Texto de Fernando Aguiar sobre o livro ‘BibliotecapessoaL’ de José-Alberto Marques. [Texto]
1.
Começaria por dizer que “BibliotecapessoaL” é um livro habitado. Não apenas por palavras e por estados de espírito, mas efetivamente por pessoas. Por muitas pessoas, umas anónimas, outras nomeadas. São poemas que se revelam como uma invocação às vivências e à vida, onde se pressente a poética presença dos poetas que admira, através de densos e depurados versos.
É igualmente um livro sobre escritas e sobre a escrita, escrita essa que José-Alberto Marques domina de um modo, que diria, soberano, saboreando meticulosamente as palavras com que constrói as frases. Argamassa de grafemas que dispõe em versos que se convertem no poema.
Mas é realmente um livro com gente dentro. Um livro de ternura pelas pessoas. Por vezes agastado com elas. Mas não contra elas, embora perpasse uma latente e nem sempre fácil relação com o outro. Essa relação é estabelecida nos poemas iniciais, que começam, muitos deles, por uma palavra, ponto, verso. Exemplos:
“Calem-se. Há um destino que apaga // As cores começadas antes.”
“Fujam. (…) Deitem-se no chão para serem pisados.”
“Fora. O silêncio é o menor fio falante, …”
“Sumam-se. O poeta não tem virtudes,…”
“Morram. O rasto das palavras é o vosso registo, “
“Porra.(…) É a minha altura de cuspir.”
Se esta relação com o outro pode parecer complicada, a relação consigo mesmo será, por vezes, ainda mais difícil, “De raiva que se instala entre o poeta e o poema.”. Noutro texto assevera: “Tu. Agora sou eu. Que faço aqui ? sou um miserável / Que expulsa gente,…preso a umas canadianas, saltitando com uma perna, / intelectual de geometria no arrumar dos carros, // Eu não sei o sentido duma palavra.”. A que se poderá acrescentar “forte” e “instigante”, quando afirma: “Já me suicidei várias vezes, / Mas estou intacto.” (…) ”Sou íngreme ao deixar os astros. / Não faço conjeturas. / Faço moinhos de vento de papel.”
Noutro plano, como se mentalmente pretendesse rever as palavras atiradas para a folha em branco, escreve: “Devagar caminhei pelas chamas”, ou ainda, “Olhos fechados para recolher o tempo,”.
Por vezes, e mediante uma poética de catarse: “Fustiguem-me. Não pedi para ser incólume.”, a que se pode acrescentar: “O poeta não tem virtudes, dons, lábios a propósito. / O poeta é o mais ignorante humano bípede, apenas tendo por igual, /O vento, os figos, aloendros,”.
2.
É evidente que todos estes versos retirados do seu contexto permitem uma multiplicidade de leituras e interpretações, mas esse é precisamente um dos componentes que tornam ainda mais interessante esta “BibliotecapessoaL”. A interação que se pode criar entre os versos de um mesmo poema ou, inclusive, entre versos de diferentes poemas, como um xadrez literário que permite construir eternamente novas jogadas.
No capítulo “TEORIAS DO TEMPO OU AS TIPOGRAPHIAS” – e aqui a palavra “Tipographias” aparece teimosamente escrita com ph (curiosamente o meu computador rejeitou de forma automática esta grafia, como se escrita e tradição fossem dois conceitos de costas viradas um para o outro) – dizia eu, que no capítulo “Tipographias” é esboçada a alusão a uma poética mais experimentalista (coisa que o computador não compreendeu) e às suas metodologias. Aliás, o próprio José-Alberto Marques confirma que prossegue “a linha diacrónica e assume o experimentalismo com uma visão pessoal e renovada”, e este poema poderá ser uma forma renovada de enfrentar uma faceta experimentalista que sempre existiu na sua obra.
Este capítulo contém um longo poema que percorre todo o alfabeto “sem com nem que acordo autográfico”, como refere José-Alberto Marques. E é escrito em maiúsculas (exceto o primeiro verso), o que acentua a visualidade das palavras, e lhe confere um destaque que os restantes poemas, formalmente, não têm.
Nele é, por exemplo afirmado:
“C. A MÁQUINA DE CORTAR PAPÉIS FOI A FÓRMULA MAIS
INTELIGENTE DE CRIAR POEMAS.”
“G. A TIPOGRAPHIA MORRE AOS PÉS DO SÉC. XX COM ESTE
PAÍS SEM OS POETAS QUE ESTA CIDADE NUNCA CONHECEU. “
“P. A ELECTRÓNICA AVANÇA COM A MECÂNICA RACIONAL
ATÉ AO ZERO, I.E., IGUAL AO PARA LÁ DO TEMPO.”
“V. É QUANDO A TIPOGRAPHIA COMEÇA A ROLAR
A ENCHER O CHÃO DE DEPÓSITOS INÚTEIS.”
“T. E ISTO É O PRINCÍPIO DO FIM.”
Ao contrário, ou de certo modo a confirmar a afirmação de um outro poeta, José-Alberto Marques sublinha: “O POETA É UM TRAIDOR”, apesar de, noutro capítulo, referir: “Ou finjo, não, minto que estou a escrever.”, traindo o seu próprio verso, porque está, efetivamente, a escrevê-lo. Mas fiquemos por esta traição.
3.
O início do terceiro capítulo é dedicado ao “espaço” e ao “tempo”, dois conceitos polissémicos caros aos poetas experimentais desde o tempo dos concretistas brasileiros, como Augusto de Campos, que abordou, ao longo da sua poética, os referidos conceitos. “Os poetas falam do tempo que não existe…”, “Os romancistas falam do tempo atirando a estória / Para os olhos, ouvidos, memória e inteligência do leitor / Precisamente porque jogam o espaço…”, “Os dramaturgos constroem o tempo / Através do corpo dos actores / E criam o espaço com a voz do silêncio do espectadores;”
Na sequência da já abordada tipografia, fala-se agora de livros. “Os livros pertencem aos autores”, observa o poeta, considerando-os “…inertes e indefesos…”, ou como “…crianças que não sabem andar…” para, a seguir, entrar numa outra realidade e reconhecer que os livros, só por si, são impotentes para se afirmarem e precisarem do encosto de “um jornal”, ”uma rádio”, “um canal de televisão”, ou de um suporte mais virtual, como o “Google”, twitter” ou o ” facebook”. Ou, curiosamente, que “…não precisam de autor, mas dum nome de autor”, para concluir que “Os livros, livros, só existem na imaginação do leitor.”
Ao ler o penúltimo poema deste capítulo recordei o livro “SALA HIPÓSTILA”, de 1973, quando deparei com os seguintes versos: “A sombra vai-se enchendo de letras. Contraponho um espelho. / A sombra multiplica as letras. O espelho na minha mão, não.”
Mas acontece, por fim, o encontro do escritor consigo mesmo, e uma como que reconciliação com a própria poesia com a qual, ao longo de “BibliotecapessoaL”, nem sempre estabeleceu uma relação fácil, e que talvez se possa entender como o abarcar da poética de toda uma vida, sintetizada neste livro:
“A sombra está no chão dentro de mim
E pela primeira vez fui feliz
Nesta vida enorme que carrego aos ombros
Com uma sombra atrás.”
4.
Faço agora uma introdução ao poema “SOBRE NOMES”, do capítulo homónimo, com versos retirados de um poema do capítulo inicial: “Eu tenho aqui os meus poetas, só não vos digo o nome. / São obscenos, loucos, criativos, fascistas e revolucionários,…”.
Em “SOBRE NOMES” (pró-poema-épico), José-Alberto Marques procede a uma curiosa e criativa mescla de nomes e sobrenomes – dizendo-os – povoando o poema de poetas, romancistas e de alguns pintores, atulhando-o com uma imensa e interligada multidão. Exemplos: “José Gomes Ferreira de Castro (…) Fernando Pinto Assis Pacheco do Amaral (…) António Manuel Couto Viana da Mota (…) Luísa Neto Jorge de Sena (…) Ernesto João de Melo e Castro (…) Ana Ana Marques Nuno Gastão Júdice Hatherly” ou “Egito Gonçalves Crespo…”, comentando, posteriormente, em “nota”: “Os nomes são sempre um fascínio e uma referência. (…) Vive-se e morre-se com um nome atado ao pescoço (…). Ninguém não tem nome.”
Contudo, este poema/casa cheia de gente amiga, conhecida ou apenas admirada pelo poeta, ressalta em contraponto a uma poética mais intimista como, no poema, “LOUCURA”: “Estou só. O vazio da casa aumenta.”
É necessário entrar na alma deste livro para se assimilar os poemas de um escritor que domina as palavras sem rodeios, que as assume cruas, sem medo de se dizerem. “Estou farto de páginas inúteis” – afirma – o que não é o caso desta “BibliotecapessoaL”.