P_Enquanto o corpo se desfaz

Texto de António Barros sobre “Portugal: Braço(a)deus_Palavras nuas”. [Texto. Ligação]


Iniciei em 2011 uma operação de leitura nas ruas da cidade de Coimbra recolhendo do espaço urbano escrita e desenho. A colecção, tarefa aberta, chama-se: “Urban Collage”. A primeira peça editada: “Mudos os tempos, mudas as vontades”, foi publicada na Revista Triplov de Artes, Religiões e Ciências [nova série, n. 30, agosto, 2011] enunciada como obra compósita – texto sem assinatura, colhido nas ruas de Coimbra em 2011. Apropriação urbana em modo de homenagem a José Ernesto de Sousa [http://novaserie.revista.triplov.com/numero_30/antonio_barros/index.html].

É neste alinhamento que surge “Portugal: Braço(a)deus_Palavras nuas” – ‘A Poesia está na rua’, 40 anos depois.

De autor anónimo, um desenho de um corpo nu, género masculino, é ‘grafitado’ numa parede, em esquina, numa antiga residência contigua à Sé Velha de Coimbra na geografia de transição entre a Rua da Ilha e o Largo da Sé.

A rua de sentido único, severamente estreita, obriga aos condutores de automóveis que por ali circulem uma manobra de perícia nem sempre conseguida. Por isso diariamente os carros rasgam um pouco mais a parede reforçada com uma coluna de calcário que dificilmente resiste ao desgaste.

Foi este o suporte do desenho do homem, já desnudado e faminto, distribuindo as mãos divididas entre o corpo carente e o apelo lacrimoso num desespero asfixiante de inglória clamação.

Num espaço diferenciado de dois anos, neste arco temporal que terminou agora, registei diversas fotos onde depois editei três momentos distribuídos no tempo. O desgaste é progressivo, afirmando uma narrativa de apagamento estrutural da figura que, primeiro perde a mão direita fundida na barriga, e posteriormente o próprio rosto. A textura ganha pelos traumatismos constantes das máquinas que a todo o momento roubam fundo à pedra, dão ao cenário um dramatismo sufocante. A cada dia a imagem está mais pobre e reduzida. A todo o momento passam carros. Uns chocam contra a parede, outros não. Mas a indiferença perante o ‘pobre homem’, a quem chamei Portugal, é unânime. Um cruel retrato da realidade de hoje que não consegui ignorar (1).

Assim, como a imagem se decompõe, o texto que legenda esta imagem de oratória urbana se desestrutura também. Uma verdadeira história do lugar no lugar, contada pelas forças do acaso. Tudo num realismo insustentável. Numa escrita efémera. Numa dor sem máscara. Já sem rosto: Portugal. Adeus!


V(l)er tb >


NOTAS

(1) A parede que sustenta a coluna suporte da imagem ‘narradora’, surge em frente à porta das instalações, edifício sede, da Imprensa da Universidade de Coimbra. Um dos lugares onde desenvolvo o meu trabalho de directoria de imagem. À figura apelante, que a todo o momento me enfrenta, seria difícil escapar. Ela espera “o Tempo, esse grande Escultor”. Esse saber de Yourcenar. Ela é o próprio Tempo da História. História de gente a perder a História. Com fome. Sem Tempo. Enquanto o corpo se desfaz. Portugal.