«Amor de Clarice» de Rui Torres [Recensão crítica]

Apresentação de Amor de Clarice, de Rui Torres, por Daniela Côrtes Maduro. [Texto. Ligações]


[Este texto foi também publicado em inglês no Electronic Literature Directory, parceiro institucional do Po-ex.net – http://directory.eliterature.org/node/3906]


Entre o conto de Clarice Lispector intitulado “Amor” (1960), descrito por Rui Torres como um hipotexto genettiano (Torres, 2011), e Amor de Clarice (2005), o leitor pode encontrar um processo de metamorfose iniciado, não só por Nuno M. Cardoso (voz), Ana Carvalho (video), Carlos Morgado (som), Luis Aly (som) e Rui Torres (programação), mas também pela máquina. A autoria distribuída e a apropriação do conto de Clarice produz um texto “plagiotrópico e devorador” (Torres, 2003: 2) que contraria noções enraizadas de originalidade. Embora referindo-se a Húmus, poema contínuo (2008), outro poema de Rui Torres, Manuel Portela refere que os textos generativos “parecem ter sido libertados de uma origem autoral definitiva” (Portela, 2012: 50). Visto como uma base de dados (Portela) e como o resultado de programação, processamento e intervenção do leitor, Amor de Clarice é capaz de manter uma transformação constante, o que subverte o conceito de originalidade ou de significado original.

O conto “Amor” (1960) foi rescrito ou re-interpretado (Torres, 2003: 3) em Flash e usado como a matriz de uma obra auto-reflexiva e multimodal. Sequências de vídeo, imagens e ficheiros de som foram adicionados ao texto original transformando a sua aparência linear e finita numa superfície estriada, caótica e dinâmica, ou nos versos sobrepostos e evanescentes de um poema que é lido em voz alta. O texto é gradualmente dominado pela hibridez e pela fragmentação, diluindo as “fronteiras rígidas e inflexíveis da classificação”, tal como observado por Rui Torres (Torres, 2003: 2). Este texto amorfo e mutante é gradualmente contaminado pelo discurso oral (cada verso corresponde a um ficheiro de som), tornando-se numa reverberação da sua própria leitura sincopada. As frases interrompidas e transitórias podem ser configuradas pelo leitor mas elas sobrepõem-se frequentemente. A voz de Nuno M. Cardoso é objecto de um processo de replicação que é por vezes activado pelo leitor. As vozes que murmuram palavras indiscerníveis criam um ciclo de repetição impossível de deter. Som e texto escrito permanecem interligados, como se ecoassem a apropriação do conto de Lispector. Este processo de permutação (Portela, 2013: 202) é espelhado pela auto-geração do texto. Esta é alimentada, tal como referido no título, por “Amor” de Clarice.


Ler tb >


Referências >

PORTELA, Manuel (2012). “Autoauthor, Autotext, Autoreader: The Poem as Self-assembled Database”, in Writing Technologies, vol. 4, disponível em: https://www.ntu.ac.uk/__data/assets/pdf_file/0030/827085/Manuel-Portela-Autoauthor,-Autotext,-Autoreader-The-Poem-as-Self-assembled-Databas.pdf

PORTELA, Manuel (2013). Scripting Reading Motions: The Codex and the Computer as Self-Reflexive Machines. Massachusetts: MIT Press.

TORRES, Rui (2003). “Ler Clarice Lispector, re-escrevendo Amor”, disponível em: http://www.telepoesis.net/papers/clamor.pdf

TORRES, Rui (2011). “Amor de Clarice” (entrada), in Electronic Literature Collection, vol.2, disponível em: http://collection.eliterature.org/2/works/torres_amordeclarice.html