Manuel Portela 17 anos depois: «Não diria que é uma forma de desistência» [Entrevista concedida a Manaíra Athayde]

Texto de Manaíra Athayde sobre a exposição «escreler: 1988-2013»,com entrevista ao seu autor, Manuel Portela. [Texto. Imagens. Ligações]


Este texto, da autoria de Manaíra Athayde, foi originalmente publicado no blog do programa de Doutoramento em Materialidades da Literatura da Universidade de Coimbra em 7-12-2013. À autora, os nossos agradecimentos pela autorização de reprodução.


25 anos de carreira artística se misturam com mais de duas décadas de docência na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Parte desse percurso, onde as problemáticas estéticas partilham do mesmo cariz das investigações científicas, pode ser visto de 13 de setembro a 11 de outubro na exposição «escreler: 1988-2013», a penúltima prevista no ciclo Nas Escritas Po.Ex, que decorre desde outubro do ano passado na Casa da Escrita, em Coimbra.

Em entrevista, Manuel Portela fala sobre como a natureza dos discursos e como a linguagem são trabalhadas em sua obra e de que modo as suas intervenções estão aliadas ao compromisso social e político. Discute ainda a dimensão da presença da leitura na escrita enquanto cerne de seu trabalho experimental e acadêmico, com questões que podem inclusive ser encontradas em seu mais recente livro, Scripting Reading Motions: The Codex and the Computer as Self-Reflexive Machines (MIT Press, 2013), publicado na mesma altura da exposição e apresentado pelo autor no dia 20 de setembro, em sessão na Casa da Escrita.

*Ouça o áudio de cada resposta clicando na indicação abaixo da pergunta.

1. Manuel Portela é o nome incontornável do experimentalismo em Portugal nos anos 90, quando realizou quatro exposições individuais e participou de seis coletivas. O seu trabalho é «uma luz tardia sobre a poesia experimental»?

Áudio: Resposta 1

Manuel Portela (MP) – Essa expressão é usada pelo Jorge dos Reis [professor da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa] num de seus ensaios e eu julgo que ele quer assinalar a relação que o meu trabalho mantém, embora transformando, com as práticas e as formas de alguns dos poetas experimentais anteriores. De certa maneira, eu posso dizer que reconheço essa expressão pensando no meu ponto de partida, que começa em alguns dos poetas que estão neste ciclo [«Nas Escritas Po.Ex»] e alguns outros que genericamente têm sido identificados com esta designação de poesia experimental. O trabalho que eu fiz nesse período, uma parte do qual está refletida na exposição, adota muitas das estratégicas de representação e muitas das técnicas e dos meios que também foram usados por vários poetas do grupo da poesia experimental, embora eu faça num contexto diferente, num contexto técnico e social diferente. Há uma espécie de vinculação a esse programa em alguns aspectos e eu acho que a expressão «luz tardia» quer assinalar isso, essa espécie de revisitação num conjunto de formas (o poema sonoro, o poema visual, o videopoema) que também já tinha sido em muitos aspectos objeto de experimentação ao longo das décadas de 60, 70 e 80.

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Conferência «Sobre a poesia tipográfica de Manuel Portela», realizada por Jorge dos Reis na Casa da Escrita, a 20 de setembro. Ao fundo, a obra «cérebracção» (1991, colagem sobre papel), em que Portela dialoga com o trabalho de Tom Phillips.

2. «escreler 1988-2013» é a primeira exposição que realiza depois de 17 anos sem expor. Esse hiato é uma forma de desistência?

Áudio: Resposta 2

MP – Não diria que é uma forma de desistência. Acho que o trabalho continua a ser produzido, embora não tenha tomado a forma de livro nem tenha tomado a forma de exposição, tomou outras formas… Normalmente era apresentado ao vivo, uma ou duas vezes por ano, e durante esses anos todos nunca deixou de o ser. E há o trabalho também em outras áreas (por exemplo, na tradução, na escrita, noutros campos), que continua noutras direções aquilo que tinha sido feito anteriormente. Eu acho que o interregno de 17 anos é só um interregno de expor, e não de produzir.

3. E o que é que ficou para trás?

Áudio: Resposta 3

MP – Foi interessante fazer essa retrospectiva [com a exposição] porque ela me permitiu também ver uma grande diversidade de técnicas, de meios, de formas, e eu acho que essa é uma característica que está talvez desde o início. Durante os primeiros cinco anos do meu trajeto há essa multiplicidade presente. O que é que ficou para trás? Não sei se ficaram coisas para trás. Acho que há práticas que, embora transformadas, persistem em algumas das coisas que eu continuo a fazer, hoje em dia em interação com meios digitais e em situação de leitura ou de performance em espaços públicos ou nesse tipo de contexto. Eu acho que há muitas coisas que se mantêm. Não sei se alguma coisa ficou para trás… Mesmo certas formas que eram mais persistentes no início, como o poema visual, têm ainda alguma presença. Há um trabalho com a visualidade do texto que eu acho que se mantém, embora esse trabalho se tenha expandido também para a pintura ou para o ecrã, mas esse trabalho com a visualidade do texto é comum, é um trabalho que une quer os trabalhos inicias quer os últimos trabalhos.

4. Nos últimos dez anos tem se dedicado basicamente à performance…

Áudio: Resposta 4

MP – Eu acho que isto também estava de alguma forma presente desde o início. Uma das coisas que eu tomei consciência, mas já há alguns anos, e agora retrospectivamente também confirmei, foi o fato de haver um interesse no meu trabalho em explorar a escrita como notação, e essa notação pode ser uma notação para a voz, para a leitura, para a ação. Eu publiquei algumas coisas no início dos anos 90, fiz várias exposições, e mais tarde comecei a trabalhar com animação digital, e sempre me pareceu que nem o livro nem a tela (se quisermos a parede da galeria) nem o ecrã eram por si só suficientes, porque a essência do trabalho estava na interação que eu estabeleço ao vivo com determinada inscrição ou com determinado processo. E de certa forma muitos dos textos visuais ficam incompletos sem essa componente, mesmo alguns dos textos digitais também. E a performance é uma forma de anunciar essa relação, de tornar presente a dimensão da relação entre o sujeito e a inscrição.

5. As suas performances estão muito ligadas a discursos de diversas naturezas. São performances de discursos já em si performáticos, por assim se dizer?

Áudio: Resposta 5

MP – Muitos dos meus textos, se calhar a maior parte, mesmo alguns dos textos que são visuais, têm como ponto de partida outros textos, outros discursos, outras vozes. O que eu faço muitas vezes é criar uma interação com essas vozes, com esses discursos que são captados na rádio, na televisão, nos jornais, noutros livros. No fundo há sempre uma intervenção minha sobre outros discursos, quer discursos anteriores meus, quer discursos dos mais diversos meios e produzidos com múltiplas intencionalidades, como o discurso da publicidade, da política, da administração, da guerra, uma série de discursos que estão muito presentes no meu trabalho. E a performance, no meu caso, é sempre uma performance que é feita sobre o discurso e sobre a relação que o sujeito mantém com o discurso. É uma ação em que o discurso funciona como uma espécie de inscrição anterior que interpela o sujeito, e eu utilizo frequentemente essa interpelação para tentar recontextualizar os discursos, tentar chamar atenção para a natureza da intenção e das estruturas que estão contidas nos discursos. De certa forma, a performance acabou por ser, para mim, uma forma de ler em público, de ler um voz alta, de dar uma dimensão da presença subjetiva, [da presença de] qualquer coisa que está pré-constituída na linguagem ou na escrita e que precisa dessa inscrição viva, dessa presença viva do sujeito no momento da decifração. Ou seja, eu não vejo o tipo de performance que eu faço como substancialmente diferente daquilo que eu fazia antes, vejo como uma continuação por outros meios.

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«catálogo nº1» (1992, impressão tipográfica).

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«catálogo nº2» (1992, impressão tipográfica).

6. Pelo cariz performático que você desenvolve, como está a explicar, nota-se claramente que a voz é muito importante em seu trabalho. Muitas vezes a parte visual da obra é condicionada pela voz, lembrando-nos da importância de ouvir o que se vê.

Áudio: Resposta 6

MP – Quando eu escolhi o título «escreler» para esta exposição foi também pensando nessa dimensão da presença da leitura na escrita e esse tópico é um dos mais frequentes no meu trabalho. É um tópico que eu vejo não só na forma como eu releio reescrevendo os discursos dos outros, mas também na forma com eu leio reescrevendo muitas vezes as obras anteriores. Em determinado momento eu percebi esse movimento do texto como estando dependente da voz e da forma como a voz criava espaços e ritmos dentro do texto. Esses ritmos estavam, digamos, abstratamente codificados na espacialização do texto, e a voz concretizava, um pouco de certa forma, como uma notação musical. Mais tarde fiz algumas animações desses textos visuais e essas animações eram elas próprias formas de pensar o movimento que nós fazemos como leitores, o movimento de percorrer um texto, as possibilidades de percorrer um texto visualmente. Aquela disjunção e ao mesmo tempo interação que eu estabeleço entre o texto, a animação do texto e a vocalização do texto são formas de pensar esse problema do leitor na escrita, da leitura na escrita. Como a leitura escreve a escrita, como ela se torna presente de novo na escrita.

7. A maior parte de suas obras incide sobre essa problemática, as animações que acabou de mencionar são um exemplo disto…

Áudio: Resposta 7

MP – Há vários momentos na exposição em que eu tento chamar a atenção para esses diferentes graus e formas de leitura, em que o texto visual é lido através de uma animação ou que uma animação ao mesmo tempo tenha uma vocalização, ou então o inverso (há muitos casos em que o texto vai sendo gerado silenciosamente no ecrã palavra a palavra). Isso coloca o leitor perante uma presença do texto que mostra a forma como o olhar do leitor ativa o próprio texto, a forma como o olhar do leitor vai gerando o texto para a sua própria leitura. Eu acho que estas diferentes formas de pensar a presença da leitura na escrita são coisas que estão presentes de diversas maneiras ao longo de muitos trabalhos, incluindo algumas das performances recentes, e uma das coisas que também é muito frequente nas performances é a utilização de gravações de outras vozes e interação da minha voz com essas vozes, pelo processo de repetição, fragmentação. Quer dizer que o problema da leitura e o efeito da inscrição sobre o sujeito é pensado também através da voz e da forma como a voz obedece a um programa e, ao mesmo tempo, é livre na definição de um padrão de leitura desse programa.

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Antigos poemas visuais de Manuel Portela foram posteriormente animados e vocalizados. Alguns estiveram expostos em ecrãs espalhados por diferentes espaços da Casa da Escrita durante a exposição.

8. Essas preocupações também estão no cerne de seu trabalho acadêmico, como podemos ver em seu mais recente livro, Scripting Reading Motions: The Codex and the Computer as Self-Reflexive Machines [MIT Press, 2013]. Assim, de que forma a sua produção artística absorve a sua análise ensaística, a sua investigação crítica, e vice-versa?

Áudio: Resposta 8

MP – Esse aspecto é um aspecto de que eu me dei conta também ao longo dos anos… De que muitos dos meus interesses de investigação eu tinha desenvolvido também através de determinado tipo de intervenções formais, estéticas, sobre a linguagem, sobre a visualidade, sobre a voz, sobre a audição. No fundo, há muitos elementos que estão hoje presentes na investigação e alguns dos objetos de investigação que eu escolhi e alguns dos textos que eu escrevi que são comuns ao trabalho de investigação artística também. Aliás, foi por isso que eu decidi falar [em sessão ocorrida a 20 de setembro, na Casa da Escrita, durante a exposição «escrelever»] sobre o livro que eu publiquei, que tem esse tópico. O livro analisa uma série de obras em meio computacional e em meio impresso que desenvolvem processos reflexivos sobre a leitura, obrigam os leitores a pensar como eles interagem com os textos, o que acontece quando eu estou a mexer num livro de certa maneira ou a mexer num texto digital de uma certa maneira. E esse problema, que pode ser transformado num problema teórico, num problema de investigação, ao mesmo tempo também tem sido um problema estético, um problema de investigação formal do ponto de vista da criação de formas de texto visual, de texto sonoro, de performances, de pintura que pensam o problema da leitura, da relação da leitura com a visão, com a imagem, com a perceção. Ou seja, digamos que tem havido uma retroalimentação entre aquilo que eu faço como investigação estética e aquilo que eu faço como investigação científica.

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«escrita» (2013), instalação concebida para a exposição na Casa da Escrita. Uma espécie de linha do tempo é formada por vídeo, montagem sonora, manuscritos e livros do artista ou edições em que ele participou, bem como por peças de computadores de diferentes alturas.

9. Quem percorre «escreler» percebe a recorrência às molduras, o que ficou ainda mais evidente no discurso em sua performance na abertura da exposição, quando afirma haver sempre «o jogo com a moldura, jogo que é uma luta». A poesia experimental é um jogo com essa moldura?

Áudio: Resposta 9

MP – Num certo sentido, eu penso que poderia ser uma definição. No caso do meu trabalho, nós podemos pensar sempre que, no fundo, este é um dos problemas da arte, que é criar uma forma de representar o mundo que permita ver a própria representação e, portanto, permita ver a moldura, permita ver a forma através do qual o mundo se objetifica de uma determinada forma. No caso da poesia experimental, uma parte dessa moldura são as próprias formas poéticas. As próprias convenções e as formas de representação, e a experimentação com as formas, com as convenções são meios através dos quais a moldura se pode tornar explícita. Obviamente revelar uma moldura é construir outra moldura e, portanto, esse jogo é um jogo, de certa forma, infinito, porque qualquer perceção cria sempre qualquer coisa que está fora de si e, portanto, qualquer coisa que essa perceção não permite apreender. Quando eu estava a falar sobre a tentativa de olhar retrospectivamente para aquilo que era o trabalho desses 25 anos, eu estava a falar disso, dessa dificuldade em conseguir encontrar um olhar que não coincida com o nosso próprio olhar. Esse paradoxo, de alguma forma, é o paradoxo que está em muitos trabalhos, que tentam criar essa estranheza com o próprio ato de perceber o objeto, que tentam criar uma estranheza formal, por exemplo, no caso daquele ciclo de pinturas que eu chamei «Ó pus», em que o quadro desapareceu e é então substituído pela descrição do quadro. Portanto, o que nós temos é uma moldura que tem uma descrição do quadro, a nos remeter para um sistema artístico de construção de perceção da obra de arte. Mas a pintura não existe, a pintura tem que ser imaginada a partir da descrição que é oferecida da pintura e essa é uma forma de jogar com a forma como a perceção da pintura é construída através da descrição da pintura.

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Quatro dos seis quadros que integram a série «Ó pus» (2001).

10. Muitas vezes enquadra-se algo não pelo que se quer no enquadramento mas pelo que se quer deixar fora dele?

Áudio: Resposta 10

MP – Sim. Eu acho que esse é um aspecto essencial no meu trabalho. O que eu faço é trazer para dentro da moldura aquilo que está ao lado da moldura. No fundo, é sugerir essa possibilidade, o que acontece se nós trabalharmos fora da forma. De certa forma, isto é um paradoxo, pois não é possível trabalhar fora da forma, nós temos que construir uma forma, mas é possível representar como poético aquilo que não é percebido como poético, e essa representação do não poético como poético é uma forma de fazer isso, de trazer para dentro do enquadramento aquilo que está fora do enquadramento. Esse processo é um processo obviamente dialético, infinito, é um jogo, porque o reenquadramento por si próprio deixa de fora qualquer coisa. Não é possível nenhuma representação esgotar a representabilidade de qualquer coisa, e qualquer representação enuncia os seus próprios limites enquanto representação, algo a excluir aquilo que esta fora dela. No caso do enquadramento, nós podemos ver isso nos discursos. Muitos dos meus textos são construídos a partir de discursos que em si mesmo nunca seriam apreendidos como poéticos, às vezes até quase antipoéticos. São discursos retóricos, discursos persuasivos. São discursos que têm uma lógica de funcionamento diferente da lógica de funcionamento do discurso poético, mas ao mesmo tempo é possível apreender o discurso na sua dimensão social, na sua funcionalidade social e trabalhá-lo de maneira a recuperar qualquer coisa da poesia que pode existir nesse discurso.

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Performance «escrileituras», na abertura da exposição «escreler».

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«Como é que eu gostava que fosse e imaginava que podia ser» (1994, 500 x 500 cm). O projeto da pintura-mural (na imagem) acabou por ser animado e integrou a performance «escrileituras», como se pode constatar na imagem anterior.

11. De que modo o humor está na forma como trabalha esses discursos? Afinal, o humor é um recorrente recurso em seu trabalho.

Áudio: Resposta 11

MP – Eu acho que o humor é muito importante. O humor faz parte desse processo de jogar com a moldura, jogar com o enquadramento, jogar com as expectativas. O humor em si mesmo é um processo que é muito reflexivo, porque cria a perceção de dois planos diferentes, no fundo um plano daquilo que seria uma determinada expectativa, um determinado enquadramento, e depois um plano que transforma esse enquadramento e transforma essa expectativa numa coisa diferente, quer por oposição, por ironia, por paradoxo gera essa perceção modificada do objeto. No fundo, o humor é um instrumento para produzir o distanciamento e perceber a moldura, perceber o enquadramento, e perceber que o discurso é válido dentro dos limites desse enquadramento, não é nada de transcendente.

12. No seu trabalho há um método recursivo de organização desses discursos?

Áudio: Resposta 12

MP – Não sei se há um método, mas há um conjunto de formas de proceder que… No fundo, a questão fundamental é esta: quando recebemos uma forma, seja ela qual for, pode ser um programa de televisão, pode ser um poema, um discurso do primeiro-ministro, quando recebemos uma forma essa forma tem uma determinada estrutura, um determinado poder de persuasão sobre nós. O processo de trabalhar o discurso que eu tenho desenvolvido é um processo que consiste em criar uma espécie de estranhamento relativamente a essa forma, que permite apreendê-la doutra forma, fora da intencionalidade que ela contém e muitas vezes isso é muito simples, basta repetir. Às vezes, só a repetição do discurso já implica esse processo de estranhamento, de desenquadramento, de desintencionalização daquilo que estava contido nesse discurso.

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«habitação social» (1994, impressão sobre pvc), obra que integra a série «estruturas de construção» (1988-1994).

13. E de como se vale da linguagem nesse processo de estranhamento e desenquadramento?

Áudio: Resposta 13

MP – No trabalho que eu faço sobre os discursos – e o meu trabalho é muito mais sobre os discursos do que sobre a linguagem – eu tomo já a linguagem como conjuntos organizados de instruções, de injunções que nos solicitam e que nos pedem para agir de determinada maneira. No fundo, a linguagem é sempre tratada como uma forma de ação nos meus textos e essa dimensão é uma dimensão que me permite tratar de muitos aspectos da nossa realidade social, da nossa realidade política ou mesmo das nossas interações afetivas ou pessoais, porque muitas das nossas relações são constituídas através desses discursos e da forma como os discursos nos posicionam em relação aos outros. Nessa medida, o trabalho de composição, de repetição, de fragmentação do discurso é um trabalho de revelação dessa dimensão ativa e social da linguagem. Eu acho que nesse aspecto algum do trabalho que eu faço tem uma projeção que não é exatamente a projeção estritamente de experimentação da linguagem ou com o meio no sentido mais formalista, tem uma outra dimensão que eu acho que é mais de compromisso social, de intervenção política.

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«bê-a-bá’» (1996). O projeto da pintura-mural (na imagem) está no convite da exposição.

14. Você tem alguns trabalhos que são poemas-murais (ou pinturas-murais) inspirados nos grafites ou mesmo nas bandas desenhadas. De que forma a arte urbana, geralmente associada a intervenções sociais e políticas, interessa ao seu trabalho?

Áudio: Resposta 14

MP – Não é tanto intervenção no sentido de ter um programa de ação, mas é no sentido de pensar que a arte tem uma dimensão de comunicação com os outros, com a comunidade, de intervenção do ponto de vista de pensar a sociedade, pensar como é que nós queremos viver, como queremos organizar as nossas relações. Aqueles murais, em particular, foram feitos em contexto escolar e qualquer um deles tem uma dimensão de reflexão sobre a escola, sobre a função da escola e o papel da escola, ao mesmo tempo como instrumento de libertação e de aprendizagem, de conhecimento, no fundo de apropriação da letra e da língua como instrumento de conhecimento do mundo, mas também enquanto consciência da linguagem, da escola e da instituição como instrumentos de opressão. Não é por um acaso que muitos dos meus trabalhos são também sobre o alfabeto, e, portanto, pensar o alfabeto como parte desse processo de submissão à ordem da letra, mas ao mesmo tempo como qualquer coisa que tem potencial de libertação, de expressão e que pode ser apropriado, pode ser transformado, pode ser objeto de invenção. Essencialmente é nesse sentido e eu acho que gostaria de ter feito mais projetos (e se calhar haja ocasião futura) de arte pública, trabalho no espaço urbano, noutro tipo de espaço público.