Entre o objecto de arte e a especificidade arquitectónica do lugar

Texto de João Mendes Ribeiro, Arquitecto e Docente da Universidade de Coimbra, sobre a exposição de António Barros no Ciclo Nas Escritas PO.EX, Progestos_Obgestos | 1972-2012. Parte integrante do projecto-livro “Uma Luva na Língua” (em preparação). [Texto]


Progestos_Obgestos | 1972-2012

Entre o objecto de arte e a especificidade arquitectónica do lugar


A residência de António Barros na Casa da Escrita constitui um exemplo claro de apropriação de um espaço para a realização de um evento performativo capaz de integrar as suas qualidades pré-existentes, valorizar as suas características arquitectónicas e de o tornar verdadeiramente visível. Considerando a experiência arquitectónica aplicada à criação performativa, o autor desenvolve – no espaço disponível da casa, e de acordo com as suas regras – uma estreita ligação com o real, sem procurar dissimulá-lo nem criar nele abstrações puras de paisagens fictícias. É a partir dos estímulos que a casa convoca, como matéria-prima em permanente construção, que António Barros associa, abrindo novas e múltiplas leituras do espaço, os objectos de Progestos_Obgestos. A sua interposição acrescenta novas configurações ao espaço, reinterpretando-o e transformando-o numa intensa experiência que reforça o carácter vivencial dos espaços habitados. Um a um, os objectos apropriam-se dos espaços da casa para construir as histórias que, em simultâneo, parecem habitar desde sempre o lugar.

Desviando-se do funcionalismo e da racionalidade estrita que informa a arquitectura, os objectos operam no domínio do simbólico e da ausência de finalidade imediata. Ao inverso do determinismo funcionalista, os objectos não têm um uso unívoco. Pelo contrário, alheios a qualquer codificação existente, deixam em aberto a possibilidade de serem reinventados a partir da leitura de cada um, abertos à criatividade individual de cada observador e às infinitas narrativas que daí possam nascer. Estes objectos são, maioritariamente, artefactos do quotidiano transfigurados e afectos a novas leituras, cujo sentido plástico é infiltrado não só pela disfuncionalidade que lhes é dada, mas também pela sua relação com os espaços, abrindo, em cada um deles, uma poética particular.
Na riqueza da soma entre o lugar físico pré-existente e o lugar abstracto e simbólico inscrito nos objectos, o autor introduz, de certo modo, uma nova dramaturgia do espaço. A relação simbiótica entre espaços e objectos, subtilmente encenada por António Barros em cada divisão da casa, desafia as formas quotidianas de habitação, transferindo-as por instantes para um espaço reconvertido: um cenário real para acções imaginárias. Através de insinuações ou metamorfoses formais, abrem-se novas possibilidades de relação com o espaço da casa e com o seu imaginário. O facto de a leitura dos objectos decorrer num espaço de carácter doméstico testa na prática o desconforto do reconhecível, convidando o público a olhar de novo. Esta experiência propicia inusitados modos de ver, de habitar (com o olhar e a memória), numa adequação que oscila entre o reconhecimento e a estranheza.

Paradoxalmente, é essa estranheza que permite tomar consciência daquilo que se tornou banal pela experiência mecânica do quotidiano.
Revisitando, de certa forma, os anos sessenta do século XX, António Barros retoma a dimensão lúdica do objecto de arte, dando lugar ao humor e à ironia . Esta manipulação lúdica é conseguida, por um lado, com a extrema teatralização dos gestos associados aos objectos e, por outro, com a referência a acções do quotidiano, pressupondo a sua subversão funcional e a desmontagem dos sentidos que lhes estão associados. Na construção destes objectos híbridos, de âmbito conceptual, o texto surge, inevitavelmente, a evidenciar esta procura de uma nova forma de comunicação. António Barros persiste na noção da plasticidade do texto, transformando-o em objecto de arte e fazendo-o incidir também na capacidade do público em entender o espaço onde se move, em medir o espaço com o corpo. Assim mostrando, uma vez mais, que a experiência da sua obra não é apenas feita de texto e objectos, mas também de espaço e movimento.

O facto de os objectos se estenderem pelas diversas divisões da casa, segundo uma concepção arquitectónica, introduz a necessidade do percurso, exige caminhar pela casa. Transformando a visita numa espécie de exercício de voyeurismo, a dimensão pública da experiência é substituida pelo consumo da domesticidade do espaço privado da casa. Aproximando-o de um tipo de espaço vivencial, e até de uma certa noção de intimidade, transforma o público em habitante. Este interesse do autor pelo espaço real da casa permite que a sua obra deixe de ter uma leitura de mera contemplação, para se transformar em lugar usado, sentido e experienciado. Aproximando-se da arquitectura, substitui o objecto para ser olhado, pelo ambiente para ser vivido. Neste contexto – como nos happenings artísticos do final dos anos sessenta – a experiência do espaço surge intimamente ligada à sua vivência, introduzindo o corpo do visitante como elemento fundamental na percepção arquitectónica do espaço. Neste acontecimento de carácter performativo, os objectos deixam de ser uma entidade abstracta, para se relacionarem com um contexto preciso. Os objectos abrem-se aos territórios da performance pela acção que convocam, transformando-os em algo para ser sentido e experimentado. Nesse sentido, são entendidos enquanto lugares habitáveis cuja caracterização é determinada pelas circunstâncias e propósitos da acção e pelo movimento do público nos espaços da casa. O público transforma-se em participante activo e a sua percepção dos acontecimentos está irrevogavelmente ligada à experiência sensorial dos espaços que percorre.

A interação da obra de arte com todas as coisas em presença, e em particular com o corpo do visitante/habitante, permite diferentes experiências do espaço. O sentido de habitar a casa manifesta-se em duas dimensões distintas: a do corporal e a do mental. Enquanto a primeira é fonte da experiência directa com a casa, a segunda dá origem à aquisição de imagens e sensações de lugares não vividos, sugeridos pela natureza ambígua do objecto de arte. Esta experiência performativa pode ser incorporada na vivência do dia-a-dia da casa. No entanto, o objecto de arte associado a um acontecimento insinua uma forma de ruptura que provoca normalmente a reavaliação do público no fluxo do quotidiano. A importância das características físicas da casa redimensiona os objectos e consequentemente o lugar onde verifica a acção e simultaneamente reformula a noção de público com a distinção entre observador intencional e ocasional.

Considerando ainda, por fim, o sentido tectónico e a qualidade material dos objectos no seu subtil mas expressivo diálogo com os espaços e mobiliário da casa, é muito clara a afinidade entre as premissas da concepção de habitação de Progestos_Obgestos e aquelas que anteriormente determinaram o desenho do projecto de reabilitação da Casa da Escrita.