Realização vs irrealização dos propósitos concretistas

Capítulo de livro de Pedro Reis sobre poesia concreta. [Texto]


In > Poesia Concreta: Uma prática intersemiótica. Porto, Ed. UFP. 1998.


O poema concreto comunga das características dos processos de comunicação da sua época, como sejam as mensagens rápidas, condensadas, directas que caracterizam os modos de comunicação contemporâneos: telefone, rádio, tv, slogans, títulos, etc.. Assim, como refere Jon Tolman (1982: 161), “the modern urban consumer, accustomed by television and the newspaper to headlines and simplified syntax, has been conditioned to high speed communication. In the concrete aesthetic what functions, what communicates possesses artistic value.”

Assim, a ideia de contemporaneidade aparece associada à de velocidade da comunicação e à existência dos meios de comunicação de massa como se depreende das afirmações programáticas de Haroldo de Campos (1987: 54):

a POESIA CONCRETA é a linguagem adequada à mente criativa contemporânea
permite a comunicação em seu grau + rápido
perfigura para o poema uma reintegração na vida cotidiana
semelhante à q o BAUHAUS propiciou às artes visuais: quer como veículo de propaganda comercial (jornais, cartazes, TV, cinema, etc.), quer como objecto de pura fruição (funcionando na arquitectura, p. ex.), com campo de possibilidades análogo ao do objecto plástico
substitui o mágico, o místico e o maudit pelo ÚTIL.

Tal ideia volta a ser reiterada por Haroldo de Campos (ibid.: 58), noutro passo:

O poema passa a ser objecto útil, consumível, como um objecto plástico. A poesia concreta corresponde a um certo tipo de forma mentis contemporânea: aquela que impõe os cartazes, os slogans, as manchetes, as dicções contidas do anedotário popular, etc.. O que faz urgente uma comunicação rápida de objectos culturais.

Na opinião dos concretistas brasileiros, os hábitos do homem moderno exigem que o poema seja “concentrado,” “técnico,” “limpo,” para que se comunique rapidamente, libertando-se das articulações lógico-discursivas da normatividade sintáctica, utilizando o espaço como elemento relacional de estrutura para alcançar essa libertação. De acordo com as afirmações supracitadas, a poesia concreta tenderia a adoptar procedimentos semelhantes aos empregues nos mass media, por forma a criar um maior e mais imediato impacto junto do público receptor, o que, concomitantemente, aumentaria a acessibilidade do público ao produto poético, revertido em objecto de consumo, deixando assim a poesia de ser um objecto cultural elitista, para se encontrar quotidianamente inserida na dinâmica do tecido social, a ponto de se tornar, como refere de forma programática, Décio Pignatari (ibid.: 47), “uma arte geral da linguagem. propaganda, imprensa, rádio, televisão, cinema. uma arte popular.”

Tudo parece indicar que, ao falar de “arte popular,” Décio Pignatari esteja a sugerir que, ao utilizar procedimentos idênticos aos usados nos meios de comunicação de massas, a poesia concreta visaria atingir um vasto público familiarizado com esses procedimentos e se tornaria acessível como um folheto propagandístico, uma emissão de rádio ou um programa de televisão. De facto, a poesia concreta, sobretudo através dos poemas-cartazes (“poster poems”), alguns com cores, parece buscar uma eficácia comunicativa que a aparenta com a técnica publicitária, tida em conta pelos concretistas devido à sua economia verbal e à sua finalidade de produzir um impacto o mais directo possível. Aliás, alguns concretistas chegaram mesmo a produzir publicidade, como é o caso de Décio Pignatari.

Todavia, na introdução à primeira edição de Teoria da Poesia Concreta, Haroldo de Campos (ibid.: 7) apresenta, como uma das razões que torna imperiosa a publicação dos textos teóricos sobre poesia concreta, o facto de “[ser] preciso facilitar a sua compreensão e a sua discussão nos seus termos originais, sem a mediação das divulgações esquemáticas e das interpretações duvidosas.”

Ora, esta afirmação suscita-me duas observações. Por um lado, vem confirmar o facto de a poesia concreta não ser facilmente entendível, e como tal não poder ser considerada uma “arte popular;” pelo contrário, é por ser difícil e hermética que “é preciso facilitar a sua comprensão;” e, por outro lado, a consideração de que é necessária a intervenção da autoridade autoral para trazer a luz sobre o assunto, ao estabelecer a “discussão nos seus termos originais,” vem pôr em causa o poema concreto enquanto obra aberta, impondo limites ao seu grau de abertura, uma vez que há “interpretações duvidosas” que o autor, usando do seu inquestionável poder demiurgo, vem esclaracer.[1] Além disso, este objectivo de conseguir a transparência do poema concreto, na veiculação de uma comunicação rápida, entra em conflito com a opacidade que também se deseja para o poema concreto. Como lembra Claus Clüver (1982b: 138), “the tendency of all poetic language toward opacity is carried to a high degree in [the concrete] texts…”

Ora, como refere Richard Kostelanetz (1982a: 32), “writing becomes opaque (…) when its communication is confused, contradictory, unclarified or incomplete.” À luz desta definição, a opacidade em arte afigura-se inconciliável com a pretensão dos concretistas em conceber os poemas concretos como formas de comunicação rápida e objectiva.

Uma vez que a poesia concreta utiliza as palavras como objectos, e não como signos, acaba por privilegiar mais o significante, a materialidade da palavra, a sua “concretude,” do que o significado. Por isso, adopta estratégias para reter a atenção do receptor sobre as palavras, força-o a olhar para elas em vez de olhar através delas, como refere Rosmarie Waldrop (1982: 315):

Familiar shapes in familiar surroundings are invisible. We do not usually see words, we read them, which is to say we look through them at their significance, their contents. Concrete poetry is first of all a revolt against this transparency of the word…

Assim, a poesia concreta opta pela opacidade, que obriga à detenção sobre a palavra-objecto, para lutar contra esta transparência das palavras no uso comum, ao mesmo tempo que defende a transparência comunicacional do poema, através da rapidez e objectividade que os concretistas lhe pretendem atribuir. Ora, parece muito dificilmente defensável a caracterização de um produto poético como simultaneamente opaco e transparente.

Este é também o sentido de algumas críticas que Angel Crespo e Pilar Bedate (1963: 109) tecem à poesia concreta, nomeadamente a de que a opacidade contraria a rapidez e a economia de comunicação preconizada pelos teóricos:

Precisamente, una de las objeciones que se pueden hacer a las formas más radicales de la poesia concreta es que su interpretación exigiría un entrenamiento previo que se aviene mal con la rapidez y economía preconizada por sus teóricos.

De facto, o ideograma chinês e a técnica do haicai japonês consistem em, sem contar com nexos gramaticais, limitar-se a oferecer uma série de realidades justapostas cujo grau de enlace ou relação depende em parte do acerto da sua composição e em parte também da intuição do leitor adestrado pelo hábito. Deste modo se vê a influência da cultura oriental na poesia concreta, mas também o exagerado optimismo dos teóricos concretistas em pretender, sem mais, transpor para um público ocidental formas de comunicação características de outra civilização sem que houvesse estranhamento e pretendendo a mesma rapidez e eficácia comunicativas.

Com efeito, certas formulações produzidas pelos teóricos concretistas e os objectivos que lhes estão associados entram em conflito com as características da prática poética que cultivam. Em primeiro lugar, uma manifestação artística tão carregada de inovação, que pretende formular uma nova sintaxe, uma nova linguagem, um novo código, que se afirma como vanguarda, no que isso implica de ruptura com o modo poético da época, e inclusive com as estruturas linguísticas que enformam o público a que se destina, é forçosamente acolhida com alguma estranheza e perplexidade. Em segundo lugar, trata-se de um movimento que é apresentado como sendo enformado por conceitos como “tipografia funcional,” “estrutura,” “ideograma,” “verbivocovisualidade,” entre muitos outros que pertencem a uma dada tradição erudita. Em terceiro lugar, os “poetas-inventores,” eleitos pelo grupo concretista como predecessores da poesia concreta, cuja obra é necessário conhecer, para ser entendível a base sobre a qual se alicerça a nova poesia, são também, eles próprios, autores pertencentes à cultura erudita. Por último, a própria designação que o grupo brasileiro escolheu, Noigandres, constitui, afinal, uma referência altamente elitista,[2] que os compromete com essa tradição erudita e cuja significação muito dificilmente seria acessível para o grande público. Portanto, à simplicidade e objectividade pretendidas do lado da produção, opõe-se uma complexidade e subjectividade imensas do lado da recepção o que, a meu ver, parece afectar indelevelmente a pretensa “utilidade” do poema concreto. Em suma, como observa Paulo Franchetti (1992: 57), “um dos maiores problemas teóricos da poesia concreta [consiste em] apresentar a nova poesia como uma síntese de duas formas de produção simbólica basicamente distintas: a indústria cultural, os mass media, e a cultura erudita, a que pertencem os autores do paideuma concretista.”

Como vimos, a teorização do grupo Noigandres apresenta a poesia concreta como herdeira de uma tradição erudita. Como afirma Décio Pignatari (1987: 64), “os pontos cardeais para a realização de uma poesia concreta são: Mallarmé (Un Coup de Dés), Joyce, Pound e Cummings,” pretendendo deste modo justificar poeticamente o projecto, assegurar o reconhecimento do seu estatuto e afirmar a sua “validade” no seio do sistema literário, contrariando as acusações de menoridade, de mediocridade e de a literariedade que sobre ele recaíam. No entanto, a mesma teorização procura estabelecer as bases duma correspondência que poderia haver entre poesia concreta e os mass media, o que conferiria à poesia concreta a qualidade de fenómeno de cultura de massas. Ora, parece dificilmente defensável a conciliação deste estatuto, a um tempo, erudito e popular, elitista e massificante que se pretende reivindicar para a poesia concreta.

Também Ana Hatherly (1981: 145) considera que a poesia concreta não alcançou sempre os seus propósitos, muito pelo contrário, algumas vezes viu-se confrontada com o facto de provocar uma situação completamente oposta à desejada, dado que “contrariamente ao desejo reiterado de comunicação imediata, a poesia concreta foi considerada verdadeiramente incompreensível, isto é, ilegível.”

Porém, os teóricos do concretismo, atribuem esse facto à impreparação do público contemporâneo, o que em si é aliás uma contradição com o princípio da comunicabilidade imediata pretendida para o poema concreto, pelo que frequentemente é projectado para o futuro o pleno entendimento deste modo poético, como veremos mais adiante.

Então, a poesia concreta é muito elitista e não uma arte popular; ela exige mesmo do público seu contemporâneo uma especial preparação. Nestas circunstâncias, esse público é necessariamente reduzido, porque a escrita experimental pressupõe uma audiência muito escassa de pessoas suficientemente preparadas para perceber a diferença que ela instaura, assim como depreender a relação que estabelece com obras do passado.

De facto, embora a técnica da poesia concreta se possa identificar com as técnicas de formas de comunicação de massas, como o jornalismo, a publicidade, etc., o que é certo é que nunca a poesia concreta foi um produto de grande consumo. Era até pouco vendável, tinha tiragens reduzidas por editoras de pouca projecção, assim como frequentes edições de autor. Esta dualidade característica da poesia concreta constitui, então, um paradoxo dificilmente ultrapassável: a pretensão de conciliar uma cultura de massas com uma cultura de elite.

A poesia concreta constitui, pois, um movimento complexo, que se foi elaborando através de contradições, oscilações, que parecem insolúveis, como a de relacionar a tradição erudita, de que ela se pretende consequência, com os meios de comunicação de massas que caracterizam a época em que surge, o que segundo Paulo Franchetti (1992: 72), “não se trataria de uma tentativa de ‘massificar’ a produção erudita mas sim de ‘eruditizar’ a comunicação de massas.”

Esta tentativa de conciliar a hesitação do domínio da poesia concreta parece, todavia, inoperante, porque as referências que constituem a erudição da poesia concreta não se tornam veiculáveis pelos mass media, nem acessíveis ao público, só pelo facto de a poesia concreta usar procedimentos mediáticos característicos da época. Afinal, como afirma Décio Pignatari (1987: 15), “um poema é feito de palavras e silêncios. Um poema é difícil.”


Notas

[1] A confirmar esta atitude, está esta afirmação proferida por Augusto de Campos (1987: 11) na sua introdução à 2ª edição da Teoria da Poesia Concreta: “A teoria não passa de um tacape de emergência a que o poeta se vê obrigado a recorrer, ante a incompetência dos críticos, para abrir a cabeça do público (a deles é invulnerável).”

[2] “A palavra Noigandres, extraída (via Ezra Pound, Canto XX) de uma canção do trovador provençal Arnaut Daniel, é um termo cujo significado nem os romanistas sabem precisar. (…) Foi tomada como sinônimo de poesia em progresso, como lema de experimentação e pesquisa poética em equipe” (A. de Campos, D. Pignatari e H. de Campos 1987: 193). Augusto de Campos (in Franchetti 1992: 126) esclarece ainda: “A linha, e jois lo grans, e l’olors de noigandres fora assim reconstituída pelo sábio alemão (o “velho Levy”): e jois lo grans, e l’olors d’enoi gandres. A segunda parte de NOIGANDRES seria derivada do verbo gandir (proteger); enoi seria forma cognata da moderna palavra francesa ennui. Portanto, um olor d’enoi gandres, que protege do tédio, antídoto do tédio: o grão só de alegria e o olor contra o tédio.