A poesia, escrita da memória

Prefácio de Rui Torres ao livro ‘oceanografias’ de Antero de Alda. [Texto. Ligação]


A água adquire propriedades biológicas daquilo que a habita, lembra-nos Antero de Alda no seu breve texto introdutório de Oceanografias (a memória da água). Uma filosofia semelhante parece estar na base do procedimento que leva à escrita destes poemas: a poesia escreve a memória daquilo que nos habita; a poesia redige a habitação da nossa existência líquida.

Estes poemas trazem ainda consigo a memória de outros poemas possíveis, virtualmente ausentes, mas potencialmente existentes. E isto porque são textos programados. Bastaria, por exemplo, que o leitor introduzisse o código Basic que os acompanha num emulador de computador ZX Spectrum e novas, múltiplas variações se gerariam, a partir da matriz programada pelo poeta – e aqui generosamente transcrita.

Que poemas temos, então, entre as mãos? Aqueles que se manifestam em papel, nesta edição limitada? Ou os quase infinitos, previstos no código que os acompanha? Essa dúvida e essa questão, por muito inquietantes que sejam, são a chave da leitura da poesia possível: aí encontrará o leitor uma memória líquida de poemas esquecidos tornados agora habitação, com seu código genético. Porque a poesia quer-se assim, duplamente: aberta, e em dúvida, em risco. Poemas riscados e agora rasurados – no texto possível, na poesia como escrita da memória.

Que pode, portanto, fazer o leitor? Reprogramá-los? Adquirir na sua água a memória do que mais poderiam ter sido? Como leitor privilegiado (por antecipação), eu próprio fiz essa experiência, traduzindo em minha própria memória a proposta do autor. Assim, onde se diz:

com a água
se confundem os espelhos.
e também cristais e anéis,
e um sumptuoso cálice
de cio

interpus eu, primeiro, com o léxico do autor:

com os líquidos
se enlevam os peixes.
e também mares e serpentes.
e um confuso cio
de água.

E depois, com alterações no vocabulário:

com a serpente
aquecem os espelhos.
e também cristais e morte,
e um imenso cálice
de sonho.

Mais, avançando, partindo de: “o mar – imenso terraço de cadáveres”, para “as orlas – imensos oceanos de cadáveres”; ou ainda, “a ferocidade – imenso terraço de peixes.”

Um jogo? Talvez seja isso a poesia: um jogo onde o leitor mergulha.
Ora, se a água tem, ou não, essa “capacidade de fazer perdurar a estrutura molecular de uma substância degenerada”; se a água, como queria o Dr. Benveniste, tem, ou não, uma «memória», pouco parece importar neste contexto. Interessa antes, talvez, reter que de memória e de água são sempre feitas as “operações poéticas”, de tempo e de evanescência são compostos os poemas de Antero de Alda.

E de que serve um computador quando encontramos um poeta? “Telescópio de complexidade”, como na feliz expressão de Pedro Barbosa? Amplificador, certamente. Mas é o poeta, e não a máquina, quem entende e articula o sentido da palavra. Um amplificador de complexidade, nunca um mero efeito de superfície, uma moda jogada na indústria do entertainment. Recuperar estes poemas, embora constitua boa oportunidade para rever certa história da literatura cibernética, adicionado um novo dado nesse jogo confuso, torna-se, aqui, também, uma lição de humildade: elogio da poesia que usa o computador como ferramenta; da poesia que escreve a habitação da nossa memória; da poesia que habita a nossa existência líquida.

Nas suas escritas de água, Antero de Alda joga com a mathesis da língua, conjugando-a na semântica variável da poesia. Minimalizando as estruturas possíveis, recorre a vinte e quatro vocábulos e três poemas originais, multiplicando-os em combinações aleatórias, limitadas por certas variáveis, recodificando, rematerializando a textura semântica do poema. Jogando, portanto, com aquilo que melhor define toda a poesia: a conjectura (este trabalho começou por chamar-se «Conjecturas da Água»…), a dúvida, a inquietação, e a História (o quase sempre inevitável – para este autor – documental: a temática dos Descobrimentos). Perdurará na água essa aventura inicial? Reterá esta poesia, agora retomada, o espírito da máquina para que foi pensada há trinta anos? Transporta-se no poema um rumor da água, com suas capacidades purificadoras, ecoando Raul Brandão, para quem o som da água, esse “mar do silêncio, o grande mar inesgotável que desliza no silêncio”, nos posiciona em líquido estado, no espaço transitório em que todo o texto se dobra. Entre a presença e a ausência, entre o actual e o virtual, o acontecimento e a sua possibilidade. Água, portanto, como fonte de vida, como purificação e renovação. A fluidez textual contida na dissolução do líquido.

Estará Antero de Alda a apropriar um dispositivo, como em outras práticas dos poetas experimentalistas? Como, aliás, em outros textos seus (bastaria lembrar os seus scriptpoemas…)? Haverá aqui um mecanismo político de deformação da tecnologia? Estará esta poesia a estranhar o aparato técnico em que se tece? Não nos parece. E, talvez por isso, não recua esta poesia ao espaço daquela literatura electrónica que se encontra em processo de desclassificação tecnológica, exigindo emulação, migração, tradução. Poesia apenas. Por publicar, por conhecer, duplamente suspensa pela virtualização.
Reprogramar, por isso, este código, não seria o mais adequado. Pensá-lo como arqueológico, também não. Ler, apenas ler, estes poemas, eis uma solução. Contra o mundo, contra o barulho do mundo, no silêncio dos espaços líquidos ainda possíveis. Ler, apenas, estes poemas, como memória da escrita, como nesse belíssimo verso de Manuel Gusmão, em epígrafe escolhida pelo autor: «Observemos aqui o mar, sobre esta mesa.»


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