Das origens

Quatro perguntas nos bastidores da construção da Arte na razão do Lugar. [António Barros procura responder]. Com imagens de ‘Florigen’ e ‘Valsamar’, e “O mar, o mar”, de José Tolentino Mendonça. [Texto. Ligações. Imagens]


1. Há uma identidade do Lugar gerada na moldura genomática de uma ilha atlântica – Madeira?

1′. Quem visitar a poesia dessa geografia em Herberto Helder, José Agostinho Baptista ou José Tolentino Mendonça, colhe a vitalidade dessa insularidade capaz. E há uma pureza ‘natura’ também. Essa captada por Lourdes de Castro numa encenação incandescente do corpo habitante para além do Lugar. O corpo que se exorciza para longe da moldura. Para além da ilha. E cita Lourdes as palavras de Issa – “Caminhamos no tecto do inferno e olhamos as flores”.

Mas há ainda a visitação e as suas marcas contagiantes.

António Areal foi lá [à Ilha], a seu tempo, buscar um vulcânico vigor num dos tempos mais ‘ardilosos’ da sua vida e obra. Vulto que me ‘contaminou’. Era Areal uma visita lá de casa.

Foi nessa atmosfera que, no desenho do meu percurso, resultou um norteamento primeiro. Um caminho ascenso sem retorno. Só depois é que o negro basáltico da ilha, da insularidade convulsiva, encontrou no ‘luto do Ser’ – esse que Coimbra ainda ancora -, um desafio contínuo. Um ‘lumen’ que obriga ao Ser, fazer-se transcender a todo o tempo. Transfigurando-o. Procurando o Ser, Ser em Arte. Uma Arte ‘comoVida’. Uma comoção geradora de objetos de contemplação. Transitivos. Identitários. Distintivos de Si. “Além” do quanto de Si.

“Caminhamos no tecto do inferno e olhamos as flores” até à razão da sua origem. Nessa procura. Até ao seu sentido florigen.

“Florigen”, 2005 [a peça escultural em modo texto], enuncia (a partir de Jean Genet quando nos diz no ‘Journal du Vouler’: “existe pois uma íntima relação entre as flores e os condenados”) que há uma natureza potencial. Geradora. Um ‘reduto’ não redutor que pode ser galvanizado. Há toda uma origem do lugar, no Lugar, que “Florigen” (d)enuncia. Formula uma narrativa profundamente literária. Liberta.

Florigen >

Florigen, 2007 | Progestos_Obgestos [Com Jean Genet, em Diário de Um Ladrão – “existe pois uma íntima relação entre as flores e os condenados”]  Colecção do Autor

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Depois de “Florigen” com releitura de Genet, “Valsamar”, 2006-2010, de igual modo, parte de um momento paradigma da escrita de José Tolentino Mendonça quando este, em ‘Os dias contados’, alvora que “tudo podia | já que | os anjos do vento desenham na água | o fulgor inesperado do teu gesto”.

“Valsamar” lê, insinua-se e transfigura o dizer procurando transcender-se para além do gesto.

Colhi aí, em “Valsamar”, as imagens à ‘ardósia do mar’ em evocação da memória materna – da sua ‘primeira morte’. Haverá sempre uma memória ancestral; primeira?

O poeta Tolentino, num primeiro momento, acolheu a minha ‘valsa’ – a imagética ‘encenação’ dessa dança do mar. Depois devolveu-me a palavra; com a partilha do texto: “O mar, o mar”.

Denunciarão então, estes momentos de obra que aqui se cruzam, condição identitária? Ou não estaremos perante uma enunciação do lugar? De um Lugar outro?

Valsamar >

Valsamar, 2005-2010  Museu da Água, Coimbra, Festival das Artes, 2010

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O mar, o mar | José Tolentino Mendonça

Perante linhas que se despenham
numa desarticulação cadenciada
um pensamento, mesmo o mais trivial
coloca-nos no centro de uma tempestade
Um reino subterrâneo
avança a intervalos pela casa fora
emerge muito lentamente
um declive, uma linha
que divide o mundo

Imagina que tudo isto ocorre antes do próximo Inverno
E mesmo ao escurecer estás diante do mar
O mar como nunca antes o viste

José Tolentino Mendonça


2. Há aqui, na razão de obra, um “preto/branco confiança”?

2′. O negro versus branco. A noite que precede a alvorada. A morte que avisa vida, é ainda um luto. Logo luta em resiliente condição. Um vulgo que se (d)enuncia.

A captação semântica da morte (tão fluente numa leitura primeira sobre a obra que trago), conduz à consciência de que a obra se enuncia na sua ruptura de mera obra, e assim busca gerar ‘Sentido’ para além da morte em vida. Da soltura da ‘alma-conceito’. Do corpo. O passar testemunho. Ritualizando. Construindo máscaras sobre máscaras.

A sociedade, hoje, perdeu os seus rituais, e, na visão da antropologia circulante os rituais são importantíssimos para contrariar a “não inscrição”, “o medo de existir” (José Gil).

Os rituais conjugam, nos seus múltiplos verbos, muita sabedoria. A Arte, essa necessidade milenar, surge preparando “um ser para a morte”. Para além do medo. O medo é alimento da criação. Galvânico. O medo como propulsor. O medo para além do medo.

O medo da morte. O medo da morte é estruturante.


3. Há um Ser em Arte. Para além da Arte e do Artista?

3′. Operacionalizar ‘artitudes’ numa ‘arte de situação’ consequente é já em si um modo ‘artoral’.

Jean Clarence Lambert, no Simpósio do Happening, em Barcelona, com que Vostell me desafiou a acompanhar nos anos 70, definiu ‘artor’ com uma clarividência que ainda hoje vigora.

Para Lambert, ‘artor’ é uma forma de designar, de modo mais cómodo, aqueles para quem o sentido da actividade artística sofreu uma mutação tão completa que já não os podemos considerar como artistas no sentido restrito do termo.

Para o ‘artor’, obrigava tal condição encontrar novos meios que ultrapassassem a velha oposição entre a arte e a vida, entre a obra e o objecto. Assim caberia a estes criadores instalar entre a arte e a vida paisagens, estabelecendo pontes, desafiando o possível.

São então premissas do ‘artor’: libertar a arte do artístico e libertar os objectos do quotidiano. Colocar os objectos sob a luz da paixão, fazendo com que se evadam da sua situação de ‘real-paixão’. Propor aos objectos uma vida nova, fazendo-os passar do reino da necessidade para o reino da liberdade (liberdade = o imaginário no acto).

António Aragão, alguns anos antes, já havia ‘visionado’ enunciar-me como autotélico potenciador de ‘artitudes’. Hoje de progestos e obgestos também.


4. Há desenho de caminho para além de uma geografia do lugar?

4′. A vivenciação de uma prática de sentido fluxista convoca, na lâmina da acção, uma prática universalista constante. Logo a circulação é um princípio de eleição que não rejeita voltar convulsivamente ao lugar de origem – uma n(av)egação (con)traditória.

Depois de McLuhan o dizer transcende uma função gregária, e hoje, com um vigor sem precedentes, a comunicação, mormente a de afirmação pela Arte, dilui fronteiras comungando ‘meios’ de escalas e geografias múltiplas.

O ‘lugar da contemplação’ exalta assim uma constante expansão onde só o imaginário dita limite – sem limites.

Estar no lugar, em Arte, é estar para além do lugar. No Lugar. Num ausentamento presente. PreSente mesmo que auSente para um além do Lugar. Além de Si.