Água levada na pedra

Á G U A  L E V A D A  N A  P E D R A : Do desenho de uma ‘escultura’ universal, à resiliência que o lugar convoca. Texto de António Barros sobre a obra ‘aL(a)ma’. [Texto. Ligação]


“Só onde está o perigo é que cresce o que salva” (Hölderlin)


Há uma vascularização cerimonial cravada na pedra cicatrizando uma vontade do devir de vida. De água. Geradora.

Não há vida sem água. Água sem lugar. E para um “s e r d e á g u a” ( S E r D E á g u a ), a sede, e o modo de a devorar, foi um norte maior para quem rasgou o atlântico à descoberta de um mundo outro. Um lugar em procura. Uma condição para toda a navegação em busca de porto-de-abrigo. Ganhar esse lugar da água, razão a dar vida ao corpo.

Toda a história da expansão portuguesa enuncia a força vital dos portos de água bebível – sua procura e condição. Calhetas onde os barcos ancoravam em busca de travar a sede aos marinheiros. O primeiro porto foi santo (logo Porto Santo ainda hoje). Depois o lugar da madeira e do funcho que se tornou “porta para o mundo” no dizer do ser navegador (o Funchal).

Levar a água de um lugar a outro no chão da própria ilha sem armas e sem meios. Sem medos. De mãos vazias. Só a vontade e a força do querer maior e da raiva o fez conduzir. Levar a água, era Levar vida. Água Levada. Obrigação. Palavra primeira e de certeza, nem que tal razão obrigasse colher a própria vida à vida.

Um povo que construiu – agarrado à rocha a pulso e aí mordendo a pedra -1.700 kilómetros de Levadas (o suficiente para contruir num canal de Lisboa a Paris) serpenteando várias vezes em volta da ilha o caminho da água, enuncia uma vigorosa força de hercúlea determinação – um carácter de uma resiliência nobre. De gigantes. Com um pundonor e um brio (que só a dimensão poiética de um povo formula), construiram uma esculturalidade à qual podemos aludir, no mundo, como uma das mais singulares “obras de arte pública” na natureza. Todo um sentido colhido ao desenho da água que abraça a pedra.

As palavras da escritora Maria Lamas reforçam um rosto distintivo: “para este povo, o problema das levadas é a própria Vida. Sem água, as terras permanacerão maninhas.

Pela água foi capaz de arrancar à sua mediana estatura energias sobre-humanas e suprir o que a natureza não lhe proporcionou.

Pela água desafiou a morte e, muitas vezes, foi vencido”.

Vencido, e vencido no lugar pelo lugar da Água. Pela Água foi vencido em todo o ‘teatro de guerra’ consequente ao aluvião de 20 de fevereiro de 2010 no arquipélago da Madeira.

As águas das chuvas desventraram o corpo, em Lama, e a Alma – aL(a)ma. Um cenário de dezenas de mortos. O lugar destruído até à intimidade e o leito.

Uma mulher com uma pá de pedreiro a retirar a lama, resgata a sua própria cama. Sem lugar ao sono. Com o coração fundido no desenho da pá, obcessivamente, ritualiza a esgrimir a Alma com a Lama.

O retrato resulta convulsivo em todas as anunciações públicas da tragédia. O retrato emoldura-se performativo da lástima.

Para corporalizar esta enunciação da água na insularidade do lugar – e a Bandeira de Vida que esta causa alvora na resiliência a que obriga habitar o lugar, reune-se em volta deste quadro o contraste das cinzas de árvores queimadas no verão seguinte desenhando outra tragédia nesta geografia atlântica. Convergem assim com leituras de explosões contrárias na mesma evocação: o da água que desenha na pedra Sentido. Um Sentido de Vida até à própria Morte e o do Fogo incendiário clamando Água para a montanha ardente. Toda uma resiliência feroz num vulcão de basalto. Lama de Terra. Lama de Cinzas. Uma aL(a)ma única. Dor d’ Alma – aL(a)ma.


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