Luís Adriano Carlos [Entrevista concedida a Raquel Monteiro]

Entrevista a Luís Adriano Carlos (Poeta, Professor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto), por Raquel Monteiro (bolseira de Investigação do projecto CD-ROM da PO.EX). [Texto]


Que importância reconhece ao volume PO.EX, organizado por E. M. de Melo e Castro e Ana Hatherly, no contexto da história da poesia portuguesa contemporânea?

É um registo documental de textos teóricos, doutrinários e interventivos, portanto elaborados em causa própria, com influência directa na leitura da Poesia Experimental pela crítica literária e pela história da literatura. Este tipo de fenó­meno sucede em todos os movi­mentos de vanguarda. Mesmo o Modernismo de Orpheu — não exclusivamente de vanguarda, pois encerra uma dimensão pós‑simbolista muito forte —, foi lido em grande medida através de textos teóricos e doutrinários de Fernando Pessoa, também elabo­rados em causa própria. Ou o Modernismo da Presença, interpretado e valo­rado com base em alguns textos de José Régio que permitiam a sua exclusão parcial do processo modernista. Trata‑se, por conseguinte, de um fenómeno norma­líssimo, que não devemos perder de vista enquanto tal para não dis­tor­cer­mos a objectividade do juízo crítico.


Como explica que na actualidade já não existam movimentos de vanguar­da?

Já não estamos na era das vanguardas. A era das vanguardas históricas pode situar‑se entre o Cubismo e o Surrealismo, num ciclo que compreende um quarto de século, embora se assista, posteriormente, à eclosão de movi­men­tos similares. Por exemplo, em França, destacaria um movimento que com­bateu o Surrealismo durante a II Grande Guerra, denominado Letrismo e liderado por um compatriota de Tristan Tzara, o romeno Isidore Isou, que pretendeu acabar com milénios de «poesia em palavras», fundando a «Era do Alfabeto». Encontramos manifestações parciais desse projecto na Poesia Experimental, por exemplo em E. M. de Melo e Castro e Ana Hatherly, que por vezes são atraídos por uma poesia da letra. Mas já não se trata de um genuíno fenómeno de vanguarda, em termos estritos. Tecnicamente, fala‑se de neovanguarda… Ora, o primeiro ciclo vanguardista, o ciclo das van­guar­das históricas, coincide com o primeiro quartel do século XX, podendo estender‑se, conforme os países, até à II Grande Guerra. Nele incluímos o Futurismo, o Cubismo, o Dadaísmo, o Expressionismo (sem repercussões directas em Portugal) e todo um labirinto de «ismos» que, no fundo, não são senão especializações do Modernismo, por sua vez extre­ma­mente contradi­tório. A nível internacional, «Modernismo» designa o Parna­sianismo e o Simbolismo no mundo hispano‑americano, desde 1888, com Rúben Darío e os seus sucessores, mas também exclui as correntes finis­se­culares na sua vertente vanguardista, da Europa central ao Brasil. Con­tudo, o Moder­nismo em Portugal é um misto de Simbolismo, mais propria­mente Pós‑Sim­bolis­mo, e de formas mitigadas de vanguardismo em cria­ções como o In­ter­seccionismo de Pessoa e o Sensacionismo das primeiras odes de Álvaro de Campos. Já o Modernismo brasileiro, lançado em 1922, nega radical­mente o Simbolismo e o Parnasianismo. Portanto, de 1888 a 1922, passando pelas vanguardas na Itália, na França, na Alemanha e na Suí­ça, assistimos a uma metamorfose contínua do conceito de Modernismo, que muitas vezes se disfarça sob outras designações, iludindo os efeitos anti­modernistas da en­cíclica Pascendi de Pio X. Todos estes conceitos podem ser agregados, hoje, a uma distância já minimamente segura, num processo muito vasto e con­traditório que vai de 1888 até à II Grande Guerra, sem esquecermos que no Norte da Europa chega a ultrapassar estas coor­denadas.

É neste contexto geral e complexo que devemos enquadrar o fenómeno da vanguarda. Entre as suas várias interpretações, sobressai a ideia de cons­tituir uma ponta de lança do Modernismo, um momento climático em que a Alta Modernidade ganha consciência de novos problemas de natureza esté­tica e existencial. Porém, a vanguarda assume‑se essencialmente como espe­cia­lização do Modernismo, com a missão de arruinar a ideia de arte como instituição, em nome de uma ideia da arte como criação e liberdade de cria­ção. Com o Dadaísmo, extingue‑se, por assim dizer, uma certa concep­ção sacral da arte, legada pelas tradições clássica e romântica, mediante o escar­necimento dos «valores altos» a ela associados, de que o «urinol» de Du­champ é o momento definitivo.

Nos anos 60, ocorre uma ressurgência do espírito de vanguarda que não podemos confundir com o vanguardismo da primeira metade do século. Há agora uma hiperconsciência dos objectivos formais, uma aposta muito clara já não na contestação da arte ou da poesia, mas na contestação do discurso sentimental e do próprio discurso. É isto que está em causa: os Expe­ri­men­talistas não repudiam a arte; muito pelo contrário, põem a tónica na dimen­são visual da linguagem estética (no fundo, a dimensão artística mais pres­tigiada pela tradição), em detrimento da sua dimensão lógica, a ponto de contestarem a própria ideia de discurso como matéria e forma da poesia. Os poemas visuais e os visopoemas organizam‑se segundo uma sintaxe que deixa de ser analítica e discursiva, para se representar, na fórmula de Apol­li­naire, como ideográfica e sintética. Não é difícil perceber que a poesia che­gou assim a um limite extremo, condenando‑se a si mesma à impossi­bili­dade de se reproduzir no tempo como invenção original sempre reno­vada. O neo‑romantismo que se lhe seguiu, nos anos 70, foi já a expressão de um refluxo, devolvendo a poesia a uma certa ideia sentimental e discursiva da linguagem. Mas a lição experimental não deixou de influen­ciar alguns poe­tas dos anos 80, não enquanto lição de vanguarda, impossível de replicar sem o estigma da imitação, mas enquanto sabedoria de um certo modo de viver esteticamente a experiência original da poesia.


Considera que a Poesia Experimental é um fenómeno radicalmente novo?

Do ponto de vista histórico, podemos dizer que a Poesia Experimental em Portugal, no princípio dos anos 60, é um fenómeno novo e original. Ela contesta esse filão lírico que se desenvolve no pós‑guerra — a poesia dis­cursiva que vem do presencismo e do neo‑realismo, a poesia metafórica e a poesia epigramática. De certo modo, trata‑se de uma resposta à poesia estribada no discurso, com antecedentes no Modernismo de Orpheu, e em particular no poema «Manucure» de Mário de Sá‑Carneiro. Além disso, há toda uma genealogia mais ampla que foi sendo criada (pois é necessário criar uma genealogia quando se aspira à legitimação), e que passa pelo Mallarmé de «Un Coup de Dés jamais n’Abolira le Hasard”, por Ezra Pound, Fenollosa ou e. e. cummings. Por seu lado, os trabalhos de inves­tigação de Ana Hatherly vieram revelar documentalmente que já a arte barro­ca desenvolvera experiências prodigiosas de poesia visual.

Com efeito, sempre a poesia foi visual e ideográfica, mas era preciso lembrá‑lo com uma evidência que não se percebia à vista desarmada. A própria ideia de metro contém em si mesma o sentido da medida e da di­men­são espacial. Por sua vez, a ideia de ritmo está intimamente associada à relação dinâmica entre as categorias do tempo e do espaço: as palavras têm pés com que percorrem uma certa geografia. Mesmo quando, na Idade Média, se codificou a rima — o chamado homeoteleuto, que sempre existiu —, as equivalências fónicas e os ecos sonoros acentuaram um relevo siste­mático, digamos um efeito estereo, que visou exactamente espacializar a linguagem. Na verdade, a rima consiste numa dimensão vertical do texto linear e discursivo, que cria uma visão espacial na consciência imanente do leitor. O mesmo sucede com a estrofe, o que é mais evidente, ou com formas literárias de base matemática como o soneto. Estou a pensar numa tese que orientei sobre A Poligonia do Soneto de Melo e Castro. A autora, Paula Monteiro, estudou o problema da geometria em sede poética, mos­trando como o soneto se organiza segundo figuras geométricas (quadrado, rectângulo, triângulo, octógono, hexágono), que desde Petrarca foram ga­nhan­­do uma nitidez cada vez maior. A experiência do soneto é antes de mais visual, pois reconhecemos a sua presença pela dimensão. No caso do soneto canó­nico português, este reconhecimento provém de uma impressão visual intui­tiva. Acontece mesmo que muitos sonetos, percebidos imediata­mente como sonetos, não se organizam internamente como sonetos. Nesses casos, o poeta valoriza no soneto exclusivamente a sua componente gráfica, o seu design. Ora, Melo e Castro, neste seu livro, e na esteira do Jorge de Sena de As Evidências, desmembra a forma sonetística ou substitui versos por alga­rismos que podem ser agregados e dar um saldo, mas tendo presente a estrutura espacial do soneto, não inventada em si mesma, mas reinventada nas suas potencialidades não‑discursivas. Em suma, a Poesia Experimental revive e refina uma longa tradição visual, desde a famosa ekphrasis de Simónides de Ceos, que a cultura, e sobretudo a literária, nem sempre soube reconhecer como essencial e permanente.


Nesse caso, seria preferível chamar Poesia Visual à Poesia Experimental?

O leque é muito mais vasto. Não foi por acaso que Melo e Castro viveu e trabalhou em São Paulo, sede do Concretismo de Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari. Basta lermos os manifestos publi­cados por eles nos anos 50, também em causa própria, para encontrarmos a matriz de PO.EX. Do ponto de vista teórico, está lá a base de tudo quanto depois seria realizado pela Poesia Experimental portuguesa, ainda que esta se revista de desenvolvimentos e ramificações peculiares. No entanto, con­vém reconhecer que sempre a poesia foi experimental. Por isso prefiro dizer poesia concreta, embora, vendo bem, toda a poesia seja concreta, mesmo aquela que se alimenta de abstracções. Assim se designa uma orien­tação poética e estética que aposta na concretude da própria palavra, des‑sub­jecti­vizando‑a e transformando‑a em objecto visual e fenómeno empí­rico. Vol­ta­mos à contestação do discurso enquanto tal. Neste sentido, poesia concreta talvez seja a melhor forma de designar a Poesia Expe­ri­mental, mas não podemos iludir o facto de, por exemplo, Melo e Castro ter tido expe­riências de tipo videográfico ou informático. Recordo‑me, a propósito, de um debate muito aceso que travei com ele, num jantar literário, há uns anos. Tendo saído recentemente uma antologia de sete poetas dos anos 80, intitulada Poesia Digital e por mim prefaciada, Melo e Castro censurou a pertinência do título, o que me permitiu alegar que os experimentalistas dos anos 60 se foram apropriando de tudo quanto soava a novidade tecnológica, com a mesma intolerância com que os discursivos lhes foram negando a eles direi­tos de cidadania no território poético. Na década de 70, quando ainda se estava longe da generalização do adjectivo «digital» (que se refere a dígito, mas também a dedo), falava‑se em infopoesia, videopoesia ou literatura ciber­nética, integrada, sobretudo por Pedro Barbosa, na linha potencial do OuLiPo e de Raymond Queneau. Entretanto, impôs‑se uma nova termi­nolo­gia para designar a poesia elaborada por meios digitais, nem sempre ciber­néticos e frequentemente em linguagem html. Ora, é claro que as facturas poéticas dessa antologia não são «poesia digital» no sentido de poesia feita por computador, ainda que o texto tenha sido digitado em teclado e pro­cessador informáticos, como quase toda a poesia hoje em dia, escrita mais com os dedos do que com o punho. Todavia, o título Poesia Digital só não é irónico e provocatório para quem nem sequer tenha folheado a antologia. De resto, assinalei no prefácio que os poetas da década de 80 pertencem à primeira geração nascida na revolução digital, um fenómeno civilizacional e cultural dos eighties que desencadeara novos tipos de sensibilidade estética e de vivência da escrita a que os novos poetas não poderiam ficar indi­feren­tes.

Este episódio revela um indisfarçável sentimento de ortodoxia, mas tam­bém é verdade que o surpreendemos noutros quadrantes. De um modo geral, todos os movimentos literários e artísticos tendem para uma certa ortodoxia, depois de terem vivido a época heróica da contestação e da inovação, se de facto a viveram. Seja como for, da mesma maneira que rejeito a discriminação de movimentos não «experimentalistas», parece‑me um tanto míope arrumar a Poesia Experimental no catálogo das curiosi­dades, uma vez que a poesia, nesta ou naquela forma, não é senão a esplen­dorosa reafirmação de Babel e da possibilidade que temos de representar o mundo como pluralidade por meio de liberdade. A Poesia Experimental é uma das muitas formas que a poesia tem de dizer o que não pode ser dito no universo da linguagem social que nos configura, comanda e reprime.


Considera então que esta é a via mais radical de libertar a linguagem desse quadro repressivo?

Ruy Belo, um dos poetas mais discursivos dos anos 60, é um dos poetas mais experimentalistas da época, embora não conste do catálogo histórico­‑literário dos «poetas experimentais». Leia‑se, por exemplo, «Laboratório», «O Jogador do Pião» e «Variações sobre ‘O Jogador do Pião», de Boca Bilingue, e assista‑se ao trabalho laboratorial, puramente experimentalista, sobre a forma concreta do soneto. Mas Ruy Belo, apesar disso, viria a tor­nar‑se o maior versilibrista português e o grande mestre do poema longo, em contramão com o programa da Poesia Experimental. Poeta intensa­mente discursivo, deixou contudo de usar pontuação a uma escala incom­parável nas nossas letras, com uma intencionalidade que Apollinaire ainda não podia ter no princípio do século, e com uma fecundidade que não têm os poetas epigramáticos de inspiração mallarmiana, quando recorrem a este expediente para isolar os versos como «palavras totais». Creio que Ruy Belo assimilou dialecticamente os ensinamentos da Poesia Experimental, numa expressão nova que reconverteu as possibilidades da poesia discursiva. Ele percebeu agudamente que o Experimentalismo foi necessário para testar os limites da linguagem e da própria poesia portuguesa. Historicamente, o regresso epigonal a uma poesia discursiva, com os poetas que começam a afirmar‑se nos anos 70, só é possível por ter existido o Experimentalismo, ainda que Ruy Belo, estreado em 1961, faça o seu caminho com uma poesia intimamente discursiva, ou Jorge de Sena, já consagrado na altura, seja o autor de alguns dos livros mais discursivos e até prosaicos dos anos 60, como Metamorfoses, Arte Música e Peregrinatio ad Loca Infecta. Isto, para dizer que o período de que falamos não pode ser reduzido à Poesia Experimental e à Poesia 61. Para mim, o maior poeta dos anos 60 (e não só) é Ruy Belo, e mais tarde ou mais cedo a imagem histórica desta época será revista em função de uma axiologia menos comprometida com as partes interessadas, porque o que marca cada época, no futuro, são os seus maiores vultos.

Por outro lado, o homo po.ex é um homo artifex, por isso ele trabalha num laboratório. Mas o que caracteriza o génio criador é a procura da síntese entre a natureza e a regra por meio de liberdade. No caso da Poesia Experimental, em que o texto chega a ser representado como máquina dota­da de capacidade de auto‑reprodução, quem afinal regressa é o homem da regra, o homo rationalis. Recorde‑se que a modernidade estética emer­giu, no século XVIII, do aluimento fragoroso do edifício clássico, que sepul­tou a regra e a razão normativa como princípios ordenadores da poesia e da arte. Estamos pois perante algumas ligações um tanto estranhas que não vêm nos livros. Imaginemos um diálogo entre o homo po.ex e o homo classicus, em que o primeiro se reconcilia com o segundo nestes termos: «Comigo volta a regra, comigo volta a programação, comigo volta o objecto pré‑fabri­ca­do…». É no mínimo perturbador, se tivermos presente que o sentimento, o gosto, o sublime e o génio são os quatro grandes motores da Moder­ni­dade estética, libertando a criatividade e a vivência fruidora do espartilho da razão, da regra e do belo ideal. Ora, o poeta moderno é o génio enquanto força motriz e energeia que agita a linguagem, invenção que vem de longe, desde a Antiguidade platónica e aristotélica, com síntese moderna na Renas­cença Italiana pelas mãos de Marsilio Ficino, antes de o Romantismo ter sacralizado e desgra­çado este conceito tão importante para a Poética. Neste sentido, o génio é a mais alta compenetração que a natureza pode fazer de si mesma, o poder criador que procura a síntese entre a natureza e a regra, isto é, como dizia Kant, uma natureza que dá a regra à arte. Trata‑se do próprio sujeito en­quanto energia activa que se apodera do objecto, não à margem mas acima das regras, impondo‑se como regra por meio de uma forma inau­dita de liberdade exemplar. E o facto é que na Poesia Experimental existe claramente uma recusa do génio, na medida em que ele não pode ser senão discursivo, emocional e fisiológico, expressão viva da energia criadora e da sua reali­zação estética, dotada de um poder de afecção sensível sobre o leitor. Essa recusa acaba por correr o risco de criar um eixo de comunicação com uma certa ideia de poesia como desenvolvimento racional de um programa, à maneira de um software de código fechado. O mundo da literatura e da arte conhece bem esta realidade «digital», que teve a sua glória entre os séculos XVI e XVIII. Recordemos as poéticas clássicas de Scaliger a Boileau, onde os famosos preceitos não eram mais do que programas de composição. Enfim, aludo aqui à tradição horaciana. Na Arte Poética de Horácio, peça admirável a todos os títulos, inscre­vem‑se pre­ceitos que durante séculos ali­mentaram a realização de muita poe­sia medío­cre, produzida na observância estrita de princípios normativos de compo­sição exteriores à linguagem e à sua vivên­cia estética. Podemos de facto desenhar esta trajectória, mas com as devidas calibragens, atentas à especificidade histórica e às correlações poético‑esté­ticas da época.


E como vê a Poesia Experimental na sua qualidade de poeta?

Como poeta, tenho uma costela experimental. Penso num livro que publi­quei em 2000, mas composto em 1991, intitulado Livro de Receitas, título de que um poeta muito sensível me disse não gostar… É óbvio que um con­junto de poesia intitulado Livro de Receitas diz de forma muito clara ao que vem. Desde logo, no caso, o título é um antitítulo que começa por criticar a lógica dos títulos bonitos e de belo efeito que pontifica entre os poetas das últimas décadas. Há mesmo livros que só valem o título, quando ele é de facto um achado. Ora, não há título mais prostituído do que o título Livro de Receitas, no sentido da célebre tirada de Furetière, segundo a qual um belo título é o melhor proxeneta de um livro. Por isso mesmo, ele comporta uma tese que é reversivelmente uma pura antítese, a confirmar no desenvol­vi­mento concreto dos poemas, que promovem uma sátira de costu­mes poé­ticos, visando os modos de composição da minha geração, através de solu­ções que são exemplos experimentais de como se confecciona um produto apreciado por certas formas de gosto. Contudo, além do silêncio de quem só leu a primeira camada e porventura pensou tratar‑se de um mau livro de culinária, recebi algumas críticas, até de autores a quem reconheço grandes créditos, que não tiveram a percepção de um género satírico de segundo grau, categorizando os poemas como textos habilidosos, um a priori meri­dional normalmente apli­cável aos poetas que também são críticos, en­saís­tas e professo­res. Em suma, considero que este livro é experimental no sentido em que, não sendo uma sátira de costumes sociais, é contudo uma sátira poética dos costumes da própria poesia.

Já o meu segundo livro, Invenção do Problema, de 1986, reeditado no primeiro trimestre de 2006, é composto por cinquenta e duas décimas organizadas segundo o mecanismo da anadiplose, em que o último verso de uma estrofe se reescreve no primeiro da estrofe seguinte, o que subordina o poema aos tópicos do laboratório e da escrita como pesquisa, reforçados por um tipo de figuração que se desvia do método analógico e se aproxima muito mais de uma retórica digital, compatível com a expressão abstraccio­nante e metonímica do conjunto.

Em resumo, sinto que tenho, naquilo que produzi até O Suicida Apren­diz, de 2002, uma grande atracção pela poesia experimental, mas não pela Poesia Experimental. Além destas experimentações, nunca elaborei poemas concretos, no sentido de poemas icónicos na substância e na forma. É algo que me interessa na qualidade de leitor, crítico e professor — mas não enquan­to poeta. Poemas exemplares como, por exemplo, «Aranha», de Sa­lette Tavares, ou «Pêndulo», de Melo e Castro, acabam por satisfazer um desejo estético que não é o meu senão na ordem do instantâneo, correndo mesmo o risco de entrar no domínio do engraçado. Interessam‑me mais as categorias realistas do trágico, do feio e do sublime, a que a poesia faz apelo como vias de acesso à sensação da vida, no que ela tem de mais duradouro e terrível.