«Estratégias do gosto» de Fernando Aguiar [Recensão crítica]

Texto da apresentação do livro Estratégias do gosto, de Fernando Aguiar, por Rui Torres. [Texto. Ligação]


Apresentação a 21 de Junho de 2013 na Casa da Escrita Coimbra, no âmbito da exposição «EX.PO / PO.EX 1982-2012» de Fernando Aguiar.


Embora o rótulo de Poesia Experimental não seja consensual, nem a história de um possível movimento ou grupo dessa mesma Poesia, em Portugal, esteja ainda escrita, ou possa vir a ser escrita; embora, ainda, Fernando Aguiar não tenha participado nas actividades, hoje históricas, dos 1960, a que poderíamos associar as escritas PO.EX, seria injusto afastá-lo da denominação, e o seu lugar nesta história por fazer é o lugar dos que sucedem, o lugar dos que maturam, desenvolvem, abrem novas portas, divulgam e promovem.

Fernando Aguiar poeta? Artista visual? Performer? O tempo e algum distanciamento crítico o dirão. Aqui, agora, cabe o elogio (e, se disso for capaz, a apresentação) do seu mais recente livro, Estratégias do Gosto, publicado, como um bom cidadão global que é, ou como um obediente cidadão português (a quem agora mandam emigrar), primeiro, no Brasil, na editora Escrituras, de São Paulo, na colecção Ponte Velha, criada por António Osório e Carlos Nejar; e, agora, re-editado pela Palimage, com sede em Coimbra, na colecção Palavra Poema, dentro do género (sic) Poesia Visual. E embora este livro específico não se configure dentro daquilo a que se poderia chamar poesia visual, cumpre esta designação o seu ofício no que diz respeito ao autor, que chega a admitir, ainda que ironicamente, no texto “Poéticas”: “Num país de líricos / quem tem olho / é visual” (p. 71). De qualquer modo, o elogio à Palimage, pela iniciativa, quiçá pela coragem, é igualmente merecido.

Para-textualmente, dois apontamentos relevantes: as ilustrações de capa e miolo com fotopoemas da série Calligraphies realizadas em Diamantina, no Brasil, em 2006, diferentes nas duas edições; e, apenas na edição brasileira, uma entrevista de 2002 dada ao Professor Rogério Barbosa da Silva, bem como uma biografia e bibliografia, no final, relevantes para compreender o percurso do autor e a dimensão da sua obra.

Dividido em seis partes, ou secções [a saber: “Como quem quer dizer tudo”; “O tudo que é pouco”; “Pronto. Ponto”; “O cheiro da tua pele”; “Acerca do poema”; e “Tanto tão pouco”], com cinquenta e quatro poemas, alguns deles dispersos, outros por publicar, outros novos, estas Estratégias do gosto provam a variedade de abordagens que Fernando Aguiar imprime às suas criações. Aqui, uma poesia devolvida à palavra (a ausência de imagem, portanto). Palavra na sua dupla articulação: do fonema ao monema; da letra ao signo. Nesse sentido, será de poesia que aqui devemos falar. Sem grandes rodeios, ou sem necessidade de cautelas, como em outros trabalhos poderia acontecer. Poeta ponto. Poesia ponto final.

Em outras intervenções, Aguiar faz da poesia acto, ao nível das literaturas marginais e marginalizadas, como diria Arnaldo Saraiva. A sua obra, de facto, rompe frequentemente com a literatura dominante (oficial, consagrada ou clássica), está fora das “ideologias literárias” e problematiza a “economia de mercado editorial”. Como o próprio escreve num dos seus quadros: “A história da arte é a história do comércio da arte”. Neste sentido, este livro será mais fácil de classificar na Biblioteca Nacional e passível de se encontrar nas livrarias. No entanto, embora aqui já não estejamos perante uma poesia que o marketing literário não consegue compartimentalizar nos formatos definidos pelo mercado (bastaria lembrar que a poesia de Fernando Aguiar tem sido publicada em folhetos, catálogos, objectos, jardins…), mantém-se uma certa radicalidade da abordagem: nela se continua a promover a novidade nas técnicas e nos motivos, a contaminação dos géneros, a complicação estrutural.

Diria que a sua poesia de inovação e de invenção procura empregar todas as técnicas e materialidades disponíveis, a fim de aumentar os níveis de informação e assim reduzir a redundância na obra, obrigando o leitor a buscar os limites do sentido dentro da complexidade do texto, encontrando por isso, aqui, um espaço concretizado dessa busca de uma morte da linguagem de que falava Roland Barthes. Um livro de prazer, de um escritor para quem a linguagem e a própria poesia são um problema, não uma solução: uma “poética que transmite / fora do tom” (p. 11).

Aqui, pois, a poesia de Fernando Aguiar, como alguma poesia concreta que também o inspirou (embora não seja disso exclusivamente que aqui se trata), não é tanto uma poesia sobre algo, mas antes uma poesia que pretende afirmar-se como uma realidade em si mesma. Os seus poemas comunicam a sua própria estrutura, no sentido em que exploram a ontologia e a origem das palavras que os habitam: “pensamento ou pensaminto / penso no nada que sinto (…) repenso naquilo que pensa em mim” (p. 25). Esta persistente operação de deconstrução, se quisermos, linguística, através da fragmentação da linearidade do verso, sinaliza ainda o próprio fazer poético, principalmente na secção “Acerca do poema”, onde se incluem poemas com títulos sugestivos como: “O poema”, “Poema-processo”, “A construção do poema”, “Poéticas”, etc.

As suas palavras aparecem, ainda, como signos-objecto e signos-objectos, articulando o questionamento da linguagem em que se inscrevem e escrevem: “impossível é não entender o poema / quando se leva com os versos na cara” (p. 12). Poemas semióticos ou de semiose, de experimentação com a língua, comprovando a capacidade auto-reflexiva desse gosto pelas estratégias expressivas da linguagem.

Embora, por vezes, situada num apelo à não-verbalidade, é antes pela comunicação polissémica que se infiltra nesta poesia o humor e o amor, por vezes o absurdo e o non-sense que os une. Na secção mais longa deste livro, “O cheiro da tua pele”, mostra-se um Fernando Aguiar menos conhecido, indagando, ainda pela linguagem, a construção do corpo, aqui erotizado pela palavra e atravessado pelo signo, pela temperatura de “lábios / lívidos / lânguidos” (p. 48), de pele, língua ou falo.

A atomização e a justaposição, também características d(est)a poesia concreta, assim como a correspondente redistribuição dos elementos pela espacialização e pela concentração, apresentam essa “linguagem reduzida” de que falava Eugen Gomringer. Através de procedimentos de aglutinação, promove-se aqui uma rarefação semiótica essencial para a compreensão da dialética entre a leitura e a não-leitura, entre opacidade e transparência, como em “Ensaio nº 204” (p. 44), entre outros.

Estes aspectos, por sua vez, vertem-se nas figuras de repetição, nas aliterações, nos jogos sonoros. Essa recursividade obsessiva dos elementos fonéticos, indagando no corpo da palavra a sua própria origem, resultam numa fragmentação discursiva que, através de variações mínimas, introduz transformações ao reportório apresentado, dentro de uma estética minimalista e combinatória, de que são exemplo o texto “Problemática da dificuldade” (pp. 27-28) ou as variações em “so(u)neto” (pp. 36-37).

Por fim, também o uso construtivo dos espaços em branco ou a ausência de sinais de pontuação apontam para a fragmentação do verso, embora, note-se bem, com verso e com pontuação, apenas deslocados da sua função habitual. Assim, a constelação e a disposição gráfica dos significantes na página sugerem frequências que são diferentes daquelas autorizadas pela versificação ou pela pontuação. E aqui, de facto, o ponto é rei (ver, a este propósito, toda a secção “Pronto. Ponto”, p. 31 e ss.). Esta configuração gráfica permite, pois, ao leitor, como ao autor, ligações significativas e inesperadas, definindo a possibilidade de combinação de diferentes elementos do sinal para produzir novas formas de leitura e interpretação.

Este é o livro que eu ainda procuro nas livrarias. Há cada vez menos. Obrigado, Fernando Aguiar: gosto, degustei e voltarei com gosto às suas Estratégias do Gosto, nesse “local exacto / onde o poema / termina” (p. 15) para de novo recomeçar.