Viva o Abílio!

Texto de Rui Torres sobre Abílio-José Santos. [Texto. Ligações]


Texto lido por Rui Torres na inauguração da exposição “O guardador de nada“, com obras de Abílio-José Santos, Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, 8 de Junho de 2018.


Abílio, esse desconhecido… “[h]umilde e provinciano homem do Norte – as velhas terras do lidador da Maia…” (In: da AICA laica lacaia)

Um homem simples, dirão alguns simplórios. Sim, Simples, humilde: a simplicidade que permite criar obras livres, densas, inquietantes e complexas… Complexas talvez demais?

Quem tem medo de Abílio?

Abílio interrogativo: “Quem manda pôr espantalhos / nas searas do saber?” (In: Interrogações)

Abílio explicativo, humano: “tenho cincoenta e sete anos [em 1983] de existência / olhos azuis e uma data de doenças… / sou desenhador de profissão / poeta quando calha / e em matéria de religião ateu como uma bola de bilhar – vermelha!…” (In: O futuro defunto que se parece comigo)

Abílio inclassificável: a sua obra em fluxo, indeterminação, abertura, diálogo. Abílio, portanto, a Vanguarda: sem nome de vanguarda.

Abílio sozinho: “Como um cão vadio / Escorraçado em toda a parte.” (In: O voo do morcego). Mas também, como dizia em suas cartas muito abertas à AICA: “sou, cada vez, mais chato”. Abílio interventivo.

Abílio subterrâneo, contra. Outro poeta do underground, Alberto Pimenta, dele disse: “Abílio trabalhou sempre à margem do grupo de poetas concretos e do seu sistema teórico, que recusa. Para ele, todo o fundamento epistemológico é repressivo: nesse sentido é o mais consequente de todos. (…) trabalho e liberdade, trabalho e(m) liberdade.”

Abílio: “duma maneira geral não gosto das teorias que li ou televi nem dos gajos que as pariram!” (In: Poemografias)

Abílio inconformista e anti-académico: “auto-didacta insurrecto e panfletário” (In: Poemografias)

Auto-didacta convicto: “entendamo-nos já: – autodidaxia é «Acto de se instruir sem mestre»; não é acto de se estupidificar sem mestre… (…) O amadorismo procura o desenvolvimento do indivíduo e a consciência crítica das regras básicas da sociedade. O amador pode dar-se ao luxo de perder.” (In: manifesto à cidade dum trabalhador fabril-técnico de desenho artista autodidacta amador dadaísta).

Abílio afirmativo: “sou um autodidacta, amador e dadaísta, experimentalista por índole.” (In: Poemografias)

Abílio outro, como assina na história de desencantar escrita num “edital” para exposição na galeria Alvarez em 1968: “era uma vez um esqueleto amarrecado e mal vestido onde moravam três pessoas – um cidadão, um artista e um desenhador industrial. imuscuiam-se, é certo, mas esforçavam-se por manter unidade, paz e coerência.” (In: edital)

Abílio renunciando a felicidade da escrita, renunciando… Trabalho e dor – dizendo de si: “trabalhava com prazer até à dor” (In: edital)-, político e poético, na obra de Abílio em misturas inesperadas.

Abílio manifesto, manifestamente Abílio, Abílio manifestado como poética radicalmente crítica: Abílio corrosivo na procura (descoberta!) de técnicas, meios, materiais: a experimentação, a intersemiose, a intermedialidade.

Abílio entre: técnicas: gravura, desenho, pintura, “escultura”, colagem, foto-montagem, fotocópia…; meios: acrílico, linóleo, serigrafia, guache, tinta da china, tipografia expressiva; suportes: papel (reciclado, cartão, texturizado), acrílicos, embalagens e outros objectos quotidianos (pacotes de leite, embalagens de queijo…). Abílio múltiplo.

Abílio subversivo: montagem, apropriação, reciclagem: “a arte como lixo / o lixo como arte” (In: I e II Manifestos Lixarte).

Abílio SEM: publicar, divulgar, premiar, mas agora, cada vez mais, a ressuscitar. Abílio fénix.

Quem tem medo de Abílio?

“Morte à morte” do Abílio!

Abílio independente, em edição de autor: fora do sistema editorial e à margem dos circuitos tradicionais de distribuição: Abílio é toda uma literatura marginal izada (cf. A. Saraiva)!

Abílio fugindo-nos, sempre escapando: a dificuldade de conter a sua obra, de a classificar, de a meter em gavetas.

Abílio vivo!

Abílio activo: no Grupo Vermelho, nas revistas Sempre e Tábua, na rede de mail-art, na comunidade PO.EX.

Abílio e a sedução “pelo artesanato, pela manufactura”, articulando uma “escrita-gesto dotada de um carácter processual e exigindo o total envolvimento do sujeito” (E. Ribeiro, 1995).

Abílio poeta: “Ou sou poeta / Ou louco! // Por que sou um homem / E nunca deixei de ser a criança que já fui.” (In: O voo do morcego).

Abílio ele mesmo: “os poetas que mais admiro são os camponeses e os artífices. e os poemas mais belos e gostosos são o pão, a água, o olhar das crianças, uns seios de mulher, o vagabundear pelo porto, embalagens esmagadas pelo rodado dos carros contra o piso das ruas, o sol, a chuva, as árvores.” (In: Poemografias)

Abílio jogo, joga, lúdica experimentação com a montagem. Uma noção outra do espaço, sempre coerente (desenhista e projectista…), Abílio mestre da colagem.

Abílio DaDa, para quem “a arte moderna começa nos dadaístas” (In: Arte e Liberdade), sempre em diálogo com os ready mades de Marcel Duchamp, sobre cujo urinol gritou (i.e., escreveu a vermelho): “MAIOR CRIAÇÃO ARTÍSTICA DE SEMPRE!” (In: (COLAGE)Manifesto vermelho)

Abílio efémero, com uma vereda na Maia, a Vereda de Abílio José Santos. Chega uma vereda? Chega uma exposição? Da bela “memória perturbada” de Abílio, por José Viale Moutinho, cito: “Admiravam-no em todo o mundo, disso podem estar certos”.

O que falta para homenagear (para reparar? para reparar em?) Abílio? Para Viale Moutinho: “(…) há uma coisa que há muito me apoquenta. É que não haja sensibilidade na Câmara Municipal da Maia para organizar um Espaço Abílio, onde se deveria guardar e dinamizar todo este enorme espólio que ele deixou.!”. E ainda: “Falta um cartapácio em que estejam reunidos todas as suas produções,”…

Homenagem a Abílio soube fazer o César Figueiredo, em “Secret Room”: “No secret room, numa caixa só dele, com habilidade guardava os jogos, as dores, os humores, as brincadeiras, as iras, os lamentos, os afectos, as denúncias, as paixões, as causas… / No secret room, um dia, amornou a água e dividiu com cuidado os berlindes para que tudo corresse bem. / na porta do secret room, o amigo do encontro recusado, não entendeu a peça e denunciou o grande final. Um pouco depois, no secret room, como um panfleto, poema ou manifesto, acabou com todos os jogos e brincadeiras! / ……………………………………………………… foi bom poder ver-te a gerir o amor e o ódio que tinhas por todas as coisas…………… nunca te conheci a indiferença.”

Quem tem medo de Abílio?

Viva o Abílio!