A l m a _Do Diário de Bordo, por António Barros. [Texto. Ligação]
“O que é o amanhã? Amanhã, é a eternidade mais um dia” (Theo Angelopoulos).
Em “Alma”, nesta peça, há uma exploração da promessa do devir. Do amanhã. E nesse devir a ameaça de quanta contemplação se formula na própria vacuidade resultante. Como negação e como substância. De novo subterrânea. Renascente. Em fruto. Em óleo. Incandescível. Volúvel. Amanhã. O amanhã como ‘motor de pânicos’. Como ‘manhã negada’. A_manhã. Sem dia seguinte.
Em “Alma”, nesta vaga de dizeres, é explorado o ser e o que lhe é negado. O amanhã. O ser e o que lhe é oculto. Impedível. O (ser) a transcender(-se). Manhã. Como ‘rochedo resvalante’.
“Alma” é consequente. Traz obra em trilogia. Sucede-lhe “Frame” (a escultura aura em viagem) e, em conclusão dos três vértices sucede “Florigen” (como invenção fotosemântica).
“Alma_Frame_Florigen”, mais do que o ‘(re)florescimento’, explora o “trágico amoroso”.
Uma leitura da estrutura diagramática, da obra “Alma”, revela uma construção distribuída por cinco tempos da criação do objecto partindo de uma evocação. Evocação – a um deus do céu claro – formulando-se aí os tempos geradores como:
- Do deus do céu claro à conquista da luz;
- Sísifo;
- Phoenix;
- Oliva;
- Gérmen.
Antes do tempo – A um deus do céu claro
Alma – Princípio da vida e do pensamento; parte imaterial do ser humano; princípio espiritual em oposição a matéria; superfície interior de uma arma de fogo que pode ser lisa ou estriada. No sentido figurado, alma pode significar: fundamento; entusiasmo; coragem; sentimento muito íntimo; generosidade; alento. [Alma – do latim: Anīma].
“Alma”, a escultura_palavra_texto, explora o ‘modo’ do domínio da ‘instalação’. Desafia uma consciência formal a partir da conceptualidade de Anīma – princípio da vida e do pensamento em oposição a matéria.
Da esculturalidade que resulta no jogo cénico proporcionado por “Alma” sucede, ‘à mesa de Zeus’ – deus do céu claro; deus da luz na poesia homérica – o protagonista do desafio ao senhor dos deuses – Sísifo. Humanizado, tributário e condenado.
É na confluência deste ‘diálogo’ de antagonismos [Zeus-Sísifo] – logo desafiadores do desenho da deíficação -, que o objecto se apresenta como procura do ‘ser’ em evocação a ‘uma poética de si’; em luz; com Alma.
1. Do deus do céu claro à conquista da luz
Deus do Panteão Helénico, Zeus é essencialmente o deus da ‘luz’, do céu claro, tal como do raio. É ele então quem lança o raio e os relâmpagos.
É nos poemas homéricos que é criada a personalidade de Zeus, rei dos homens e dos deuses; deus que reina nas alturas luminosas, pois é no monte Olimpo que Zeus permanece a maior parte do tempo.
Intérprete dos destinos, Zeus mantém a ordem e a justiça no mundo (pesa na sua “balança”, por exemplo os destinos de Aquiles e de Heitor e, quando o prato em que este se encontra desce para o Hades, proíbe Apolo de intervir).
Zeus pertence à segunda geração divina. É o sexto filho de Titã, Crono, e de Reia.
Crono, pai de Zeus, advertia que um dos seus filhos o desonraria, e para impedir a concretização dessa ameaça devorava os filhos e as filhas à medida que Reia os ia dando à luz.
Ao nascer o sexto filho [Zeus], Reia, sua mãe, decidiu recorrer à astúcia e salvar o pequeno Zeus que acabava de nascer. Deu-o à luz de noite, secretamente e, de manhã, levou a Crono uma pedra envolta em panos.
Crono devorou esta pedra acreditando que se tratava de uma criança.
Zeus estava salvo e, a partir desse momento, nada poderia impedir a realização dos destinos.
Quando Zeus atingiu a idade adulta quis apoderar-se do poder que Crono detinha. Pediu então conselho a Métis (a prudência) que lhe deu uma droga, graças à qual Crono foi obrigado a vomitar as crianças que tinha devorado. Apoiando-se nos irmãos e nas irmãs que, assim, tinham voltado à vida, Zeus atacou seu pai Crono, e os Titãs. A luta durou dez anos. No final Zeus e os Olímpicos foram os vencedores, e os Titãs expulsos do céu.
Para obter esta vitória, Zeus libertou do Tártaro os Ciclopes e os Hecatonquiros que Crono aí aprisionara.
Os Ciclopes deram então a Zeus o trovão e o raio que tinham forjado; deram a Hades um capacete mágico que tornava invisível quem o colocasse. Uma vez vencedores, os deuses partilharam o poder.
Zeus obteve o céu, Posídon ficou com o mar, e Hades com o mundo subterrâneo. Zeus ficou ainda com a preeminência sobre o universo.
Zeus, para as suas uniões humanas, raptou a ninfa Egina, filha de Asopo [deus do rio e das nascentes]. Ao levá-la de Fliunte para Enone, passou por Corinto, e Sísifo viu-o. Assim, quando Asopo, procurando a filha por todo a parte, se apresentou junto dele, prometeu revelar-lhe o nome do raptor caso Asopo fizesse brotar uma nascente na cidade de Corinto.
Asopo concordou, e Sísifo disse-lhe que o culpado era Zeus. Foi esse facto que atraiu sobre ele a cólera do senhor dos deuses.
Uma versão diz que Zeus o fulminou de imediato e o precipitou nos infernos onde lhe impôs, como castigo, que fizesse rolar eternamente um enorme rochedo na subida de uma vertente. Mal o rochedo atingia o cimo, voltava a cair mercê do seu próprio peso e o trabalho tinha de recomeçar.
2. Sísifo
A identificação com Sísifo tornou-se comum na poesia e na filosofia [Albert Camus] não só pela condição de humanidade – essa desafiadora de um deus; do deus; do saber; necessidade do saber – mas também pela vocação do “recomeçar” como capacidade exímia do ‘viver’. Do ‘ser’ em constante realização de si. Do criar “nascente”.
“O Silêncio acorre a Sísifo. No momento em que o rochedo recomeça a resvalar pela montanha abaixo, ele “sabe” que é mais forte do que ele. Porque já “compreendeu” tudo. Pela consciência que tem do seu tormento ele já é mais do que o seu tormento.
Ele olha em redor e a luz da consciência manifesta-se no momento em que tudo oscila entre silêncio e luz na paisagem.
Ele não volta apenas e mais uma e outra vez a empurrar o rochedo montanha acima. Ele é o que observa tudo” (Cidália Fachada).
A iconografia de “Alma” revela-se na escultura presente. Uma mesa astuta no duro negro basáltico evocando-nos a montanha – a mesa de Zeus. É sobre a mesa que o rochedo se arrasta. Rolando. E rolado [em rolo massajante/amassante da farinha do pão colhido no nosso espaço doméstico – “objecto encontrado”]. Alimento. Pão do poeta e do lugar. O rochedo_karma. Sísifo – pela verdade e o castigo resultante. Inútil verdade. Verdade e representação.
3. Phoenix
Fénix, ave que, segundo a crença dos antigos, vivia muitos séculos e, depois de queimada, renascia das próprias cinzas. Do latim phoenix.
A iconografia do objecto exalta a (d)enunciação de dois ‘corpos de luz’ recolhidos da phoenix; do rochedo após a segmentação.
Em “Alma”, na narrativa formal da escultura_palavra, a montanha [Mesa de Zeus] suporta o rochedo [objecto] que na sua fracturação resulta em imóvel condição. Só a fusão dos dois segmentos narrativos do ‘rochedo’ o revitalizará [numa marcha de construção].
Como se fundem então os corpos fracturas do rochedo? Em luz! Corpos renascidos da phoenix. Na celebração da força da ave phoenix. Celebração de alma. Com alma.
4. Oliva
Federico García Lorca, em Granada, foi abatido pelas espingardas da guarda republicana aos pés de uma oliveira. Árvore de luz. Aqui símbolo da força do sentir poético. Da resistência. Resiliência.
Em “Alma”, escultura_objecto_texto, tudo sucede à sombra de uma oliveira. Oliva é icone soletra(liza)nte.
A iconografia enuncia-se na narrativa expressa por trinta pratos brancos dispostos pelo chão simbolizando a árvore. Oliva. O cenário branco e negro evocando o sóbrio cerimonial. Ao centro a montanha [Mesa de Zeus]. Sobre ela o rochedo plasmado em dois corpos recolhidos da Phoenix.
Trinta pratos alvos, brancos, um a cada dia, portam vinte e quatro azeitonas negras [Olivas], uma para cada hora. Tudo na vitalidade do fruto que solta seu óleo. Azeite. Óleo que ilumina candeias. Alimenta a alma em oração; e o corpo [óleo de limpar alma e ‘quebranto’]. Purifica o Ser.
O óleo veste a montanha, e seu ancorado rochedo, como velatura. No escoamento o lago nasce no ventre da montanha. Espelho de azeite que ilustra a luz dos oriundos da phoenix.
5. Gérmen
Ovo. Gérmen: princípio; origem; célula que resulta da fecundação dos gâmetas.
Neste desígnio, a iconografia de “Alma” na sua escrita genomática, a montanha [Mesa de Zeus,] exalta o silêncio [e a sua poiética]. A frágil sustentabilidade [a do poema].
A cada pé da mesa ancora-se uma navalha [quatro cardinais]. O Acto é solene. A força é contida [há uma força d’ armas estacionada em nós].
O gérmen [ovo] enuncia a força. Vital. Cada ovo_gérmen é anulatório da força do punhal. Há um jogo de ferocidade e de equilíbrio. Equilíbrio. Só absoluto em alma. É negro o ovo. Os cumes dos punhais mergulham na terra em manifesto… A montanha eleva-se numa navegação de prece. Pela “eternidade mais um dia”. Amanhã.
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