaço – pública – sinalizando a digitalidade ofuscante, acusando a entidade flutuante dos novos modos de ser em rede. Uma poesia programada para o espaço: um projecto-poesia, um gesto em busca do reconhecimento impossível, da recognição de certa realidade humana. ReCognição pela natureza, numa telesthesia (a expressão é de McKenzie Wark) que restitua o mito perdido da informação: como troca, diálogo, toque, presença.

Para o catálogo criei um QRcode que, quando accionado, remetia para um website que simplesmente replicava esse mesmo QR. Um loop, portanto: uma falsificação e uma ironia. Experimente com a imagem em baixo.

Legenda: fakeQRcode, publicado no catálogo de Lethes Art, Ponte de Lima, 2016.


03 >> Kassel, 2017

Em 2017, nova iteração com estes pedaços de código de diversas linguagens de programação, apropriados e adaptados para a inclusão de poesia, por convite de Friedrich W. Block, curador da exposição p0es1s – postdigital, entre 14 de Setembro e 15 de Outubro de 2017, na Kunsttempel, Kassel, Alemanha . Em diálogo com o curador, foram estes novos fakes impressos em quatro almofadas, cujas fotografias foram posteriormente publicadas no Post-Digital Publishing Archive – Experimental Publishing Informed By Digital Technology .

Legenda: Fakescripts [Tradução de poesia por Friedrich W. Block] em Kassel, Alemanha, 2017.


04 >> Barcelona, 2018-19

Em 2019, a convite de Gerard Altaió e Eugenio Tisselli, da L’Automàtica e do projecto Sonhoras, em Barcelona, realizei uma última versão dos fakescripts, desta vez usando como metáfora (ou, talvez melhor, como metonímia) o telefone móvel: um fakephone4a(n)droid.

Este fakephone é um híbrido, um objecto mixed-media no qual material e virtual dialogam, sendo constituído por três partes interligadas, as quais se relacionam com a temática deste livro, onde agora ficam documentadas:

A) [Fobia]

Um objecto construído à mão a partir do modelo de um telemóvel Samsung Note9, com a suas exactas dimensões (altura: 161.9 mm, largura: 76.4 mm, espessura: 8.8 mm) e peso aproximado (201 g tem o telemóvel, 130 g o fakephone), usando 10 funções Java para o sistema operativo Android (open source), incorporando em algumas strings poesia escrita para o contexto específico da intervenção. O código: impresso a cores em acetato transparente; os poemas: impressos a branco em cartões cinzentos. Os dois (código e poema, acetato e cartão) podendo ser sobrepostos, um mostrando (ou escondendo) o outro. A cada uma destas funções está atribuída uma dicotomia (um paradoxo), tendo por isso criado um conjunto de 10 mini-livros com uma capa indicando essa dicotomia, e o interior revelando, numa página apenas (frente e verso) a solução, caso o utilizador do telefone decida baralhar as “cartas”. Eis a relação entre função, dicotomia, poema, ilustrada com as respectivas imagens:

Funções adoptadas e respectivos poemas:

Capa // fakephone4a(n)droid: fake/fone = Irmãos: a cidade arde, chama-nos, como um destino que se apruma.

Função // Get Phone Info: alienação/atenção = Somos assim: pássaros lívidos em sossego, renascendo eléctricos, sempre muito gélidos; Levantamos o carbono em nome da ciência e rodeamos as palavras; Somos uma primavera ou uma praia onde as aves ardem.

Função // Text-to-Speech: fonia/fagia = É na boca que tudo se dissolve, fulminante: a invenção da voz; Fala-me: luz, concha ardente; As vozes, asas das luzes, libertam-se.

Função // Send Message: efémero/constante = Aguardo a carícia da tua mensagem, erguendo-se impetuosamente, avançando lentamente; Vigio com a cabeça a tua escrita vocálica; Amo-te para que diluas.

Função // Using Google Map: frente/verso = Mapas são redes, portas, e o mar é o leito das partidas, onde tudo emerge; Terra: no oceano que sofre no oceano, nos círculos; Reconheces estes lugares? Ritmos em aflição, um lapso da liberdade no mapa oscilante.

Função // List Contacts: privado/público = Como estar no mundo? Inexorável espasmo de crimes, os gestos em círculos; O círculo dos nomes, a invenção dos fragmentos magnéticos; Imagina: o sono na gravidade da linguagem, o som cultivando um jardim de penas.

Função // Open Browser: real/virtual = No gelado pensamento das tempestades, somos ilusões etéreas; Algo se desvia e abre; Algo se espalha, desagregando-se, e brilha.

Função // Analogue Clock: presente/ausente = Arrasta-se aqui o momento – e seu sentido – onde a noite arde; As horas não flutuam; Vibra! – abrupto, como a galhardia do amor.

Função // Touch: fixo/vago = Do engano do mundo despidos, tudo toca com a sua ferida; Em disformes abraços, como o leite que se entranha na carne; Tocamo-nos todos como as raízes de uma árvore.

Função // Cookie Cache: memória/omissão = És uma cálida sonolência e a cidade, obscurecida pelo sussurro, sempre atónita; Um sofrimento violento acorda onde não te reconheço; Estamos cheios de silêncios.

Função // Take Picture: nítido/opaco = O fotograma, palavra interrompida, fera luzidia; Pó, o nariz docemente arqueado na névoa dos filmes; Os portões pintados, a tua fronte nua: os corpos, os retratos.

Legenda: Imagem de um vídeo caseiro, a desembrulhar o objecto

B) [Fonia]

Uma aplicação web, usando as imagens do fakephone em cima descrito e com o poemario.js (lib em JavaScript de Rui Torres e Nuno Ferreira) a actuar ao nível sonoro, foi programada, sendo activada por um QR Code que acompanha o telefone falso. Esta aplicação web, sendo responsive, encaixa-se nas dimensões dos telemóveis que a ela acedem: são um telemóvel dentro do telemóvel.

O som foi realizado por Luís Aly com o LYRA-8 organismic synthesizer (SOMA laboratory, 2016) e o Mute 4.0 Synth (Mute Bank, 2018). A partir de um conjunto de gravações com esses sintetizadores, Rui Torres criou 23 texturas de som do LYRA-8 com aproximadamente 40 segundos cada, e 23 texturas de som do Mute 4.0 Synth com aproximadamente 20 segundos cada. A voz que lê os poemas é do Nuno M Cardoso (31 ficheiros de som), e o código é “lido” por uma voz text-to-speech , o “US English” de Joanna (119 ficheiros de som). Todos estes fragmentos sonoros são combinados aleatoriamente, em dois canais distintos, tratando-se por isso de um texto sonoro-visual gerado sempre de uma forma diferente.

URL da webApp: https://telepoesis.net/fakephone/fakephone.html

Legenda: QRcode do fakephone4(n)droid

C) [Fagia]

Finalmente, em Barcelona, com Gerard Altaió e Eugenio Tisselli, da Acciones Sonhoras , no dia 23 de Fevereiro de 2019, foram desenhadas e impressas 40 peças em composição tipográfica (23.8x 32.6 cm), com 4 cartões cada (6.5 x 10 cm), destacáveis, com partes curtas dos códigos em causa: 20 assinadas e numeradas sem tinta (apenas pressão, portanto quase invisíveis), outras 20 assinadas com verniz muito claro.

Legenda: Em acção na L’Automàtica, Barcelona, seguido de exemplo de montagem de tipos para impressão de cartões do fakephone, L’Automàtica, Barcelona, 2019. [Fotografias cortesia de Eugenio Tisselli]


Concluindo (ou não)

Da parede de uma galeria para os bancos de um jardim, os fakescripts transitaram de um espaço semi-público e distanciado para um espaço público no qual os transeuntes literalmente se sentavam. Daí de novo para uma galeria, interagindo os visitantes com as almofadas, ainda nelas sentados ou simplesmente abraçados. Finalmente, num telefone falso, essas dicotomias (falsas) entre privado e público atingem o seu auge. O telemóvel é um objecto privado, normalmente colocado no bolso e/ou nas mãos dos seus utilizadores, mas comunicando em rede com o mundo (sendo por isso também público).

Uma poesia digital no espaço – recondicionando a máquina, transformando os dispositivos transparentes em aparatos ilegíveis. Uma poesia que convoca o real e a sensibilidade dos corpos, dos espaços, procurando uma nova condição para a arte, a vida, o humano.

Legenda: fakephone4a(n)droid, da esquerda para a direita: Fagia (impressão tipográfica), Fobia (objecto com folhas de impressão digital sobre acetato e cartão), Fonia (app web no telemóvel).


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