Texto de Pedro Reis publicado no livro Poesia Concreta: Uma prática intersemiótica. [Texto]
A poesia concreta pode ser considerada como um fenómeno com expressão global, na medida em que esta designação é atribuída a um conjunto vasto e internacional de poemas. Consequentemente, o concretismo não incide particularmente sobre a produção de uma qualquer nacionalidade (o concretismo austríaco, alemão, brasileiro, espanhol, inglês, norte-americano, português, etc.), mas sim sobre uma produção poética que, na sua transnacionalidade, torna possível a detecção de uma configuração dominante. Assim, usando uma formulação generalizante, a poesia concreta pode ser entendida como o nome dado a uma variedade de novas experiências formais levadas a cabo por poetas de muitos países, a partir da Segunda Guerra Mundial, como resposta à sua percepção das necessidades vivenciais e linguísticas do homem contemporâneo (cf. Solt 1970: 7).
Este alargamento do campo poético relaciona-se com a utilização da linguagem de forma reduzida o que, na opinião de alguns destes poetas, permite à poesia concreta comunicar com uma objectividade idêntica à da fórmula científica, além de ter reflexos noutros usos da linguagem, como o mundo da publicidade e dos mass media, que são igualmente formas de expressão e comunicação assentes em códigos internacionais.
Haroldo de Campos (1987: 36), por exemplo, considera que “a arte da poesia, embora não uma vivência função-da-história [se apoia] sobre um continuum meta-histórico” e, portanto, é possível traçar uma história da evolução da poesia acima das fronteiras nacionais ou linguísticas, pelo que deixam de fazer sentido as questões relacionadas com as determinações do país e da cultura de origem do escritor. Daí que o projecto concretista brasileiro procure estabelecer uma tradição literária da poesia concreta ancorada, essencialmente, em bases internacionais, como veremos mais adiante, e procure também, enquanto movimento de vanguarda, renovar decisivamente a poesia nacional, ao mesmo tempo que lança no mercado internacional a poesia brasileira, como demonstra Paulo Franchetti (1992: 81-2):
Concebendo, porém, a poesia como uma atividade em que a técnica (entendida como um conjunto de procedimentos ou meios para se construir um poema) evolui “independente de longitude, latitude e língua,” é natural que Haroldo privilegie, na “correlação dialéctica” entre o universal e o nacional, o lado universal.
Os jovens poetas de São Paulo procuravam, efectivamente, a influência internacional da poesia concreta e aspiravam ambiciosamente à difusão universal do seu projecto. Aliás, Jon M. Tolman (cf. 1982: 149), apesar de encarar a poesia concreta como um fenómeno internacional, confere uma certa primazia ao concretismo brasileiro, reconhecendo-lhe a liderança desse movimento intercontinental.
Todavia, alguns críticos, como Ana Hatherly, por exemplo, procuram demonstrar que a poesia concreta não está particularmente conotada com o grupo brasileiro mas, pelo contrário, constitui uma tendência que, por exemplo, na Europa adquiriu também a sua autonomia. Assim, Hatherly (1981: 92) afirma que “quando falamos de poesia concreta não nos referimos a uma escola particular como, por exemplo, a escola brasileira, mas sim a uma tendência actual da poesia europeia.”
Afrânio Coutinho (1972: 295), por seu turno, parece desviar a primazia que Jon Tolman atribuira ao grupo brasileiro Noigandres para Gomringer, ao mencioná-lo entre as influências que dão origem ao concretismo brasileiro:
Depois de 1950, revelando influências de Mallarmé, Pound, Joyce, Apollinaire, Gomringer, veio surgindo um movimento poético inspirado no concretismo pictórico, caracterizado pela redução da expressão a signos concretos, que visem à apresentação directa do objectivo pela organização de elementos básicos da linguagem em representações gráficas.
O crítico brasileiro comete, assim, a imprecisão de considerar o poeta suiço-boliviano[1] como precursor do grupo Noigandres. De facto, tal situação não corresponde à realidade, uma vez que os jovens poetas brasileiros, à data da publicação dos seus primeiros poemas concretos, desconheciam ainda o trabalho que, praticamente em simultâneo,[2] estava a ser desenvolvido por Gomringer, na Alemanha, como também refere Mary Ellen Solt (cf. 1970: 12). Aliás, a concomitância com que surgiu, na Europa e na América do Sul, a poesia concreta, é vista por Gomringer como um indício significativo de uma necessidade sentida por uma espécie de espírito do tempo. Esta simultaneidade é também confirmada por Augusto de Campos (1965: 390), um dos membros do grupo Noigandres[3]:
El movimiento brasileño de poesia concreta fue lanzado, como tal, en contemporaneidad cronológica con una línea análoga en la poesia de lengua alemana, promovida por el poeta suizo-boliviano Eugen Gomringer. Este por su parte y sin previo contacto con el grupo Noigandres, estaba elaborando, también desde 1953, una teorización y una práctica en muchos puntos afines a las del equipo brasileño.
Além disso, Augusto de Campos também se refere à falta de contacto entre a equipa Noigandres e Gomringer, aos quais deveríamos ainda acrescentar Öyvind Fahlström, poeta e teórico sueco, que, também em 1953, publica já o seu “Manifesto para a Poesia Concreta,” como veremos mais adiante, embora nele demonstre um entendimento de concretismo algo diferente do dos outros teóricos mencionados. Todos teorizaram e produziram o “concretismo” sem contactarem uns com os outros, o que parece demonstrar a existência de inquietudes vivenciais e necessidades estéticas comuns, como defende Ana Hatherly (cf. 1979a: 97), reafirmando o surgimento simultâneo do concretismo no Brasil e na Europa como a manifestação da coincidência de uma experiência comum.
Como sugere Haroldo de Campos (1987: 77), há uma grande identificação entre o poema concreto e a “constelação,” termo utilizado preferencialmente por Gomringer, a ponto de as formulações utilizadas serem reciprocamente válidas:
O poema concreto – para utilizarmos uma afirmação de Gomringer sobre a “constelação” – é uma realidade em si, não um poema sobre… Como não está ligado à comunicação de conteúdos e usa a palavra (som, forma visual, cargas de conteúdo) como material de composição e não como veículo de interpretações do mundo objectivo, sua estrutura é seu verdadeiro conteúdo.
Dada esta identidade entre o suiço-boliviano Eugen Gomringer e o grupo paulista Noigandres, motivada pela existência de pontos comuns à produção poética de uns e outros, estava estabelecida a ponte entre a América (do Sul) e a Europa, que viria a servir de base para a expansão da poesia concreta por muitos países do mundo.
O reconhecimento desta afinidade dá-se de forma inequívoca quando, em 1955, Décio Pignatari visita a Hochscule für Gestaltung, em Ulm, onde encontra Gomringer, à data, secretário de Max Bill. Este encontro, que constituiu uma revelação surpreendente para ambas as partes, foi decisivo para a internacionalização do movimento, a ponto de ser referido como “the beginning of the international movement of concrete poetry” (Solt 1970: 12).
A poesia de Eugen Gomringer era influenciada por William Carlos Williams (discípulo e amigo de Ezra Pound) e pelo alemão Arno Holz. Gomringer praticava uma poesia extremamente reduzida, de construção rigorosa e ortogonal. A exemplo de Mallarmé, denominava os seus poemas “constelações,”[4] que expunha do seguinte modo, no manifesto intitulado “From Line to Constellation,” incluído na antologia Concrete Poetry: A World View, organizada por Mary Ellen Solt (1970: 67)[5]:
The constellation is the simplest possible kind of configuration in poetry which has for its basic unit the word, it encloses a group of words as if it were drawing stars together to form a cluster. The constellation is an arrangement, and at the same time, a play-area of fixed dimensions.
O contacto entre o poeta de Ulm e os brasileiros foi reciprocamente proveitoso, tendo havido uma troca de influências frutuosa de parte a parte. Gomringer, em carta de 30/08/1956, dirigida a Décio Pignatari, já havia aceite a expressão “poesia concreta”proposta pelos brasileiros, como designação geral do fenómeno, embora conservando, para designar a sua própria experiência, a de “constelações.” Diz Gomringer (in Solt 1970: 12) [6] :
Votre titre poésie concrète me plait très bien. Avant de nommer mes poèmes “constellations,” j’avais vraiment pensé de les nommer “concrets.” On pourrait bien nommer tout l’anthologie “poésie concrète,” quant à moi.
Posteriormente, o grupo brasileiro divulgou bastante no Brasil os artigos teóricos e a poesia de Gomringer, enquanto este, por seu turno, propagava na Suiça, na Alemanha e na Áustria, o trabalho da equipa Noigandres.
Em França, o novo movimento de poesia experimental foi lançado por Pierre Garnier, através do “Manifeste pour la Nouvelle Poésie – Visuelle et Phonique,” publicado em 1962, no número 29 da revista Les Lettres. Garnier designou o seu movimento “espacialismo,” por considerar que era necessária uma revisão da linguagem para exprimir a nova consciência do homem enquanto ser cósmico na era do espaço. Assim, referindo-se à ordenação espacial do poema, Garnier utiliza o termo “constelação,” o que revela que o seu entendimento quanto à disposição do material verbal na página em branco é muito idêntico ao de Gomringer, como se pode verificar nesta proposta do poeta francês: “Let them [the words] be reunited, like ourselves, to cosmic space-word constellations on the white page” (in ibid.: 32).
Em 1963, Garnier redigiu um manifesto com o qual tentou unir os poetas experimentais de todo o mundo. Uma vez que o espacialismo contemplava o espaço nas suas dimensões visuais e sonoras, Garnier considerou que poderia congregar muitos, senão todos, os tipos de poesia experimental existentes. Um rascunho do manifesto foi enviado aos poetas, solicitando aprovação e assinatura, e apareceu na sua forma final como “Position I du Mouvement International,” em 10 de Outubro de 1963, no número 32 da revista Les Lettres. Trata-se de um documento clarificador, que oferece definições de vários tipos de poesia experimental, das quais a poesia concreta é a que Garnier (in ibid.: 79)[7] coloca em primeiro lugar, constituindo, aliás, a definição mais abrangente:
concrete poetry: working with language material, creating structures with it, transmitting primarily esthetic information.
Muitos poetas concretos aprovaram e assinaram o documento.[8]
Também em Portugal, apesar de a produção deste tipo oscilar entre a designação poesia concreta ou poesia experimental, a poetisa portuguesa Ana Hatherly (1981: 91), uma das participantes no projecto, ousou dar uma definição de poesia concreta, na qual poderemos ver contemplada a produção que designaram também por experimental: “reduzir a música a ritmo, o pensamento a esquema, a palavra a substantivo: eis a poesia concreta.”
Contudo, o arauto desta produção poética em Portugal, a revista de que saíram dois números, intitulava-se efectivamente Poesia Experimental, mas simultaneamente verificamos que estes autores portugueses, além de serem signatários de um movimento internacional, como vimos, a par de alguns dos mais representativos poetas concretos de todo o mundo, estão ainda eles próprios representados em antologias de poesia concreta, sem nunca terem refutado essa participação, além de que eles próprios usam a designação poesia concreta para se referirem à sua própria produção. Atente-se, por exemplo, nesta afirmação de E. M. de Melo e Castro (ibid.: 95), proferida pelo autor, na Feira do Livro de Lisboa, em 1962, a assinalar o lançamento do seu livro intitulado Ideogramas:
Venho falar-vos da mais recente Poesia Portuguesa e, em particular, da Poesia Concreta – pois Guimarães Editores vai lançar, nesta mesma Feira do Livro, um volume de Poesia Concreta de que sou o Autor.
Além disso, também António Aragão (ibid.: 103),[9] um dos organizadores do primeiro e segundo números da revista portuguesa Poesia Experimental, utiliza a designação poesia concreta para se referir à poesia de Melo e Castro, um dos seus acompanhantes na organização, produção e edição da referida revista, ao afirmar que “o aparecimento do livro Ideogramas do poeta E. M. de Melo e Castro representa, antes de mais, um raro acontecer agora da poesia concreta entre nós…”
A questão terminológica respeitante a este modo poético chega a afectar a própria produção brasileira. Como refere Paulo Franchetti (1992), para caracterizar a poesia concreta recorre-se à evocação de alguns procedimentos poéticos inovadores como “utilização de poucos elementos dispostos no papel de modo a valorizar a distribuição espacial, o tamanho e a forma dos caracteres tipográficos e as semelhanças fónicas entre as palavras,” (ibid.: 22) embora este autor reconheça que “tal definição não se aplicaria tão bem a poemas como (…) os poemas manuseáveis de Augusto Campos, ou ainda aos poemas sem palavras de Décio Pignatari” (ibid.: 24). De facto, uma primeira conclusão que se pode alcançar é que sob a designação “poesia concreta”encontramos um conjunto heterogéneo de produtos poéticos, absorvidos todos num determinado projecto que se configura com o passar do tempo,[10] o que constitui uma questão interessante dado que nos permite, por exemplo, questionarmo-nos quanto à pertinência das escolhas de poemas na elaboração de antologias.
A confirmar esta diversidade está o facto de serem classificados como poemas concretos produtos bastante diferentes, a ponto de ser muito difícil detectar elementos que possam constituir um conjunto de características que permita estabelecer a “semelhança de família” entre estes poemas. De facto, estão incluídos em antologias internacionais de poesia concreta, poemas sem componente verbal (anexos 1 a 4), o que parece invalidar a consideração de “reduced language” como denominador comum desta prática poética. Os poemas semióticos (anexos 5 e 6) também não utilizam material verbal no corpo do texto, estando apenas complementados com uma “chave léxica.” Este tipo de poemas, inventado pelos brasileiros Décio Pignatari e Luiz Ângelo Pinto, foi parodiado pelo poeta escocês, Ian Hamilton Finlay, que elaborou um “semi-idiotic poem” (anexo 7). Alguns outros poemas (anexo 8), embora utilizem material verbal, são todavia ilegíveis, no sentido em que apelam mais a uma contemplação e não dão origem a uma verbalização, e outros ainda, os poemas sonoros (anexos 9 e 10), utilizam material verbal de tal modo que da vocalização desse material só resultam sons, ruídos desprovidos de semanticidade verbal.
Além disso, os poemas concretos revelam técnicas e métodos de composição muito diversos como o ilhamento ou a atomização do material verbal, a justaposição, a aglutinação, a interpenetração, a redistribuição, o recorte, etc., como se poderá constatar nas análises poemáticas que farei mais adiante.
Esta diversidade de materiais utilizados (sinais de pontuação, letras, sílabas, palavras, traços, formas, cores…), assim como a variedade de instrumentos utilizados no processo de elaboração e a multiplicidade de suportes materiais dos poemas, aliadas à diversidade de técnicas, métodos, concepções e inclusive teorias que enformam esta prática poética, levam à designação de múltiplos tipos de poemas concretos como, “type poems,” “typewriter poems,” “kinetic poems,” “tape recorder poems,” “fonetic poems,” “object poems,” “semiotic poems,” “code poems,” “popcrete poems,” “poster poems,” “permutational poems,” “emergent poems,” “logograms,” “collages,” “montages,” etc. (cf. Solt 1970 e cf. Williams 1967).
Em suma, apesar da existência de outras classificações para estas experimentações o que, consequentemente, estabelece uma certa confusão terminológica, a expressão poesia concreta parece ser aquela que mais consensualmente congrega estes diversos tipos de produções, como explica Claus Clüver (1987a: 114):
The label “Concrete Poetry,” proposed by the Brazilian Noigandres group and accepted by Eugen Gomringer to designate the kind of poem they were creating in the mid-fifties, was soon attached to many kinds of “visual” or “phonetic” or “kinetic” or simply “experimental” texts.
Então, entendida nesta acepção globalizante, a expressão poesia concreta congrega este tipo de produção poética, que não é um projecto de carácter nacional, mas, excedendo as fronteiras dos países em que nasce e dos idiomas em que se cria, coloca-se num plano supranacional. O fenómeno estende-se a quase todos os países europeus e até ao Japão com diversos nomes, tendências, ênfases e diferenciações locais. Assim, temos o concretismo, alemão ou brasileiro, o espacialismo francês, a poesia cinética inglesa, etc., etc.. Mas, de um modo geral, a poesia concreta ergue-se principalmente contra as convenções, mesmo artísticas, em que assentam as artes poéticas admitidas, também convencionalmente.
Deste modo, é o próprio Gomringer (in Solt 1970: 69)[11] a contribuir para uma certa estabilização terminológica, demonstrando a sua adesão à expressão “poesia concreta”:
“Concrete Poetry” is the general term which includes a large number of poetic-linguistic experiments characterized – whether constellation, ideogram, stochastic poetry, etc., – by conscious study of the material and its structure (…): material means the sum of all the signs with which we make poems. Today you find concrete poetry in Japan, Brazil, Portugal, Paris, Switzerland, Austria and Germany.
Os países mencionados por Gomringer parecem servir a título meramente exemplificativo, sem que o poeta suiço-boliviano revele aqui qualquer preocupação de exaustividade. Importa, isso sim, salientar o facto de Gomringer considerar que o material da poesia concreta são os signos da linguagem, o que, mais uma vez, permite constatar a irrelevância que para este projecto assume a distinção entre os diferentes idiomas, o que, por sua vez, contribui para a assunção deste projecto poético como um projecto verdadeiramente translinguístico. Ainda que não se tenha verificado, na realidade, a produção de poesia concreta em todos os países do mundo, o facto é que, potencialmente, o projecto concretista tem características de transnacionalidade, uma vez que o tratamento que propõe da linguagem seria exequível em qualquer língua, como o prova o facto de se ter realmente verificado em línguas tão díspares, como as analíticas portuguesa ou francesa, a sintética inglesa e a não-flexionada e “isolante” japonesa.
Objectivando o campo da poesia concreta em termos de uma linguagem comum à escala mundial, Haroldo de Campos (1987: 152) defende que “não há panorama mais fiel do mundo contemporâneo, cujas distâncias diminuiram, cujos problemas se interligam, cujo património mental é cada vez mais posto em termos universais, como se verifica cotidianamente no campo da ciência. Surgem nele as condições para uma linguagem comum.”
A esta “linguagem comum,” chama Gomringer, “linguagem supranacional,” o que demonstra a afinidade de concepções e realizações para que tendem estes autores, a ponto de Gomringer (in Solt 1970: 68)[12] afirmar: “International-supranational. I am therefore convinced that concrete poetry is in the process of realizing the idea of a universal poetry.”
Também E. M. de Melo e Castro (1981: 156) reafirma o facto de a linguagem concreta constituir uma linguagem própria que transcende as diferentes línguas nacionais, considerando que a poesia concreta utiliza uma “linguagem visual e concreta (não abstracta) para além das línguas, dos idiomas e das circunstâncias limitativas, sejam de que ordem forem.”
Repare-se na defesa da transcendência da linguagem concreta relativamente às línguas nacionais, o que vai de encontro à proposta de Gomringer em considerar a poesia concreta uma linguagem supranacional, que ultrapassa condicionalismos, limitações que as línguas nacionais impõem.
Os teorizadores da poesia concreta proclamam, pois, o seu desejo de universalização(entendida como a potencialidade de o projecto concretista, abolindo todo o tipo de barreiras e constrangimentos, se propagar à escala mundial) e a possibilidade de o poema concreto a realizar, uma vez que nele ocorre o fenómeno da meta-comunicação, pela coincidência e simultaneidade da comunicação verbal com a não-verbal, visando a comum multiplicidade da linguagem. Assim, os componentes não-verbais do poema concreto, elementos extralinguísticos, contribuem para que a linguagem visual, concreta não se identifique com qualquer idioma, transcendendo-o nas suas potencialidades comunicativas, contribuindo assim para internacionalizar o poema concreto, como também defende Cassiano Ricardo (1965: 345), ao afirmar que “los processos extralinguísticos (el visual, el acústico, etc.) utilizados por el poema, incorporan a él una mayor carga de información semántica (…) y así lo internacionalizan necesariamente.”
Então, como afirma M. L. Rosenthal (cf. 1967: 202), a sintaxe espacial concretista, contribuindo para ultrapassar as barreiras tradicionais impostas pelos idiomas, é um factor que possibilita e garante a internacionalização do concretismo, ao mesmo tempo que o torna “essentially a graphic medium” e como referem também Angel Crespo e Pilar Bedate (cf. 1963: 91)., na elaboração das suas “constelações,” Gomringer serve-se de palavras de várias línguas, de um modo que demonstra que as palavras são escolhidas numa perspectiva mais ampla do que a do idioma nacional. Isto porque o poeta escolhe as palavras de acordo com a adequação pretendida, ao nível, não só do significado, mas também do significante.
Além desta supranacionalidade da linguagem concreta, também a impersonalização do poema/objecto, no qual não são perceptíveis quaisquer marcas personalizadas da presença do autor, permite a Melo e Castro (1965: 24) afirmar que se “passa do nível da percepção para o do abstracto universal, e, paralelamente, da criação artística para o objecto de arte desligado do seu criador, e com validade universal.”
Como se pode constatar, os poetas concretos pretendiam elaborar um projecto universal de uma nova poesia. A própria elaboração de antologias internacionais com o título Poesia Concreta[13] vem corroborar a ideia de uma forma de produção poética que se generalizou à escala mundial, dando assim ênfase ao carácter internacional do movimento.
Se é defendido, neste trabalho, que a transnacionalidade deste projecto legitima a consideração da poesia concreta duma forma globalizante, Claus Clüver (1987a: 113) vai mais longe ao afirmar que essa é a forma como a poesia concreta deve ser abordada:
Concrete poetry was the first literary movement to start spontaneously in several countries and to receive its name by intercontinental agreement; it must therefore be considered in relation to a mainstream defined in terms of continents, not individual cultures.
Além disso, a matéria-prima da poesia concreta é a linguagem, em relação à qual são equacionados problemas relativamente ao seu uso, pelo que deixa de ser pertinente a consideração das diferentes línguas nacionais. Por isso, parece-me que o poliglotismo das antologias internacionais não assume maior relevância do que aqueles poemas em que o uso do material verbal não permite identificar qualquer língua nacional. Também por esta via, o concretismo consegue abolir as barreiras impostas à comunicação pela existência de diferentes idiomas, para substitui-los por um tratamento da linguagem que, não incidindo apenas no conteúdo semântico das palavras, torna possível a comunicação de problemas que afectam o homem contemporâneo “supranacionalmente.” Esta é também a conclusão apresentada por Max Bense (in Solt 1970: 73)[14] :
Thus concrete poetry does not separate languages; it unites them; it combines them. It is this part of its linguistic intention that makes concrete poetry the first international poetical movement. In South America and North America, in Germany, France, Italy, England, Portugal, Denmark, Sweden and Switzerland, in Czechoslovakia and Japan there is concrete poetry. Already well-known poets are making use of this important experimental way of writing…
É, pois, nesta acepção geral que a expressão poesia concreta é assumida neste trabalho. Parece contudo evidente que seria possível, apesar da internacionalidade do projecto poético concreto, detectar algumas particularidades nacionais, como refere Mary Ellen Solt (ibid.: 14), referindo-se à antologia por si organizada: “…despite its international outlook, concrete poetry displays both distinctively national characteristics and individuality, personal style.” Todavia, não abordarei aqui esse aspecto por constituir matéria que daria origem a um outro trabalho e por ter constatado igualmente que tais particularidades não afectaram a atribuição da designação “poesia concreta” a essas produções.
NOTAS
[1] Eugen Gomringer nascido em 1925, em Cachuela Esperanza, na Bolívia, filho de pai suiço e mãe boliviana de sangue índio, foi educado na Europa.
[2] Campos, Augusto de, 1955, “poetamenos.” In: noigandres 2, São Paulo.
(Apesar da série de seis poemas policromáticos ter sido publicada em Fevereiro de 1955, a sua elaboração situa-se entre Janeiro e Julho de 1953).
Gomringer, Eugen, 1953, Konstellationen. Berna, Spiral Press.
[3] Um grupo coeso constituído essencialmente em torno dos três poetas brasileiros que o fundam – Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari – que permanecem sempre juntos enquanto o grupo existe como tal.
[4] Segundo Haroldo de Campos (1977: 159), Gomringer referiu-se a “constelação” do seguinte modo:
A constelação (…) é a possibilidade mais simples de organizar a poesia fundada na palavra. Como um grupo de estrelas, um grupo de palavras forma uma constelação. Duas, três ou mais palavras – não é preciso que sejam muitas – ordenadas vertical e visualmente: estabelece-se uma relação ideia-coisa. E eis tudo!
[5] Gomringer, Eugen, 1964, “From line to constellation.” Trad. Mike Weaver, in: Image (Nov./Dez.).
[6] Tratava-se do projecto de uma antologia internacional que, segundo Haroldo de Campos (cf. 1977: 160), teria sido publicada afinal em 1960, mas que segundo Mary Ellen Solt (1970: 12) “was never published.” De facto, torna-se incompreensível a afirmação de Haroldo de Campos, porque tal antologia nunca é por ele citada nem dela é feita referência em vasta bibliografia sobre este assunto.
[7] Garnier, Pierre, 1963, “Position I of the International Movement.” Trad. inglesa de “Position I du Mouvement International.”In: Les Lettres 32.
[8] De facto, este documento redigido por Pierre Garnier foi assinado pelos seguintes poetas: Mário Chamie, Carl-Friedrich Claus, Ian Hamilton Finlay, Fugitomi Yasuo, John Furnival, Ilse Garnier, Pierre Garnier, Eugen Gomringer, Bohumila Grögerová, Josef Hirsal, Anselm Hollo, Dom Sylvester Houédard, Ernst Jandl, Kitasono Katué, Frans van der Linde, E. M. de Melo e Castro, Franz Mon, Edwin Morgan, Ladislav Novák, Herbert Read, Toshinko Schimizu, L. C. Vinholes, Paul de Vree, Emmett Williams, Jonathan Williams, oriundos dos seguintes países: Alemanha, Áustria, Inglaterra, Bélgica, Brasil, Escócia, Finlândia, França, Holanda, Japão, Portugal, Suiça, Checoslováquia e Estados Unidos da América.
[9]Aragão, António, 1963, “A Arte como ‘campo de possibilidades’.” In: Jornal de Letras e Artes, (Agosto).
[10] O próprio grupo Noigandres desenvolve o seu projecto de poesia passando por várias ‘fases’ poéticas: “identificar-se-iam assim a fase ‘pré-concreta’, a da ‘fenomenologia da composição’, a da ‘matemática da composição’, a do ‘salto participante’ e a dos ‘poemas semióticos’” (cf. Franchetti 1992: 27).
[11] Gomringer, Eugen, 1964, “From line to constellation.” Trad. Mike Weaver, in: Image, (Nov./Dez.).
[12] Gomringer, Eugen, “Concrete Poetry.” Trad. inglesa a partir de die konstellation…1953-1962, Frauenfeld, Eugen Gomringer Press.
[13] Claus Clüver elege quatro antologias internacionais, publicadas nos Estados Unidos em 1967 e 1968, como as mais significativas do movimento internacional da poesia concreta. São elas as antologias de Jean-François Bory (ed.), 1967, Once again. Trad. Lee Hildreth, Nova Iorque (que tem como subtítulo Concrete Poetry); de Eugene Wildman (ed.), 1968, Anthology of Concretism. Chicago (com 2º edição, revista e alargada, em 1969); e particularmente as antologias de Mary Ellen Solt (ed.), 1968, Concrete Poetry: A World View. Bloomington; e Emmett Williams (ed.), 1967, An Anthology of Concrete Poetry. Nova Iorque. Segundo Claus Clüver (1987a: 114), “the anthologies organized by Emmett Williams and Mary Ellen Solt, both infortunately out of print, are generally considered the standard collections.”
[14] Bense, Max, 1965, “Concrete Poetry.” In Max Bense e Elisabeth Walther (eds.), Rot 21, Estugarda.