Homines Estis

Texto de António Barros sobre a sua obra ‘Homines Estis’. [Texto. Ligação]


“Homines Estis” não é obra em si, mas uma convocatória pretensamente geradora do devir da obra. Uma artitude que convoca o obgesto, afirma-se nele, através dele. Resolve-se nele.

Surge a presente intervenção no alinhamento da anterior artitude “Aula Vaga” (1.000.051′ Aniversário da Arte, Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, CAPC, 2014). E em resposta a um convite para que o “gesto” resultasse contributivo na formulação da prova académica da doutoranda Isabel Maria dos Santos, FLUC [de nome artístico Isabel Maria Dos].

“Homines Estis – Para um desenho neurológico do dr. Shiro Ishii”, mereceu uma condução a distância pelo autor, António Barros, e foi apresentado no Edifício das Caldeiras, Universidade de Coimbra, às 23h00 de 16 de Maio, 2014, no âmbito do 3′ Andamento de ‘Paisagens Neurológicas’, na sua segunda edição.

“Até que os olhos explodissem”

“Maldade humana” é o tema de convergência – agente motor e fundacional -, do estudo que esta artitude procurou aqui veícular como característica, fatalmente intrínseca no perfil da pessoa, residente num vértice de impunidade capaz.

Os pânicos da sua redenção são estruturantes, e resultam activos na revisitação de uma lucidez antiga, antes enunciada por Luis Vaz de Camões (1517 e 1524?-1580) em Desconcerto do Mundo.

Os bons vi sempre passar
no mundo graves tormentos;
e, para mais m’ espantar,
os maus vi sempre nadar
em mar de contentamentos.

Cuidando alcançar assim
o bem tão mal ordenado,
fui mau, mas fui castigado:

Assi que, só para mim
anda o mundo concertado

Em mar de estranhos contentamentos nadou Shiro Ishii (1892-1959), um médico, microbiólogo japonês (1) que desenvolveu a sua actividade no Departamento de prevenção de epidemias e purificação de água do exército de Guangdong (2). O Departamento ficava localizado no distrito de Pingfang, na cidade de Harbin, no estado de Manchukuo, no nordeste da China (3).

Sob a orientação do médico Shiro Ishii, ocorreram vivissecações (dissecações de pessoas vivas, em alguns casos sem anestesia) retirando orgão por orgão até o óbito; exposição a mudanças extremas de temperatura, ou a temperaturas excessivamente baixas; gaseamento dos pacientes levando-os à morte por sufocamento; ou mesmo enclausurados em câmaras de descompressão, enquanto pesquisadores cronometravam dados como o tempo para que os olhos explodissem. Foram ainda, neste contexto laboratorial a partir da orientação de Ishii, disseminadas doenças e pestes como o tifo, cólera, peste bubónica, disenteria e antraz em várias cidades chinesas, levando à morte cerca de duzentas mil pessoas (4).

A denúncia, na moldura “Homines Estis”, do perfil de crueza do “investigador” Ishii, ultrapassando todos os limites para observar os mais intangíveis comportamentos do corpo humano ‘in extremis’, procurava conduzir ainda a uma condição outra: à consciencialização perante os malefícios dos obcessivos excessos de investigação em domínios como os da animu (nephesh). Entenda-se da razão da poiética do Ser onde a Arte se exalta e ‘reveste’. Tudo num “dá-me a mão”, não a luva em suas máscaras impune. A mão viva. Viva de “g e s t o s”.


NOTAS

(1) Shiro Ishii foi também tenente-general da Unidade 731, unidade secreta de pesquisa e desenvolvimento de guerra química e bacteriológica do Exército Imperial Japonês, considerado responsável por conduzir experiências com seres humanos e crimes de guerra durante a Segunda Guerra Sino-Japonesa.

(2) Este Departamento ficou conhecido pela sua referência: Unidade 731, originalmente sob o comando da Kempeitai (polícia militar). Foi responsável por alguns crimes de guerra na China e outros países da Ásia, numa das maiores atrocidades realizadas pelo exército imperial japonês sobre prisioneiros e civis chineses, soviéticos, filipinos e mesmo de nacionalidades pertencentes a países Aliados, com uma prática similar às experiências feitas com humanos nos campos nazis.

(3) Manchukuo foi um estado fantoche (Monarquia constitucional) na Manchúria e leste da Mongólia Interior criado por oficiais da antiga Dinastia Qing com apoio do Japão Imperial em 1932, sendo um governo totalmente subordinado aos interesses do Império Meiji. O estado foi fundado e administrado pelo Japão Imperial, sendo Puyi, o último Imperador Qing, o regente nominal e imperador.

O governo de Manchukuo foi abolido em 1945 após a derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial. Apesar do nome, os Manchus eram uma minoria étnica em Manchukuo, cuja população era maioritariamente chineses Han. Havia também Coreanos, Japoneses, Mongóis e outras minorias. As regiões mongóis do oeste de Manchukuo mantinham as tradições próprias do povo mongol.

(4) No pós-Guerra o governo japonês e o governo norte-americano ficaram a conhecer as práticas da Unidade 731 e as actividades realizadas durante o período da Guerra. No entanto o Governo Americano concedeu imunidade aos perpetradores e ajudou a encobrir acontecimentos e provas em troca de dados. Assim, os crimes de guerra cometidos foram mantidos em segredo para o resto do mundo. Só em 1989, com a descoberta de inúmeros cadáveres no subsolo da cidade de Tóquio por operários da construção, é que o segredo começou a ser levado a público deixando o estado de silêncio.

O filme “Hei tai yang 731” (em inglês: “Men Behind the Sun”; em português: “Campo 731: Bactérias, a maldade humana”), retrata as experiências da Unidade 731; assim como inspiraram a banda de Trash metal Slayer a compor a música “Unit 731” e à criação da artitude “Homines Estis”, de António Barros, para ‘Paisagens Neurológicas #2’.


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