Um outro desenho do vulto

Neste texto relacionado com a exposição e residência artística “Progestos_Obgestos, 1972-2012”, para a Casa da Escrita, em Coimbra, António Barros responde a uma constelação de questões geradas por uma visitante, desse modo contribuindo para a investigação da Performance Art em Portugal. [Texto. Ligações]


U m   o u t r o   d e s e n h o   d o   v u l t o


Partindo de uma visita de observação formulada a “Progestos_Obgestos, 1972-2012“, residência artística que editei para a Casa da Escrita, em Coimbra, como parte integrante do ciclo “Nas Escritas POEX“, procuro responder a uma constelação de questões geradas nesse contexto por uma visitante (26-12-2012), pareceres aferidos para resultarem como potencial contribuição ao seu estudo que investiga em Portugal domínios particulares da Performance Art.

Nesta territorialidade temática e processual a entrevista começou por procurar uma resposta enunciatória da caracterização de um rosto. De um perfil de identidade de autor. E é na busca do desenho desta causa em propósito que as primeiras palavras procuram agora um fazer-se desenhar.

Partindo de algumas denominações editadas, é de observar que o que surge como narrativa de perfil, enquanto agente do trabalho que venho desenvolvendo no território das artes, faz-se na presente condição enunciar como o de estarmos perante um autor em compromisso com a performance art, ou mesmo com os tempos geradores da mais acesa implementação desta disciplina em Portugal (“António Barros é um dos nomes relevantes do contexto da poesia experimental e das artes performativas em Portugal”, João Fernandes, “Artistas Portugueses na Colecção da Fundação de Serralves”, 2009).

Nessa procura de condição distintiva – modo de fazer encontrar um referente de leitura e enunciação orientadora de identidade – julgo, no bom gesto do seu modo, a verdade obrigar uma análise aturada, tudo para que se aproxime de uma definição com rigor bastante.

Nesta resolução autoscópica, e em alternativa à denominação de Artista, vejo-me a preferir a condição de Artor (Jean Clarence Lambert). De um outro modo, num lado contrário ao de formular atitudes Artísticas, colhi um gerar de “Artitudes” (Abraham Moles). Em alternativa a uma sacralização condensada da Arte, almeja-se uma “Arte de situação” (a de Guy Debord, ele o Autor, muito para além da “Sociedade do Espectáculo”). Buscando assim a minha lâmina de autenticidade assumo uma entrega decidida na gestação de “Progestos” no lugar de “Performances”, e a criação de “Obgestos”, e não de meros “Objetos de Arte”.

Mas será esta necessidade a de uma causa genomática? Ou tudo resultou de um cenário de contaminações – de Cultura?

Contaminações como as geradas na senda de António Areal. E não terá sido a genialidade de Areal já um premonitório gesto performativo a querer contaminar? Contaminações como as de António Aragão – este já tão performativo nos seus articulados fundacionais da “Poesia experimental”? E Oscar Niemeyer – não seria todo o seu comportamento já um vulcão performativo também?

Privei com os três na ilha – Areal (na moldura do seu exílio), Aragão (em convulsas migrações) e Niemeyer (na sua visita secreta). E herdei um marco de desenho do estar, numa anatomia do estar. Nos vultos de um mapa de Vida. E de como a Arte, em Vida (e a Vida em Arte), se anunciavam já. E desde aí, ser, ou poder ser, uma outra coisa.

Como processo vestibular, e para procurar sentido ao discurso aqui exposto e em estudo, deveremos talvez revisitar os anos setenta. E assim, nessa orientação, logo nos cruzamos nas preOcupações genomáticas da performance art, nessa geografia com José Ernesto de Sousa, e a assertiva procura do seu conceito primeiro, então, ainda vivo de uma territorialidade de enigmas. Fernando Calhau e os seus desígnios, não da performance do equipamento motor, mas os da “performance do próprio autor”. Ou mesmo Jorge Lima Barreto e as suas crónicas convulsivas num r(h)umor severamente catártico (JL, Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa).

Para continuar a leitura é de observar que, já na década seguinte à antes enunciada, há um testemunho que resultou consequente, pleno de continuadas diligências a seu tempo, e a valer portanto uma visitação também. Refiro-me ao estudo de Isabel Carlos – “Performance ou a arte num lugar incómodo” (tese de mestrado em Comunicação Social, com orientação de Adriano Duarte Rodrigues, Universidade Nova de Lisboa, 1992), objeto portador de inquietações diversas, interacionantes, e que encontraram em Coimbra um forum comum no Círculo.

Mas o Círculo (leia-se, então, CAP – Círculo de Artes Plásticas, Coimbra, hoje, e desde 1980, CAPC, Círculo de Artes Plásticas da Academia de Coimbra), como comunidade artística vocacionada para a experienciação plural, resultou contemplado com contributos significativos de autores portadores de grande força inventiva e sentido de Arte. Esses, que tanto resultaram geradores de uma talvez (im)possível identidade de culto das “artes em performance”. Foram eles, entre mais, João Dixo; Albuquerque Mendes; Fernando Pinto Coelho; Armando Azevedo (quatro artistas enunciados como uma das constelações mais vigorosas do – performativo -, Grupo Puzzle); Túlia Saldanha (com obra publicada e revisitada pelo Centro de Arte Moderna, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, e no Museo Vostell Malpartida, Cáceres, 2014); o Artitude:01 (um programa de revista de intervenção performativa que criei, e partilhada com Isabel Pinto, Rui Orfão, José Louro, João Torres e Isabel Carlos); Assunção Pestana (premiada na área da vídeoperformance pela Fundação Calouste Gulbenkian); GICAPC, o Grupo de Intervenção do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra (uma das mais originais referências da “Alternativa Zero”, 1977, Galeria Nacional de Arte Moderna, Lisboa, projeto curatorial de Ernesto de Sousa) grupo mais tarde titulado com a marca nominal de “Cores”, operação artística cujo coletivo e seus intervenientes (António Barros, Armando Azevedo, Assunção Pestana, Manuela Fortuna, Rui Orfão, Teresa Loff e Túlia Saldanha) mereceram homenagem pública a partir da 1.a edição do Festival Internacional das Artes da Performance “Line Up Action” (Coimbra, 2010), iniciativa com Direção de Fernando Matos Oliveira (Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Estudos Artísticos) e de António Azenha (Associação Artística ICZero).

Homenagem que se fez testemunhar com a publicação, pela mesma estrutura organizativa, de um livro conjugando diversos estudos e depoimentos de leitura oportuna para entendimentos, outros, da causa performativa.

Se é meritório sublinhar exemplos dos diferentes agentes que resultaram interventivos na comunidade do Círculo, julgo fambém oportuno tornar inteligível algumas das expressivas contaminações colhidas.

Aí, nessa paisagem de influência e filosofia, há uma Cultura fundadora gerada pelo “Movimento artístico” assumido pelo Grupo FLUXUS, coletivo aqui nutrido com a intervenção ativa de Joseph Beuys, Robert Filliou e Wolf Vostell, artistas, estes, tantas vezes a responder aos desafios de José Ernesto de Sousa. É também aí que reside a história da “escultura social”, do “happening”, e da “décollage_dé-coll/age”. Mas não são menos significativas as experienciações ensaiadas com Julian Beck e Judite Malina, que, com The Living Theatre, privaram connosco – com a comunidade do Círculo – em diferentes operações de Arte (“Ser Moderno em Portugal”, Ernesto de Sousa). Como é justo referir a oportunidade de eu ter recebido – numa dinâmica exploratória que no CAPC convocou também princípios da performance art – a genial compositora e performer Meredith Monk. Esse valor incontornável da performatividade da voz como instrumento musical, e seus referentes conexos (BUC-Bienal Universitária de Coimbra).

Se com Ernesto de Sousa comecei por integrar a “Alternativa Zero” para depois fazer enunciar as minhas Artitudes (vindo a pertencer ainda à comunidade artística “Diferença”, Lisboa, em resposta ao seu desafio), com Egídio Álvaro semelhantes circunstancialidades se fizeram enunciar. Era um tempo de “alternativas” plurais, e entendiam ambos que esse era o meu lugar. Era todo um tempo da Performance Art e de todas as convulsões que lhe surgiam conexas. E eu estava mais por aí, nessa galvânica cintura de irreverências. Inscrevi as diferentes edições de “Alternativa” com a assinatura curatorial de Egídio Álvaro que me colocou nos sublinhados da AICA a par de António Areal como seu autor eleito (Mostra da AICA-Associação Internacional dos Críticos de Arte, Sociedade Nacional de Belas Artes, Lisboa).

Em Mont Rouge visitei Egídio Álvaro (2014, Paris) para o integrar na constelação de “Andante”, nessa galeria de afetos, na escultura social que interpreta razões dinâmicas múltiplas do quanto conjuga a peça “ExPatriar”(obra premiada, 2013, coleção Fundação Bienal Cerveira). De, e para Egídio Álvaro, estudou a sua obra e espólio documental Ana Luísa Barão. Um retrato em construção, mesmo quando a mente se dilui como um vaso de água.

Foi ainda contributiva, na difusão e consciencialização dos modos de Arte no Tempo aqui sinalizado, a iniciativa – “Dois Ciclos de Exposições: Novas Tendências na Arte Portuguesa e Poesia Visual Portuguesa”, curadoria de Alberto Carneiro e António Barros, Galeria CAPC, Ano de Actividade 1979-80, Círculo de Artes Plásticas de Coimbra. Obras geradas em territorialidades que poderemos considerar, também, de sensibilidade performativa (inscrevendo a presença de artistas com trabalho na comungante fronteira desses domínios) como Helena Almeida, Ana Hatherly, Julião Sarmento, António Palolo, José de Carvalho, António Barros, António Aragão, Alberto Carneiro, Silvestre Pestana, Alberto Pimenta, Angelo de Sousa, Álvaro Lapa, e ainda talvez o mais assumido como artista da performance – José Conduto.

É neste alinhamento – e dando continuidade a uma atividade de socialização da, e pela arte no lugar -, que a operação vem a gerar na cidade novos formatos laboratoriais onde surge com meu empenho, e compromisso fundador, a revista experimental Artitude:01. E como galvanização das suas práticas, e procuras, o simpósio “Projectos & Progestos” (“Esta danada caixa preta só a murro é que funciona”, objeto-livro, edição da Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006, resulta aqui como oportuno contributo a fazer testemunhar o legado).

Em “Projectos & Progestos” artistas de domínios diferenciados, referências internacionais das Artes em Performance, entre 1980 e 1985, deslocaram-se então a Coimbra para uma partilha da reflexão sobre a desafiadora tendência para um devir das novas linguagens da Arte. São alguns dos nomes que surgiram a formular contributo: James Coleman, Nigel Rolfe, Julian Maynard Smith, Stathion House Opera, Ken Gill, The Basement Group, Peter Trachsel, Ernst Thoma, Alistair MacLennan, Mineo Aayamaguchi, Dominique Labaume, Frank Na, Erna Nijman, Plassum Harel. Como também participações outras, a distância, com apresentação de obras, conceitos e ideias de autores na dinâmica dos “Artist-Run Spaces”, como as de Gzregorz Sztabinsky, Rolf Lobeck, Sabine Hartman, Lydia Schouten, Wolf Vostell (participação conjugada com o meu trabalho no Museo Vostell Malpartida) e Pina Bausch (a partir do meu tempo de residência em Wuppertal, operação “Vostell Fluxus Zug_Eine Mobile Kunstakademie”). E portugueses, sempre com presença viva, como Ricardo Pais, E. M. de Melo e Castro, José de Carvalho, João Vieira, Alberto Pimenta (em “Conductus”, com Isabel Carlos, José António Bandeirinha e Jorge Vasques) e ainda, entre muitos outros, Jorge Lima Barreto (vendo testemunhado em Coimbra o seu empenho com o livro, o primeiro da coleção Contaminações – “John Cage, Música Fluxus e outros gestos da música aleatória em Jorge Lima Barreto”, obra que assinei, e que com apresentação de Emanuel Dimas de Melo Pimenta, músico e compositor brasileiro que trabalhou com Cage, foi lançado numa edição Alma Azul, na Casa da Escrita, em 2013, Coimbra).

Consequência e colateralidade da intervenção constante sobre a cidade, e a sua sensibilização para uma socialização com referentes das “Artes em Performance”, foi o Projeto “Califa Tempo de Cultura” (Direção artística que assumi), e onde foi formulada a apresentação da obra emergente dos então múltiplos novos autores. Valores que resultaram revelação, a seu tempo. Nomes como Manuel Portela (Performance e Literatura experimental), Nuno Cardoso (Performance e Teatro) e Albrecht Loops (Performance e Música electroacústica).

Performatividades outras, como as resultantes da/na moda (do traje às travestizações do corpo comprometido) com peças de autores como Dina Luís, José António Tenente e Ana Salazar (autora que galvanizou a razão performativante do meu desafio para a criação de um alternativo traje académico para a Universidade de Coimbra, criações com publicação na revista Via Latina, publicação que coordenei para a Academia de Coimbra) vigoraram ainda nesta mesma contextualidade. Toda uma motivação surgida em procura de condições suporte potencialmente geradoras de razão, e também as da catarse performativa.

Mas após a ebulição destas resgatadas diligências que resultados me permite a memória tangível? E o que ainda, aqui, se quer fazer enunciar?

Depois de tão vivenciadamente me ter feito confrontar com as obras de Marina Abramovic e Ulay na sua esculturalidade solene, e ter experienciado a mesa acústica de Laurie Anderson (Stedelijk Museum Amsterdam), ou o móvel de reserva e silêncio de Jochen Gerz (Goethe Institut, Alemanha), tive necessidade de encerrar um ciclo. De procurar observar, na obra em público, uma disponibilidade que é essencial para residir num contexto que é procura de excelência. Uma sublime arte de comportamento. E neste norte de consciências reservo-me, olhando para a produção lusa, sobre três autores vivos cujas obras (e numa minha observação como sendo sempre a primeira) se enunciam fundamentais: Helena Almeida, Alberto Carneiro e Jorge Molder. Mas não serão estas exímias narrativas exemplos de uma performatividade maior nas artes da imagem? Contemplação bastante? Ou o Sublime em Verbo?

Para Alberto Carneiro – e na cidade de Coimbra como sede e suporte do elogio público que entendi dedicar a este artista maior das Artes do Conceito, e das Artes performativas também -, assinei a direção artística da iniciativa “Alquimias, dos Pensamentos das Artes, Encontros de Arte, Coimbra 2000”.

Na conjuntura do evento que inscreveu cerca de uma centena de artistas de diferentes gerações da Arte Contemporânea portuguesa, uma Mostra antológica da obra de Alberto Carneiro sublinhou a nobre dimensão da sua Arte (“Alberto Carneiro – Arte, Corpo, Natureza, Presença e Percurso Antológico 1969/98”, 10 exposições, Leituras, Documentos). E também porque a Academia de Coimbra foi o seu espaço laboratorial de eleição onde, com grande autoridade pedagógica e artística, conduziu o Círculo (CAPC).

Em Portugal é talvez na dança contemporânea que a performance dos comportamentos melhor se encontra e veio a resultar mais consequente.

Numa prática continuada, e de conjugada comunhão, trabalhei em diferentes projetos numa convocação de plasticidade para a Dança.

O exercício primeiro foi “Memórias Recentes e Refrações do Festival”, coreografia de Paula Massano, com Carlos Zíngaro na Música, e António S. Ribeiro no Texto, tendo eu criado a componente Plástica da operação artística (BUC/SITU, 2-10 maio, 1986, Coimbra).

Paula Massano construiu uma obra genuína, rica de ícones de uma etnografia africana invulgar, arte de referência para o seu tempo. Antes havia Paula Massano trabalhado em Nova Iorque com Merce Cunningham.

Um ano depois a obra “Lisboa-Nova Iorque-Lisboa”, com Paula Massano e Margarida Bettencourt na Direção de Arte do programa, surgiu a Realização com Dança de Francisco Camacho (coreógrafo ainda hoje com grande vigor, resultou num soberbo escultor do seu próprio corpo, performatizando-se), José Laginha, e Filipa Pais (também no alinhamento de um estudo com Merce Cunningham). A Música foi de Carlos Zíngaro, o Texto de António S. Ribeiro, num programa onde também assumi a Direção Plástica da Obra.

Desta convergência de estudos, e experienciações de arte, resultou o projeto CIM-Centro de Investigação e Movimento (Paula Massano, António S. Ribeiro, Carlos Zíngaro e onde me fiz inserir, também, como um dos fundadores da arquitetura pluridisciplinar do programa, Lisboa).

Nesta moldura de memórias a procurar diálogo possível entre a Dança Contemporânea e a Performance Art, há um registo singular que ousei editar (quando assumi conduzir a revista Via Latina, número: Inverno 1985-86, Academia de Coimbra). Todo o motivo era uma página completa: “Telefona-me”. Paula Massano, fotografia de Guilherme Silva, e Texto de António S. Ribeiro (para “Solos” de Paula Massano e Nuno Carinhas, IV SITU, 1984, Coimbra). E aqui esta página (mancha a preto/branco sobre 31,3 x 31,3cm) insinua-se e ensina. Há toda uma ressonância de alma no que os olhos conseguem ver. Um corpo ausente da beleza e da sensualidade. Antes todo um vulto sensorial, e bastante. Uma escultura para além da escultura. Luz que o corpo porta e transporta. E não será isso uma pretensa enunciação da Performance em Arte, apenas?

É plural a galeria de eleição a que me permito fazer sublinhar nesta procura de consciência. E tudo para além do compromisso, sempre tão plástico, de Vera Mantero, João Fiadeiro e, Ana Borralho & João Galante. Mas neste convulsivo ancoramento de excelências a quererem ser “Performance”, cumpre-me sublinhar Paulo Ribeiro quando, e para além da utopia, o apresentei à cidade no palco fora de palco com a obra “Ao Vivo” (Jardim da Sereia, “Alquimias, dos Pensamentos das Artes, Encontros de Arte, Coimbra 2000”).

Visitações múltiplas a territórios diversos, esses que convocam saberes das artes do comportamento, também são possíveis de fazer cruzar na paisagem exploratória que aqui se infere. E nessa leitura, as experiências em torno do que procurou afirmar a obra de Jerzy Grotowski parecem-me fundamentais. Não que seja possível con_fundir os princípios grotowskianos com a performance art. Grotowski ao ter tão aturada e genialmente feito diferenciar o “actuante” do “actor”, nunca aceitaria que performance resultasse como uma linear herança desses princípios. Mas poderemos considerar, contudo, que a obra de Grotowski abriu caminhos únicos e gerou toda uma soltura que resultou contributiva para uma chegada mais fluida da performance art. Formulei várias situações em contexto com esta paisagem de preocupações. De vivenciações, e mais concretamente na experienciação das dinâmicas de um acto (ACTO, Instituto de Arte Dramática, com Christine de Villepoix e Filipe Pereira. “Claridade dada pelo tempo”, de Mário Henrique Leiria e “Hinos à Noite”, de Novalis, com o seu sempre conceito gerador, foram as dinâmicas que conduzi nesta contextualidade com eleição, e foram as que aqui mais atenção me mereceram).

Também neste sentido exploratório, e no alinhamento seguinte, contribui na gestação e identidade operativa da comunidade artística ARexploratoriodasartes (comigo surgiu no projeto Lúcia Ramos, Benedict Houart, Sandra Resende e Rui Soares, Coimbra) onde a conquista de referentes culturais outros, também a Oriente, tiveram uma vitalidade singular com uma revisitação do teatro nipónico de sentido Kabuki. Também novos estudos resultaram aqui ativos, levando a que parte do coletivo do AR se deslocasse para Vilnius para trabalhar com Eimuntas Nekrosius na busca de uma “altura maior para o seu céu”.

Numa revisitação do conceito (não do feito, mas do conceito) onde as “artitudes” e a “escultura social” convocam a palavra, e a palavra gera toda uma galvanização situacionista, procurei na “literatura experimental” um percurso que revisita modelos desenhados no tempo, e para um tempo que procura reinventar a todo o tempo a soltura. E é aqui também que poderei enunciar alguns gestos mais recentes.

Para responder a um desafio de leitura pública, zelando no lugar das vivências urbanas, operei uma visitação galvânica do texto resolvido numa inédita artitude (“Anulação do Tempo ou o Poeta Ausente”, a partir do texto “Ruy Cinatti em Timor e algures após cinco anos sem notícias”, de Sophia de Melo Breyner Andresen, Projeto Galáxia Camões, 10 junho, 2013). No mesmo sentido operativo, e para responder a um desafio do Círculo (“Aula Vaga”, CAPC, “1.000.051 Aniversário da Arte”, 17 janeiro, 2014) fiz gerar, assumidamente, uma artitude e não uma performance, procurando aí fundamentar publicamente, para além do gesto, as suas diferenças (manifesto em De “Os anéis e os dedos” a “Aula Vaga”). Um móbil contidamente irreverente tudo resolvendo a partir de um texto que “ensinava o filho a engolir a saliva para iludir a fome”.

Para iludir a fome, e a fazer jus de uma arte de situação, de uma clássica revisitação situacionista, exaltei a “Lástima”. “Lástima” foi uma constelação operativa múltipla, “tarefa aberta” que conjuga intervenções e comportamentos diversos. Num primeiro tempo: a pro_vocação (emissão de 40 textos – 40 cravos negros – perante a Assembleia da República – 25 de abril, 2014). Num segundo tempo a “escultura social” na edição dos textos em múltiplo (40 leitores formulam uma apropriação de cada um dos textos para o fazer inscrever no seu espólio gramaticalizando e assumindo-se como contaminado palavrador a querer contrariar a dimensão perecível das causas) performatizando. Convulsivamente performatizando.

Performance não é certamente quadratura de círculo, mas o círculo gerado pela rotatividade do triangulo – e se nessas triangulações advogo para meu conforto, porque me confortam, as obras de Helena Almeida, Alberto Carneiro e Jorge Molder, no outro rosto lunar há um triângulo também. Mas um outro.
Nele, no seu primeiro vértice, habita essa imagem matriz de “Telefona-me”. Telefona-me! Eram essas sempre as últimas palavras de Paula Massano mesmo a denunciar nos olhos a dúvida em certeza que a incerteza afogou. Toda uma fatal visitação do vácuo (quando a mente se diluicomo um vaso de água).

No segundo vértice, a imagem pálida de José Conduto na sua última performance antes de ser colhido pela morte. Nunca consegui apagar esse vulto dramático. Esse cenário amargo.

No terceiro vértice, a personagem autêntica de “aL(a)ma“. Não a personagem, mas o ser que lhe deu sentido. O seu ser sentido. Em performance, sobre a terra, a mulher libertava o seu leito afundado na torrencialidade (20 de fevereiro, 2010, Alto da Pena, Ilha da Madeira). Imagem que convoca um momento único do cinema de Guy Debord, esse quando a criança ao ser engolida pela lama se despede da mãe. Essa imagem é uma ferida que teimosamente me acompanha. Como uma faca enfiada no peito.

Mas Performance não é uma arte, antes um sangue que se tornou sémen, um sémen que se tornou sangue. Um elixir de condição. Condição de vida. De Vida em Arte. Ou será todo o seu contrário na magra navegação do Pintor? Todo um frio. Um frio metálico ao olhar a paragem do Bailarino no abismo da ribalta. Aí os pés em pedra fundem-se na lama de gelo. Apaga-se o movimento. E a certeza. Não será esta vítrea razão a Performance? O vago sentido do Bailarino-Pintor que queria ser de si a sua própria alma? Ou não será esta performativa condição a vontade que se desenha entre o vulto e a sombra – uma máscara para o pudor?


António Barros, Coimbra, 11 outubro 2015