Texto de Jorge Pais de Sousa, comissário da exposição ‘POVO NOVO VIRTUAL’, de Silvestre Pestana. [Texto. Ligação]
No ano em que festejamos 45 anos de intervenção artística de Silvestre Pestana, parece pertinente perguntar o que é que permanece da sua obra?
Permanece uma crítica e desassombrada interrogação poética, sobre os diferentes dispositivos – que resultam da interação das redes de poder e de saber – que modelam a consciência, o comportamento e o corpo do indivíduo, confrontando-nos com a permanente tensão entre coerção e liberdade.
O termo dispositivo, no uso de Michel Foucault, pode assumir um sentido discursivo (o cânone literário), jurídico (direito à objeção de consciência), político (democracia participativa) militar (bomba de hidrogénio, drones) e tecnológico (fotografia, vídeo, néones, informática, internet).
É por isso que muitos dos seus trabalhos constituem ruturas experimentais com os conceitos, linguagens e suportes, dominantes nas práticas estéticas na viragem do século XX em Portugal. Fundamental é perceber, neste contexto, a temporalidade em que emerge o seu trabalho.
O início da década de 70, em termos políticos e sociais, é assinalado prematuramente pelo ano de 1968. Em Paris, estudantes e trabalhadores erguem barricadas nas ruas em protesto contra o sistema capitalista e os jovens artistas olham as instituições, de ensino e artísticas, com igual ou maior desprezo, ao mesmo tempo que procuram redefinir o seu sentido e função.
Bernardo Silvestre Pestana que nasce, a 5 de fevereiro de 1949, no Funchal, instala-se no Porto, neste ano de 1968, para estudar na Escola Superior de Belas Artes (ESBAP), mas não sem antes ter participado, como jovem artista, em exposições coletivas organizadas na Madeira e com itinerância nos Açores.
Inicia a sua trajetória individual precisamente em 1968, na Galeria Alvarez, no Porto, com a apresentação do poema objeto/colage “Atómico Acto”. Um balão de borracha, identificável com o símbolo da explosão atómica, e assim legendado: ‘construir o poema destruir o objecto’.
Como escreveu João Fernandes, trata-se de um “enunciado-síntese do contributo da poesia experimental para a redefinição do objecto de arte através da objectualização ou espacialização do texto” (cf. Silvestre Pestana: Águas Vivas, Porto, 2002). Estava aberto o seu próprio caminho. A importância deste poema objeto está reconhecida na magnífica e recente reprodução que dele é feita no catálogo Tarefas Infinitas: Quando a Arte e o Livro se Ilimitam (Lisboa, 2012) da exposição organizada no CAM da Fundação Gulbenkian. É de sublinhar que esta intervenção teve lugar após Natália Correia ter apresentado o livro Mátria, veiculador de um feminismo não agressivo.
O poema é publicado no ano seguinte na revista Hidra 2 (Lisboa, 1969), organizada por E. M. de Melo e Castro. É neste ano que tem lugar em Coimbra, a crise académica de 1969, com os estudantes grevistas e contestatários a serem punidos com a mobilização militar para fazer a guerra colonial.
Exila-se na Suécia com o estatuto de refugiado humanitário, entre 1969 e 1974, onde contacta com o movimento Fluxus e em particular com o trabalho de Nam June Paik, ligado ao happening, à escultura e à arte vídeo (cf. João Sousa Cardoso Silvestre Pestana: Acção Fénix 2.0. Porto, 2010). Participa em exposições e faz performances em Estocolmo. Não obstante, E. M. de Melo e Castro e José Alberto Marques incluem alguns poemas seus na Antologia da Poesia Concreta em Portugal (Lisboa, 1973).
Retoma os estudos, em regime de horário pós-laboral, e faz o Curso de Música Eletrónica e o de Comunicação-Televisão na Universidade de Estocolmo. No regresso do exílio, ocorrido após o 25 de abril de 1974, Silvestre Pestana conclui, em 1980, a licenciatura em Artes Gráficas e Design na ESBAP. Volta a sair de Portugal em 1998 para se especializar, desta vez em Inglaterra, e obter o Master em Arte e Educação de Design na Universidade De Monford, em Leicester. Foi professor de vídeo na ESBAP e também na Escola Superior de Educação de Viana do Castelo e de Coimbra. Atualmente é professor do ensino secundário no Porto.
O regresso do exílio é assinalado com a produção de “Povo Novo” (1975), sem dúvida, uma das suas obras mais emblemáticas. Nele faz arte conceptual ao vivenciar o tempo, o espaço e o material, sem recorrer à sua representação na forma tradicional de objetos. Agora usa o seu corpo como “suporte” e alternativa à “página” que havia utilizado antes como poeta. E joga, de forma intencional, com signos linguísticos (as letras n, p e a palavra ovo) e não linguísticos (o objeto ovo e o próprio corpo). O catálogo da exposição POVO/People (Lisboa, 2010) que esteve patente no Museu da Eletricidade, no âmbito das celebrações do Centenário da República e das obras que mais a marcaram, fazem dele uma obra icónica.
É a vez do corpo, através da performance e da “body art”, irromper na sua obra como um tema subversivo do lugar da arte e do processo da sua desmaterialização processual. Inserem-se nesta linha as três fotografias que integram a instalação “Tecno-labirinto” (1979) – com o tema “Improvisações” do grupo Anar Band fundado e constituído, em 1972, por Jorge Lima Barreto e Rui Reininho (GNR) – que surgem como evidências do cruzamento entre corpo e espaço, lugar e retrato, perfomance e fotografia, que “só encontram paralelo nos trabalhos apresentados por Helena Almeida” (cf. João Fernandes – Silvestre Pestana: Águas Vivas, Porto, 2002). Na mesma linha se enquadram as quatro fotografias de “Bio-Virtual” (1983), sendo que estas fazem uso de luz fluorescente.
Na sequência, porventura, da presença de The Living Theatre, em Lisboa, Coimbra e Porto – e Silvestre Pestana seguiu para Barcelona com o grupo de Julian Beck e Judite Malina, que, aliás, tinham sido os artistas convidados para a exposição “Alternativa Zero” neste ano de 1977 – funda com o brasileiro Seme Lutfi, em 1978, Ânima – Teatro Acção de Textos Visuais. Este levou à cena poemas concretos da autoria de poetas experimentais como Alberto Pimenta, António Aragão, Ana Hatherly, Melo e Castro, Salette Tavares e do próprio Silvestre Pestana (cf. António Preto – A Poesia Experimental Portuguesa 1960-1980. Lisboa, 2005).
É um protagonista e destacado cultor da arte vídeo em Portugal. Entre 1979/80, realizou 9 vídeos na ESBAP e vai ser um dos fundadores do Vídeoporto, 1982/84.
Em 1980, apresenta “Radioieologias” na Galeria do Círculo de Artes Plásticas (CAP) de Coimbra.
Outro momento de rutura na sua trajetória é o poema digtial “Povo-Ovo” (1981), resultado de um programa/código que escreveu e publicou num computador ZX81, este, por sua vez, gerou séries de imagens abstratas com recurso às palavras POVO e OVO. Sabemos hoje que é um dos poemas fundadores da poesia digital (cf. C. T. Funkhouser – Prehistoric Digital Poetry, 1959-1995, The University of Alabama Press, 2007).
A versão policromática deste poema é, aliás, o motivo da capa do livro Poemografias: Perspectivas da Poesia Visual Portuguesa (Lisboa, 1985) de que é coorganizador, em conjunto com Fernando Aguiar.
No âmbito de Porto Capital Europeia da Cultura 2001, e influenciado pelas propostas de Bruce Nauman, apresenta na Galeria Alvarez dois grupos escultóricos em néon, “Águas Vivas” e “Meteoro Néon para Vénus.” Obras que fotografadas fazem a capa do albúm Neo Néon (CD), de Jorge Lima Barreto, uma música eletroacústica experimental, do género minimal repetitivo, escrita de propósito para estas estruturas em néon. É a geometria de luz fluida em néon da arquitectura da instalação “Águas Vivas” que obtém, em 2003, o Grande Prémio da XII Bienal Internacional de Arte de Vila Nova de Cerveira (cf. Jorge Pais de Sousa – Poética do Contemporâneo em “Águas Vivas”, em Bombart, 2010).
É, desde 1978, um dos artistas fundadores e mais marcantes do mais antigo evento internacional de arte contemporânea organizado em Portugal. Por exemplo, na última edição, expôs, no metaverso, em www.outdoorcerveira.com, o projeto de curadoria que vinha desenvolvendo desde 2005 Galeria Pública para Artes Digitais (cf. catálogo da 16.ª Bienal de Cerveira, 2011).
No âmbito do Line Up Action: Festival Internacional de Arte da Performance de 2010, em Coimbra, apresenta “Acção: Fénix 2.0 e Instalação”, onde cruza linguagens diferentes como a da performance, dos néons e da plataforma virtual Second Life.
O sentido interventivo e crítico, do efeito devastador junto de populações civis de aeronaves não tripuladas para fins militares, levou-o a apresentar o ano passado a performance/instalação, com música de Vitor Rua, “Piso-2: Drones” (cf. www.youtube.com/watch?v=3prjkAKoJ_c).
Uma parte significativa da sua obra encontra-se depositada no Museu de Serralves e na Fundação Bienal de Cerveira.
Está representado em diversos catálogos como Anos 70: Atravessar Fronteiras: CAM da FCG (2009), e em diferentes livros antológicos: Antologia da Poesia Visual Europeia de Josep Figueres e Manuel Seabra (1977); PO.EX: Textos Teóricos e Documentais da Poesia Experimental Portuguesa de Ana Hatherly e E. M. de Melo e Castro (1981); III Rencontres Internationales de Poesie Contemporaine, Festival de Cogolin, França (1986); e Antologia da Poesia Experimental Portuguesa: Anos 60 – Anos 80, de Carlos Mendes de Sousa e Eunice Ribeiro (2004).
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