De poemas e obgestos: Oito parágrafos para uma aproximação às artitudes de António Barros

Texto de Rui Torres sobre poemas e objectos, sobre os obgestos de António Barros. [Texto. pdf]


Este texto é parte integrante do projecto-livro “Uma Luva na Língua” [em preparação].


Também publicado em: TORRES, R. (2014). De poemas e obgestos: Oito parágrafos para uma aproximação às artitudes de António Barros. In: TORRES, R. (Org.). Poesia Experimental Portuguesa: Contextos, Ensaios, Entrevistas, Metodologias. Porto: Edições UFP, p. 192-194. ISBN 978-989-643-121-1. Disponível em < https://po-ex.net/pdfs/POEX_ebook2014_rtorres_192-194.pdf >.


um. a poesia requisita à poética um certo número de silêncios.


Estudou em Coimbra e em Barcelona, mas a sua formação estética deve menos às Universidades do que ao diálogo com Wolf Vostell, Alberto Carneiro e José Ernesto de Sousa, nas artes plásticas, ou às relações pontuais com António Aragão e Ernesto de Melo e Castro, no âmbito da poesia experimental. Talvez por isso a obra de António Barros articule, de um modo expressivo, aspectos do experimentalismo literário e do movimento Fluxus, contribuindo para o alargamento da poesia experimental a outras práticas discursivas pós-concretas e pós-visuais. Servindo-se da intermedialidade e da transposição intersemiótica para conferir performatividade ao literário, os seus poemas tornam-se atitudes que resultam da encenação e da transfiguração estética dos objectos que abduzem. A dimensão política e ética das obras efémeras de Barros permite alcançar o estatuto poelítico de grande parte do experimentalismo literário, mas a comum conceptualização do experimentalismo não basta para as compreender: elas requisitam às poéticas um certo número de silêncios, mais do que ensinamentos.


dois. a letra requisita à censura um certo número de brinquedos.


Na obra de António Barros identificam-se traços dessa contaminação entre arte/poesia e teoria/reflexão, já que elas se comunicam e informam mutuamente. Esta poeprática2 segue, através de uma ênfase dada aos valores expressivos da materialidade da linguagem, um sentido de permanente vigilância, na tradição das poéticas auto-reflexivas, mas ultrapassando-as. A transfiguração dos objectos, por meio da sua articulação estética em contextos variados, promove a perda de referencialidade dos utensílios, conferindo-lhes uma dimensão simbólica. Verifica-se um certo sentido epifânico que devora a nossa e a própria vida do autor, numa prática de auto-revelação que requisita à humilhante vida política do ser humano o sentido transcendental do brinquedo da infância.


três. a mão requisita à poesia um certo número de binóculos.


Os trabalhos de António Barros resistem, por isso, à obsolescência das coisas no tempo apressado da contemporaneidade. São o oposto dos gadgets; são anti-tecnológicos, embora nos ajudem a compreender e a contextualizar com profundidade esse sentido primordial de tecnologia como discurso artístico, baseado na técnica e no ofício, entretanto perdido. Por isso o autor reavalia, traduz e recontextualiza constantemente os seus próprios ofícios. Uma abertura da forma que a crítica apenas consegue tocar no espaço da identificação dos contágios, das relações entre o social e o pessoal, entre o político e o científico. A sua mão requisita às gramáticas da poesia os binóculos que sinalizam a sua própria sublimação.


quatro. a linguagem requisita à fonética um certo número de ruídos.


Sabe-se que a mensagem artística se actualiza e realiza na leitura, e nesse sentido também o objecto estético se completa apenas no momento da sua recepção. A banalização das formas pressupõe um processo reflexivo que desvia a acomodação da própria crítica. Os obgestos de Barros são investigações criativas que, na sua auto-teorização fluída e indeterminada, dissolvem a pertinência de uma crítica normativa da arte, incapaz de situar, na efemeridade da praxis artística, a tensão essencial que as alimenta. No limite, estas obras apenas podem ser verdadeiramente entendidas quando vivenciadas e experienciadas nos contextos específicos da sua intervenção. A linguagem que está na base destes trabalhos verte em ruído a matéria fonética do mundo.


cinco. a integração da reflexão na palavra.


Os objectos comunicam: uma colher promove uma certa maneira de comer e significa esse mesmo modo de comer; uma cadeira ensina e reforça um hábito cultural que é o sentar-se de certo modo, em determinadas ocasiões. Os códigos semióticos do quotidiano apresentam-se como sistemas de significação em segundo grau que estão na base de toda a cultura humana. Na verdade, grande parte da nossa experiência quotidiana é ela própria metalinguística, já que toda a cultura se estabelece como referência à linguagem. Mas os objectos de Barros não são meros objectos encontrados. Os objectos de António Barros são gestos: mais do que uma simples estetização da experiência humana, definida pelo encontrar, desenquadrar e repor, vive neles uma actividade criativa que é fundamentalmente perceptiva, na medida em que existe como resultado de deslocações fulgurantes, fragilizando a fronteira entre o quotidiano e a arte, entre a realidade e a imaginação, entre o eu e o mundo. Eles re-significam a integração da própria reflexão (auto-biográfica ou cidadã) na palavra eleita poema (no obgesto).


seis. a deformação da palavra na poesia.


Anti-académico, anti-crítica e anti-arte, António Barros procura também o erro, a deformação de si próprio, na perpétua metamorfose e mobilidade das formas. Uma responsabilidade total perante a linguagem, que lhe permite a construção de uma poesia aberta, dentro da linha das dinâmicas performativas. Vivenciação e experienciação que operam na sua poesia e na sua arte a deformação dos saberes e dos sentires.


sete. a censura da poesia na ironia.


Portadores de formas e, portanto, de uma gestalt, os objectos proliferam na sociedade contemporânea devido ao desenvolvimento da tendência para a aquisição da civilização burguesa; pelo desenvolvimento do objecto em série, normalizado; e devido à ostentação a que a condição social obriga, como explicou Moles. E a sua presença é tão insistente que o ser humano transita de produtor a consumidor. Valorizar a vida, recuperando a dignidade do comportamento livre, passa por isso, na obra de Barros, pela narratividade atribuída aos objectos, transfigurados pela revisitação operada na ironia, pela abertura.


oito. a alfinetada da poesia na linguagem.


Assim vistos, os objectos não são “naturais”: são signos. O sentido duplamente fabricado da obra de António Barros assume uma pertinência (e uma atitude/artitude) simultaneamente ética (social, política) e estética. Porque os objectos, os lugares e os gestos não podem ser apenas o lugar de uma satisfação de necessidades. Inscrevendo-os numa ecologia social e humana sustentável, ao mesmo tempo afasta-os, pelo gesto de transfiguração poética, da estratégia do poder, da estratificação, dos códigos normativos. Os objectos não mais traduzem uma forma de opressão, antes promovem o trabalho de resolução de um luto primordial. Escravos do espaço que ocupam, já que a dimensão real em que vivem é prisioneira de uma outra dimensão moral que significam, na obra do autor os objectos vivem, metamorfoseiam-se permanentemente, são uma ferida aberta que os retira da configuração da família burguesa moderna. António Barros transporta e remete para uma nova ordem simbólica esta representação, traduzindo o desenvolvimento de uma consciência individual que se projecta numa mentalidade de ser humano global. Uma alfinetada na linguagem, através da poesia.


Os títulos dos vários parágrafos deste texto foram gerados pelo motor textual “8 brincadeiras para Salette Tavares” (Torres, 2010), segundo procedimentos aleatórios e combinatórios a partir de léxico do livro Lex Icon, de Salette Tavares (1971).