Por entre frisos verbais: um percurso ao longo dos «Homeóstatos» de José-Alberto Marques

Daniela Côrtes Maduro analisa os homeóstatos de José-Alberto Marques. [Texto. Imagens]


Este texto faz parte de Dossier de Homenagem a José-Alberto Marques. Leia outros textos e releituras em > Homeóstatos de José-Alberto Marques: Uma Homenagem pelo Arquivo Digital da PO.EX.


A série Homeóstatos, criada por José-Alberto Marques (1939-) em 1965 e publicada na revista Operação 1 em 1967, é constituída por nove poemas visuais inscritos em diferentes páginas. Letras derramadas sobre a folha formam um conjunto de frisos verbais que percorrem os nove poemas desta obra. Ainda que os elementos se mantenham fixos na superfície de papel, é possível verificar que as letras foram manipuladas tipograficamente para formar um fluxo de caracteres que escorre ao longo de todas as folhas. Durante o contacto com o texto, o leitor terá de colher os grafemas dispersos na página para construir sequências de sentido.

A todo o momento, o corpo trava uma luta para regular a temperatura ou o ritmo cardíaco. A necessidade de encontrar equilíbrio, ordem e simetria é visceral para o ser humano. Essa necessidade torna-se evidente a cada tentativa de ler os homeóstatos. O aparente caos verbal instalado sobre a folha suscita o desejo de reunir o conjunto de caracteres para extrair um sentido do texto. Sendo assim, o esforço investido para encontrar alguma estabilidade textual e semântica é conotado com o trabalho desempenhado por mecanismos homeostáticos de controlo que permitem a auto-regulação e sobrevivência de todos os seres vivos. A tentativa de debelar a plurissignificação, levada a cabo pelo leitor, recorda a luta interna contra a aleatoriedade, efectuada por qualquer ser humano. Em reacção ao meio ambiente, o corpo transforma-se permanentemente, multiplicando emoções e movimentos. O mesmo ocorre no sistema em permanente mutação da série Homeóstatos. Dentro deste universo, dois amantes encontram-se na escuridão (“Homeóstato 1”).


Imagem de Homeóstato 1, José-Alberto Marques, 1965, in Operação 1 (1967). Também publicado em Poesia Experimental 2 (1966); Antologia da Poesia Concreta em Portugal (1973); Antologia da Poesia Experimental Portuguesa Anos 60 – 80 (2004).


Em cada poema é feita referência a partes do corpo, como por exemplo, “braços”, “ossos”, “sangue”, “peito/s”, “ventre”, “pés”, “rosto”, “ombros” e “cabelos”. A alusão a sensações – expressas através de palavras como “arde”, “corta”, “frio”, “quente” ou “sentir” – é comum a vários dos poemas. Segundo E. M. de Melo e Castro, o texto é constituído por fragmentos “que trabalham todos para o mesmo fim: a sua automanutenção e até a sua reprodução” (Melo e Castro, 2009: 191). A utilização da palavra “vida” ou “vivo” (homeostátos 3 e 4) remete para essa propriedade homeóstatica do texto cuja sobrevivência depende da sua auto-reflexividade.


Imagem de Homeóstato 3, José-Alberto Marques, 1965, in Operação 1 (1967). Também publicado em Antologia da Poesia Concreta em Portugal (1973); Antologia da Poesia Experimental Portuguesa Anos 60 – 80 (2004).


Enquanto sistemas complexos, os homeóstatos de José-Alberto Marques parecem manifestar um comportamento emergente. A tentativa de ancorar o significado provoca um feedback negativo por parte de cada homeóstato, que reage de forma adversa às incisões efectuadas pelo leitor. Se o “homeostato 1” ainda apresenta semelhanças a um poema em versos, o “homeostáto 9” distancia-se deste formato.


Imagem de Homeóstato 9, José-Alberto Marques, 1965, in Operação 1 (1967). Também publicado em Antologia da Poesia Concreta em Portugal (1973).


Cada poema sobrevive porque oferece resistência à extracção de um sentido derradeiro. Frases e ideias são constantemente interrompidas e esvaem-se sobre a página. Para além da disposição sincopada e aparentemente aleatória dos elementos que compõem o texto, a referência fugaz a sentimentos, personagens e acções, impede a formação de um retrato circunscrito deste, tornando-o num sistema imprevisível e aberto.

Como o texto se encontra dividido em inúmeros elementos (frases, palavras, grafemas) distribuídos ao longo das páginas, o leitor tem de localizar possibilidades combinatórias para concretizar a leitura dos nove homeóstatos. Para ler o texto, será necessário descobrir uma combinação correcta de elementos. As possibilidades são vastas, o que sublinha o carácter generativo e o estado potencial do texto. Os homeóstatos deixam transparecer uma componente autobiográfica ou introspectiva, que se funde com a sua auto-reflexividade. A complexidade das relações humanas é espelhada pela impossibilidade de alcançar uma explicação indubitável do texto e uma versão estável do mesmo.

A distribuição dos elementos na página tem um impacto no ritmo e tempo de leitura, o que oferece ao texto uma dinâmica singular. No “Homeóstato 3”, por exemplo, a palavra “lento” é interrompida por um extenso espaço em branco, o que estabelece uma correspondência entre o som que o leitor emite durante a leitura da palavra e o significado desta. As letras da palavra “distâ[n]cia” (“Homeóstato 7”) surgem uma-a-uma na vertical ou são distribuídas aleatoriamente, enaltecendo a condição prismática do texto, que se estende desde a disposição (multi)linear dos caracteres, até à irrefreável propagação de sentido.


Imagem de Homeóstato 7, José-Alberto Marques, 1965, in Operação 1 (1967).


O recurso a cesuras entre grafemas conferem ao texto um ritmo flutuante, enaltecendo também o seu carácter performativo. José-Alberto Marques é muitas vezes intérprete das suas composições.

Se considerarmos o acto de ler como o processo que garante a sobrevivência do texto, a distanciação entre letras suspende ou interrompe a enunciação das palavras adiando progressivamente a finalização da leitura e alargando o seu tempo de vida. A cesura torna-se numa forma de adiar a produção de significado mas também é utilizada como um recurso para aumentar a longevidade de uma cadeia de letras ou de uma linha que parece ter chegado ao fim (“Homeóstato 9”). Sendo assim, a problematização do acto de leitura possibilita a sobrevivência do texto. Este é expandido para além das letras sobre a folha e permanece inscrito no vazio que separa as palavras ou na tentativa de superar as sucessivas quebras de sentido. A inconstância do significado e a definição do texto como um organismo responsivo e complexo promovem um ciclo recursivo entre leitor e texto, bem como uma ampliação deste para além do imediatamente visível ou perceptível.

Um décimo homeóstato, ou “Homeóstato A” (1993), foi posteriormente publicado em Imaginários de ruptura (2002).


Imagem de Homeóstato A, José-Alberto Marques, 1993, in Imaginários de ruptura (2002).


Todas as vogais suprimidas nos momentos finais do “Homeóstato 9”, onde a palavra “liberdade” surge despojada das suas vogais, são repetidas freneticamente neste texto. As vogais apenas podem ser soletradas se não existir um impedimento à passagem do ar. A referência ao “vento” e “grito lento” descrevem a vocalização desses fonemas que circulam na página (aparentemente) sem qualquer restrição. Porém, a cada vogal está destinada uma linha e, embora a letra “u” nem sempre seja incluída, a sequência “a,e,i,o,u” é respeitada. A impressão que as letras circulam livremente é conferida pela distribuição aleatória de cada letra ao longo da linha correspondente. O trabalho de José-Alberto Marques tem muitas vezes uma faceta política. A demorada libertação das vogais no “Homeostáto A” parece concretizar ou projectar esse “grito lento” ao qual se retira gradualmente a mordaça para se insurgir contra uma entidade opressora.

O conjunto de poemas que integram a série Homeóstatos (1965) foi publicado na revista Operação 1 (1967), juntamente com trabalhos de António Aragão, E. M. de Melo e Castro, Ana Hatherly e Pedro Xisto. Eugenio Tisselli criou uma versão do texto de José-Alberto Marques em que uma letra é retirada cada vez que o leitor acede ao poema. A propriedade auto-generativa deste texto é explorada pelo gerador de homeóstatos criado por Rui Torres e Nuno F. Ferreira. Nuno Cardoso e Mandrágora efectuaram (re)interpretações desta obra. Todas estas apropriações contribuíram para manter este organismo vivo.


Referências

CASTRO, E. M. de Melo e (2009). Voos da Fénix Crítica II. Lisboa: Edições Cosmos, 187-192.