Texto teórico de Pedro Reis sobre poesia concreta. [Texto]
In > Poesia concreta: Uma prática intersemiótica. Ed. UFP, 1998.
Muitas são as oscilações, hesitações e mesmo paradoxos e contradições do concretismo. Todavia críticos há que vêem nisso algo de positivo. De facto, reconhece-se que existem avanços e recuos ao longo da vigência do movimento, mas estes são vistos positivamente. É o caso do poeta e crítico espanhol Angel Crespo e de Pilar Bedate (1963: 93) que, referindo-se às “posiciones iniciales del concretismo,” afirmam que “el tiempo ha ido enriqueciéndolas por um lado y haciéndoles perder rigidez por otro, lo que no es sino una demonstración de vitalidad, consecuencia de la seriedad de propósitos de sus cultivadores.”
Estas oscilações parecem advir da adopção de diferentes perspectivas ou pontos de vista perante o ambicioso projecto concretista que pretende ser multidisciplinar, assente na miscegenação, cuja teoria convicta e repetidamente afirma que o essencial do poema concreto é o seu carácter multidireccional, “totossémico” e “constelacional.”
Esta natureza diversa ou difusa do concretismo, conduzindo à adopção de vários pontos de vista sobre o fenómeno, dá azo a que a sua própria apresentação e caracterização seja feita segundo uma perspectiva dúplice: o que ele nega e o que ele afirma.
De facto, uma das formas que permite igualmente caracterizar a poesia concreta é constatarmos aquilo em relação ao qual ela se opõe,[1] como é possível verificar nesta afirmação de Haroldo de Campos (1987: 103):
a poesia concreta repudia o irracionalismo surrealista, o automatismo psíquico, o caos poético individualista e indisciplinado, (…) a poesia discursiva, o jogo oratório de conceitos, o poema narrativo, com ordem sintática semelhante à do discurso lógico.
Todavia, não deixa de ser surpreendente que o mesmo autor (ibid.) afirme de seguida que “o poema concreto é submetido a uma consciência rigorosamente organizadora, que o vigia em suas partes e no todo, controlando minuciosamente o campo de possibilidades aberto ao leitor.”
Se é certo que é possível reconhecer nesta afirmação do autor a preocupação em afirmar o rigor da composição, a pertinência na utilização dos materiais e o controlo da estrutura poemática, o que, aliás, deu origem a algumas críticas em relação a um eventual racionalismo exagerado da poesia concreta, também me parece que tal afirmação põe em causa o carácter de obra aberta, no que diz respeito, particularmente, ao modo como é sugerido o condicionamento do campo interpretativo, uma vez que o texto condiciona “minuciosamente” o campo de possibilidades interpretativas do leitor.
Jon Tolman (1982: 155) também chega a uma classificação da poesia concreta pela negativa, ou seja, evidenciando reiteradamente aquilo que ela não é e o que rejeita: “briefly, concrete poetry is not alienated, not agonistic, not nihilistic, not Futuristic. (…) It rejects subjectivism in all its forms, even the detached subjective role of the artist in the work…” A rejeição deste subjectivismo e do culto romântico da personalidade no lado da produção conduz ao extremo de apagar quaisquer marcas da presença do autor no texto.
Nadin (1980: 258), por seu turno, reconhece que a poesia concreta se define inicialmente pela negativa mas, na medida em que se trata de um conjunto que integra experiências semióticas diversas, acaba por desenvolver uma pragmática própria e, apesar de se iniciar como sendo o oposto de outras práticas exteriores, acaba por elaborar o seu programa a partir daquilo que é, das características que tem, isto é, do seu interior:
elle se définit de manière critique, par négation. D’où sa propre définiton négative: forme de négation de la poésie traditionnelle, opposée à l’individualisme, à l’expression des sentiments personnels (dans un sens plus large, au subjectivisme), opposée au mimétisme, à la représentation, à l’esthétisme. Par déduction logique nous pouvons cependant déterminer la définition positive aussi, telle qu’elle découle de l’“intérieur”: forme d’objectivation poétique, pertinente par son aspect constructif ainsi que par l’expansion vers le visuel, le sonore et le mouvement.
Assim, a afirmação da poesia concreta passa pela anulação de propostas anteriores relativamente às quais vinca a sua oposição. Como refere também Eunice Ribeiro (1990: 73), “os concretos recusam misticismos e subjectivismos, mistérios e nostalgias, metáforas e ornamentos, para manifestarem uma preferência pelo exacto, pelo lógico, pelo visível, pelo funcional.” Então, no essencial, o projecto concretista apresenta construtivamente a sua participação no quadro de um valor positivo, o da liberdade, anulando o constrangimento das convenções.
Esse programa pode ser formulado em termos inteiramente afirmativos, constituindo assim uma proposta que se apresenta construtivamente. A intenção primordial da poesia concreta é ser uma revitalização da linguagem, contrapondo-se ao desgaste que, segundo os concretistas, a linguagem sofre no seu uso comum. Para isso, o procedimento poético concreto sobre o material verbal é radicalmente diferente do da comunicação quotidiana. Como refere Augusto de Campos (1987: 116), “o sistema linguístico de comunicação, facilmente satisfeito, como que exaure à palavra sua vitalidade própria, transformando-a logo num túmulo-tabu, célula-morta de um organismo vivo. O procedimento da poesia é exatamente o contrário.”
Isto não significa, todavia, que a poesia pretenda a anulação da comunicação ou a abolição de todas as categorias e hábitos linguísticos tradicionais. Em vez disso, o objectivo da poesia responsável (segundo Augusto de Campos, a poesia concreta caracteriza-se pela “responsabilidade total”) é contrapor-se à atrofia da linguagem resultante do seu uso comum, maximizando a funcionalidade do material verbal. Assim, como defende A. de Campos (ibid.: 117-18), a poesia concreta exerce um trabalho sobre a linguagem, fazendo incidir sobre ela novos procedimentos, revitalizadores, sem que, todavia, haja razão para se pensar que o poema concreto utiliza uma nova linguagem:
A revolta da poesia concreta não é contra a linguagem. É contra a infuncionalidade e a formalização da linguagem. (…) não há razão para supor que os poetas concretos tenham criado uma nova linguagem, ou seja, que sua poesia escape por completo a qualquer categoria formal da linguagem. Se suas estruturas não coincidem com um determinado tipo de estrutura linguística (a ocidental, ou indo-européia, de modo geral) imposto pela tirania do hábito, isto não quer dizer que os poetas concretos não se sirvam de procedimentos conceituais e gramaticais universalmente conhecidos.
Dada esta radicalização da poesia concreta na linguagem, os seus próprios promotores (A. de Campos, D. Pignatari e H de Campos 1987: 124) deixaram de apresentá-la negativamente, como anti-…, para a apresentarem positivamente, naquilo que ela é e com base nas raízes que tem, passando de uma postura anti-tradição, para uma que se defende na tradição:
a poesia não mais precisa definir-se em termos de anti-sintaxe, ou de antidiscurso. Ela passa a viger por suas próprias normas, por suas próprias condições, assentadas estas, sem dúvida, nas raízes concretas da linguagem.
Esta definição pela afirmativa vai de encontro à perspectiva teórica genológica que tem sido designada como “participante.” Apresentar a poesia como anti-… encontrava correspondência na posição teórica de pertença que conduzia à atitude crítica de “não pertence a…” Dada esta atitude afirmativa, a poesia concreta define-se por aquilo que é: uma forma poética que, radicando na linguagem, procura uma revitalização da mesma, através de uma nova utilização do material verbal, conferindo-lhe novas dimensões e enriquecendo-o pelo recurso a princípios comunicativos provenientes de outras áreas da comunicação e da arte. Daí que a poesia concreta se afirme por aquilo que é, não omitindo as referências que constituem a base na qual radica, mas também não se coibindo de propor para essa base linguística uma renovação e um enriquecimento. Assim, não se justifica que os concretistas se coloquem numa atitude negativista, oposicionista, mas, pelo contrário, é legítimo que apresentem a sua produção com os objectivos que a acompanham e justificam, ao mesmo tempo que não se pode esperar que uma tal produção, de carácter intersemiótico, pertença a uma qualquer categoria classificatória fechada. Pelo contrário, assumindo uma postura flexível e relativista poderemos estar a cada passo disponíveis para reconhecer as diversas categorias em que ela pode participar.
Porém, alguns críticos como, por exemplo, Eric Vos (1987: 568) apesar de reconhecerem a participação de elementos sonoros e visuais que justificam a “verbivocovisualidade” da poesia concreta, defendem que a ênfase nas características visuais da poesia concreta não deve servir para afastá-la da sua fonte primeira que é a poesia:
the main problem of concrete poetry pertains to the relationship between the linguistic structure of the work, including “sound” and “sense,” and its visual structure – a relationship we could call “verbivocovisuality.” Emphasis on visual characteristics gave rise to the widespread view that concrete poetry transgresses the boundaries between poetry and painting. Advocates of this view ususally suggest that concrete poetry, or at least its extreme visual instances, acquires pictorial status and function.
De facto, também Eric Vos defende que a poesia concreta se inscreve essencialmente no campo literário e, talvez por isso, a defina insistentemente como um género. Além da frase supracitada, Vos faz referência a “the works of the genre” (ibid.: 576) e menciona ainda “the integrated ‘verbal-visual’ status of concrete poetry as it is proclaimed in practically every manifesto of the genre” (ibid: 577). No entanto, baseando-se nas afirmações de Augusto de Campos de que a poesia concreta não escapa às categorias universais da linguagem verbal, e embora reconheça outras reivindicações estéticas dos promotores do concretismo poético que apontam para a miscegenação das artes presente na poesia concreta, Vos (ibid.) defende todavia que “this strategy does not necessitate a heretical approach to language or eventually an exile into other realms of symbolization, such as for example, painting.”
Vos privilegia, pois, o aspecto linguístico na poesia concreta em detrimento do aspecto pictórico, já que estabelece como termos de oposição o verbal e o pictórico e não o verbal e o visual, considerando que tanto o texto impresso como o quadro têm uma apreensão visual, portanto esta oposição (verbal/visual) não é relevante. Como as unidades do texto concreto são unidades linguísticas, então o texto concreto é um produto que se liga mais à linguística (pertence a um sistema de símbolos articulados) do que à pintura (cujo sistema de símbolos é denso). Por isso, Vos contesta que os textos concretos só funcionem num contexto pictórico. Este ponto de vista é, contudo, motivado por poemas impronunciáveis, sem recurso a unidades linguísticas, e Vos, por outro lado, enquanto nega o predomínio do pictórico sobre o linguístico na poesia concreta, exemplifica com poemas que usam unidades linguísticas, não oferecendo uma explicação satisfatória para os primeiros.
Em suma, embora a poesia concreta se oponha a constrangimentos do passado, as suas propostas de carácter programático, enquanto propostas do novo, saõ apresentadas com um cunho afirmativo, como demonstra Alfredo Bosi (1982: 533):
a) no campo semântico: ideogramas (“apelo à comunicação não-verbal,” segundo o Plano-Piloto cit.); polissemia, trocadilho, nonsense…;
b) no campo sintáctico: ilhamento ou atomização das partes do discurso, justaposição; redistribuição de elementos; ruptura com a sintaxe da proposição;
c) no campo léxico: substantivos concretos, neologismos, tecnicismos, estrangeirismos, siglas, termos plurilíngues;
d) no campo morfológico: desintegração do sintagma nos seus morfemas; separação dos prefixos, dos radicais, dos sufixos; uso intensivo de certos morfemas;
e) no campo fonético: figuras de repetição sonora (aliterações, assonâncias, rimas internas, homoteleutons); preferência dada às consoantes e aos grupos consonantais; jogos sonoros;
f) no campo tipográfico: abolição do verso, não-linearidade: uso construtivo dos espaços brancos; ausência dos sinais de pontuação; constelações; sintaxe gráfica.
Assim, a definição da poesia concreta elaborada em termos positivos é valorizada pelo crítico Alfredo Bosi (ibid.: 537) ao afirmar que “talvez as vanguardas tenham mais razão no que afirmam do que no que negam.”
Notas >
Também Claus Clüver (1987a: 115) nos dá uma apresentação da poesia concreta, adoptando esta perspectiva de posicioná-la em relação àquilo a que ela se opõe:
The Concrete text may also be characterized by what it negates in the poetic tradition. It tends to refuse service as a vehicle for subjective experience and as a carrier of messages, to abolish the lyrical ‘I’ and the narrative voice, to strive for impersonality. It rejects the predominance of the signified over the signifier. It reduces the importance of the line as the basic constituent of the poetic text and eliminates the linear temporality of the logico-discoursive statement. It avoids the hierarchical structures of conventional grammar and syntax. It tends to prefer metonymy over metaphor and to do without rhetorical devices. It questions the concept of a ‘closed’ text with its hierarchy of established meanings.