O ‘POVO NOVO’ de Novo, ou o Devir da FÉNIX

Texto de António Barros acerca da exposição “POVO NOVO VIRTUAL” de Silvestre Pestana na Casa da Escrita, em Coimbra, 2013. [Texto]


[Texto publicado originalmente em REVISTA TRIPLOV – Revista de de Artes, Religiões e Ciências [Nova série | número 36-37 | fevereiro-março | 2013]


Depois de Ernesto Melo e Castro, com “Do Leve à Luz” e António Barros, com “Progestos_Obgestos”, duas antologias, parte integrante da primeira fase do ciclo “Nas Escritas PO.EX”, iniciativa da Casa da Escrita de Coimbra, é tempo de uma leitura particular à obra de Silvestre Pestana com a mostra: “POVO NOVO – Virtual”. Um percurso de obra desenvolvida nas últimas três décadas, atividade laboratorial em muitas das circunstâncias desenvolvida na cidade de Coimbra, mormente na comunidade artística ‘Círculo’, CAPC, e no Teatro Estúdio do CITAC (P&P-Artitude:01).

Mupi «Povo Novo»

[Mupi «Povo Novo»]

Se o trabalho sociológico e militante de Pestana é paradigmático da sua obra poético-performativa, é na revelação distintiva das insularidades que o seu tempo identitário se manifesta com maior argúcia artística. E aí, da ilha ao mar, o lumen da sua escrita visualizante convulsivamente se revela.

A exaltação onírica das estórias do mar resultam num desafio a um outro respeito pela água.

É a mestria de Silvestre Pestana quem nos ensina.

Como comissário convidado a formular um aconselhamento programático para o Museu da Água, em Coimbra, no âmbito das Comemorações do III Aniversário do Museu, e do dia Mundial da Água, na edição de 2010, zelei por proporcionar uma contribuição inédita e sensível. Esse arquitetar do programa surgiu na contemporaneidade da tragédia da ilha da Madeira (20 fevereiro, 2010), calamidade a que ninguém mais pôde ficar indiferente. Foi assim, solenemente, à cultura madeirense que fui buscar o sentido referente, e nenhuma obra representaria tão bem, e de modo tão anímico, a evocação do momento como a peça artística “Águas Vivas” de Silvestre.

É este, um artista cuja obra comecei por apresentar em 1977 (e pela primeira vez em Portugal após o seu regresso do seu exílio em Estocolmo) comissariando para a Galeria CAPC, do Círculo de Artes Plásticas da Universidade de Coimbra, a sua obra fundamental: “POVO NOVO”, peça de 1975. É este o trabalho que, com “Atómico Acto”, publicado na revista Hidra n.2, em 1969, e com “Águas Vivas” em 2001, se formulam numa arte contemporânea de excelência os três pilares fundamentais da obra de Pestana.

Neste arco temporal de 45 anos de produção artística deste autor, formulei uma divulgação permanente da obra de Silvestre que, comigo, com o Ernesto Melo e Castro, a Ana Hatherly, a Salette Tavares, o António Aragão e toda uma “poesia experimental”, vieram a dar manifesto ao (para alguns analistas denominado) “Visualismo Português” dos anos 60 – 80. Foi nesta contextualidade, então, que publiquei em Coimbra “Águas Vivas” de Silvestre Pestana, rosto do livro “Fronteiras da Ciência, Desenvolvimentos Recentes – Desafios Futuros”, coordenação de Rui Fausto, Carlos Fiolhais e João Filipe Queiró, edição da Imprensa da Universidade de Coimbra (IUC) e das Edições Gradiva; e algum tempo depois “FÉNIX”, rosto do livro “Ciência e Mito” de A. M. Amorim da Costa, coleção Ciências e Culturas, também da IUC (após apresentação em “Line Up Action”, Coimbra, 2010).

Montagem-Aguas-Vivas Silvestre Pestana

[Montagem da exposição / instalação: “Águas Vivas”, 2001, Silvestre Pestana / Galeria Alvarez / Porto / Foto: António Alves]

Resulta “Aguas Vivas”, a obra escultórica deste artista madeirense, como um arquipélago de cinco peças fabricadas em néon linear e zarcão, e alimentada com electricidade “contínua em alta tensão”, sempre numa evocação às ‘águas-vivas’ oriundas daquela geografia atlântica.

Águas-vivas são animais marinhos em forma de sino, oscilando entre 2,5 cm e 2 m, cujo contacto com a pele humana provoca queimaduras. Transparentes e luminosos, com grandes tentáculos, chegam a ter cerca de 98% de água (1).

Se a esculturalidade de “Águas Vivas” é, no seu desenho, a transfiguração desses animais d’água, não menos é, na representação semântica que uma nova leitura convoca, a força dos aluviões com que a água luminosa e determinada se afirma em cascata a partir da negritude dos altos rochedos basálticos da ilha.

Em 2010 a tragédia no arquipélago da Madeira convocou um outro olhar, e um respeito pela água que a obra de Silvestre aqui bem ilustra ao enunciar toda uma verticalidade, e a luz anímica de que uma população se fez alimentar para, da sua insularidade, se erguer de novo.

A exploração texto-ambiental deste artista de origem concretista, revela-nos ainda uma revisitação a uma condição letrista, mas, aqui também eléctrica – eléctrico/letrista -, ou seja: de uma contaminação (e)le(c)tricizante.

A luz anímica revelada por estas ‘Medusas sem véu’ enunciam uma letra: A (Anímica, multiplicada ao fazer-se sustentar na solidez grupal de vários pernos, carácter que, na sua luminosa reflexão, logo resulta em forma de letra: V (de Vitória), ilustrando assim o vigoroso devir da reabilitação.

O Museu da Água, com a arte de “Águas Vivas”, ergueu gesto solidário à causa madeirense e abriu assim, em manifesto, um novo caminho de reflexão sobre o respeito e zelo que a água obriga e a todo o momento nos merece.

Mas não nos podemos fazer ausentar, nunca, de uma análise sobre a obra “Águas Vivas”, ignorando a dimensão autobiográfica que a peça concerne. Ela formula uma visitação onírica à infância do autor na moldura da sua própria insularidade.

É comum a todos quantos nados neste arquipélago, ou todos os que encontraram neste lugar co-habitação vulgar com as águas-vivas, fazer recordar estes animais que tanto preenchem as nostálgicas estórias de qualquer nadador desta ilha. Estas medusas urticantes foram, convulsivamente, ainda personagens de narrativas fantasiantes do imaginário especulativo, e até mesmo educacional, na relação de muitos pais ao zelarem pela orientação dos seus filhos.

Nenhum madeirense ignora estes celenterados. Nem tão pouco apagou da memória os momentos “castigadores” gerados por estas ‘urtigas do mar’ ao terem agido perante insubordinados gestos do ir para o mar indevidamente, na subida das marés, e que Silvestre tão alegremente nos revela. O autor assume este mundo de revisitação constante da sua geografia cultural e mórfica. Originária.

No seu percurso de obra o arquipélago assume regressos constantes como sucede em “Ilhas Desertas” – trabalho apresentado no Porto e Coimbra nos anos oitenta.

A insularidade é um referente que ganha dimensão iconográfica constante em toda a sua obra. Actividade que re-inventa novas dimensões de ilha. Experienciadas. Quer na dimensão ideológica que o autor assume na memória (do anarco-comunismo colhido ao Living Theatre de Julien Beck, ao mundo das transcendências múltiplas do mundo zen, e até aos avatares que hoje pululam a ‘second life’), quer ainda no cadastro da emigração, essa vivenciada num exílio politicamente comprometido. Essa feita como uma tentativa de anulação do regime que o país, este, então estava amargamente obrigado. É também aqui que a obra de Silvestre ganha uma dimensão sociologicamente carregada.

É uma poesia comprometida. Como sucede com a dominante da melhor “poesia experimental portuguesa”. Irreverentemente comprometida nas suas convulsivas transfigurações. Do objecto ao texto. Logo de uma singular condição de arte sem poeiras. Verticalmente anímica e luminosa. Iluminante.


(1) Águas-vivas são os animais-marinhos, os celenterados. “Águas Vivas”, titulação a que o autor retira o hífen entre as duas palavras (águas e vivas), enuncia a transfiguração do real; a obra de arte em si, e aqui apresentada.


SILVESTRE PESTANA (n. 1949, Funchal, Portugal) – A sua obra, com autores como Ana Hatherly, António Aragão, Salette Tavares, Ernesto Melo e Castro, António Barros, Liberto Cruz, Fernando Aguiar e Alberto Pimenta, integra o Visualismo Português entre 1964 e 1980, movimentação artística que hoje inscreve um domínio particular na coleção do Museu de Arte Contemporânea da Fundação Serralves.

Foi em Hidra 2 – Colectânea da Poesia Concreta que, com ‘Atómico Acto’, o artista em 1969 vem a revelar-se na Poesia Experimental surgindo a integrar, já no ano seguinte, a Antologia da Poesia Concreta em Portugal com trabalhos editados a partir do seu exílio na Suécia.

Master in Arts – Art and Design Education pela De Montford University, Leicester, England, estudou Comunicação e Televisão e diplomou-se no EMS de Música Electrónica em Estocolmo onde frequentou o Filkigen Studio, tendo apresentado “Acrilic Kunst” na Galeria K, Gamgla Stan-Stockholm.
Com Seme Lutfi dirigiu seminários sobre Poesia Experimental Portuguesa no London Poetry Center, sendo o pioneiro da Computer-Generated em Portugal ao ter criado em 1982 os “Computer Poems” para Spectrum.

Com Lutfi fundou o Anima que com Filipe Crawford, Eugénia Melo e Castro e Rui Frati criou um “Teatro Acção de Textos Visuais”, estes, poeticamente desenhados como as 12 Pautas Poético-Gráficas para Anar Band de Jorge Lima Barreto e Rui Reininho, e as vídeo-performing arts para Multi/Ecos no Simposium Projectos & Progestos na Universidade de Coimbra; no Centre National d’Art et Culture George Pompidou; na DO(C)KS de Paris com Julien Blaine e nos Rencontres Internationales de Poésie Contemporaine, Cogolin, com António Barros, e com Aldo Brizzi e Joaquim Castro Caldas no ACARTE-Fundação Calouste Gulbenkian.

Com José Ernesto de Sousa inscreveu a Alternativa Zero, onde convocou o Living Theatre de Julian Beck e Judite Malina, grupo com quem privou nos anos setenta em Londres.

Nas narrativas do video apresentou-se com Helena Almeida, Leonel Moura e Julião Sarmento para o Portuguese Video-Art na Gallery of New Concepts, University of Iowa, USA, obras integrantes da representação portuguesa para a XIV Bienal de S. Paulo, assim como no 4th Tokyo Video Festival no Japão.

Foi co-organizador, com Fernando Aguiar, de Poemografias-Perspectivas da Poesia Visual Portuguesa para as Edições Ulmeiro e fundador, com António Dantas, da Bienal Internacional What is Watt?

Em [+ de 20] representou a arte portuguesa em Porto Cidade Capital Europeia da Cultura, 2001 e, com “Águas Vivas”, foi laureado com o Grande Prémio XIII Bienal Internacional Arte de Cerveira, obra editada pela Imprensa da Universidade de Coimbra e Gradiva, como rosto da antologia Fronteiras da Ciência com direcção de Rui Fausto, Carlos Fiolhais e João Filipe Queiró, obra apresentada ainda em 2010 no Museu da Água, em Coimbra.

Silvestre Pestana hoje assume-se como Cyber Artist mas, na verdade, é a sua obra simbólica “Povo Novo” que continua distintiva do devir de uma nova condição social nos anos setenta sinalizando iniciativas paradigmáticas como foram: Anos 70, Atravessar Fronteiras no Centro de Arte Moderna – Fundação Calouste Gulbenkian; POVO na Fundação EDP em Lisboa; Corpo Comum, Centro Cultural Vila Flor e agora em Coimbra, na Casa da Escrita, no ciclo Nas Escritas PO.EX.


Ligação para What is Watt > http://whatiswatt.org/


Ligação para página de Silvestre Pestana no TriploV > http://www.triplov.com/pestana/index.html


Vídeos

‎”PISO MENOS 2: DRONES”, (2012) Obra de Silvestre Pestana com música de Vitor Rua >

[Vídeo Publicado no Youtube por Celeste Cerqueira (22 Agosto 2012). Descrição do Youtube > A obra “PISO MENOS 2: DRONES”, (2012) foi produzida para a exposição colectiva ” CENTR´ARTE” FÓRUM DA MAIA de 14 Julho a 9 Setembro_2012]


Silvestre Pestana – entrevista – Lonarte >

[Vídeo publicado no Youtube por Luís Tranquada (6 Dezembro 2011)]


[Artigo da autoria de António Barros, originalmente publicado em http://www.triplov.com/novaserie.revista/numero_36/antonio_barros/index.html]