Texto de Bruno Ministro sobre (copy) art publicado em De poesia. Arxius, poètiques i recepcions, no seguimento das “II Jornades Internacionals de Poesia”, (U. Barcelona, MACBA). [Texto]
Dados > Ministro, Bruno (2017). “Expandindo (?) as poéticas experimentais (?): Isto é (copy) art?” In: De poesia. Arxius, poètiques i recepcions (orgs. Audí, Marc; Glòria Bordons; Lis Costa; Eva Figueras Ferrer; Mar Redondo-Arolas), Edicions Universitat de Barcelona, 2017 (pp. 353-362). [Artigo publicado em português e em catalão (pp. 135-144). Esta publicação surge no seguimento das “II Jornades Internacionals de Poesia”, encontro realizado pelo grupo de investigação Pòcio (U. Barcelona) no MACBA a 27 e 28 de outubro de 2016.]
Resumo > Enquanto artefactos transgressores de género literário, Eletrografia e Copy Art ligam-se ao uso experimental da palavra e da imagem que conhecemos da Literatura Experimental. Estas práticas, caraterizadas pelo uso expressivo da máquina de fotocopiar, apresentam-nos formas problematizadoras de linguagens e de género literário, fazendo uso da autorreflexividade do seu meio de inscrição. Esteticamente, a Copy Art assemelha-se à Poesia Visual e a outras formas intersígnicas e intermediais da constelação de objetos radicais que constitui a Literatura Experimental. Assim, este artigo pretende discutir quais as afinidades e diferenças entre Copy Art e Literatura Experimental em Portugal, através da análise de obras de António Aragão, António Dantas, António Nelos e César Figueiredo.
Abstract > As genre transgressive artifacts, Electrography and Copy Art are tied to the experimental uses of word and image that we recognize from Experimental Literature. These practices, developed through the expressive use of the copier machine, introduce us to forms that question the languages and literary genres involved, embracing the use of the self-reflexivity of its medium of inscription. In terms of aesthetics, Copy Art resembles Visual Poetry and other intersignic and intermedial forms fitting in the radiant constellation of radical objects that constitute Experimental Literature. Thus, through the analysis of works created by Portuguese authors such as António Aragão, António Dantas, António Nelos and César Figueiredo, this article will discuss the affinities and differences between Copy Art and Experimental Literature in Portugal.
INTRODUÇÃO
A Literatura Experimental carateriza-se como uma prática transgressora de géneros literários, dado o uso criativo que faz de vários suportes e materialidades comunicativas. Os trabalhos da tradição experimentalista são plurais na sua poética e na sua estética. Contribuem, dessa forma, para a própria (in)definição do campo, problematizando questões relacionadas com linguagem, meio e género literário. A minha proposta é a de que Eletrografia e Copy Art [1], práticas assentes no uso da fotocopiadora para construção de textos-visuais, se desenvolvem, em Portugal, como parte desta reflexão, operando uma ampla expansão do conceito de poéticas experimentais.
Numa esfera ainda mais vasta, Eletrografia e Copy Art dialogam de forma metarreflexiva com questões da sociedade e arte contemporâneas, como, por exemplo, a problemática do original e da cópia, da matriz e do múltiplo. Estas formas definem-se como objeto estético através da processualidade e performatividade dos agentes, máquina e materiais. A apropriação da “imagem técnica” (Flusser, 2012) e a “profanação do dispositivo” (Agamben, 2005; 2007) que estas práticas operacionalizam, conduz à serialidade dos artefactos produzidos e, consequentemente, ao questionamento sobre a perda da “aura da obra de arte” (Benjamin, 2006).
Sobre o caso específico da Eletrografia e Copy Art, António Aragão defende, no ensaio “A escrita do olhar”, que palavra e imagem “não são concebidas como dois componentes isolados no texto mas antes como uma visualização articulada sempre entre imagem e palavra.” (Aragão, 1985a: 186). Com efeito, a fotocopiadora parece ser não só recetiva como incentivadora da produção de artefactos intersígnicos, nos quais linguagem verbal e visual coexistem, numa extensão das tradições vanguardistas do início do século XX e numa antecipação de algumas das propriedades da cultura hipermédia da era digital que, na década 1980, começara já a traçar o caminho da sua massificação.
Ao integrarem nos artefactos produzidos vários sistemas de comunicação e de representação, com os códigos e convenções a si associados, Eletrografia e Copy Art tecem um conjunto de afinidades com o visualismo da Literatura Experimental. Seguindo a linha de raciocínio avançada por Claus Clüver em “Intermediality and interarts studies” quando afirma que a intermedialidade na Poesia Concreta se materializa em “texts that are constituted by two or more sign systems in such a way that the visual, musical, verbal, kinetic, or performative aspects of its signs cannot be separated or disunited” (Clüver, 2007: 25), pretende-se perceber quais as especificidades que as obras eletrográficas e copigráficas estabelecem com as linguagens suas constituintes: signo verbal e signo pictórico.
Internacionalmente, a máquina de fotocopiar foi usada das décadas de 1960 em diante como instrumento que participa, sobretudo, na produção de obras de técnica mista. Fizeram uso dela artistas de várias disciplinas, tendo particular destaque os artistas visuais. Em Portugal, no final dos anos 70 e inícios de 80, foram os poetas quem primeiro se interessou pelas possibilidades de criação oferecidas pela fotocopiadora, como este artigo pretende demonstrar. Nesse sentido, cabe perguntar: ocupam ou não a Eletrografia e a Copy Art um lugar particular na cena experimental desenvolvida em Portugal a partir dos anos 1980?
1. ELETROGRAFIA E COPY ART EM PORTUGAL [2]: NOMES INICIAIS, INÍCIOS DA HISTÓRIA
António Aragão (1921-2008) foi um dos responsáveis pela introdução em Portugal do experimentalismo literário, influenciado pelo contacto que, em Itália, trava com autores e projetos durante o curto período em que ali viveu. É Aragão que, juntamente com Herberto Helder, publica o primeiro número de Poesia Experimental (1964) e são eles que, com E. M. de Melo e Castro, dão à estampa, em 1966, o segundo número da mesma revista, ambos marcos na História da Literatura Experimental Portuguesa.
Praticante de várias formas experimentais de cruzamento estético – como a Poesia Visual, a Ficção Experimental, a Instalação ou a Performance –, António Aragão é um dos pioneiros da Eletrografia em Portugal. O primeiro trabalho deste tipo a ser publicado em livro foi “Hornmargen”, série de textos-visuais que figuram no volume Joyciana [3], de 1982. Antes, António Aragão desenvolvera algumas experiências conjuntas com António Nelos (1949-) e António Dantas (1954-), então jovens artistas madeirenses que conhecera em finais dos anos 60 e meados dos anos 70, respetivamente.
É do processo de experimentação coletiva à volta da máquina de fotocopiar que nasce o conjunto de trabalhos com o título Filigrama (1981-1983) [4]. Estas obras são compostas por uma série de envelopes contendo trabalhos de cada um dos autores, bem como trabalhos desenvolvidos a várias mãos. Cada Filigrama é única na medida em que cada exemplar é diferente do anterior, não representando propriamente uma tiragem de múltiplos, mas sim trabalhos diferentes de envelope para envelope. Os trabalhos de Aragão, Dantas e Nelos não foram reunidos desta forma apenas por motivos práticos ou estéticos: a partir da ilha da Madeira, os envelopes circularam, de facto, à escala internacional por via da rede de Arte Correio. Foi daí que surgiram vários contactos com artistas estrangeiros que levaram os autores portugueses a participar em diversas exposições, festivais e eventos internacionais.
Sensivelmente na mesma altura, no Porto, César Figueiredo (1954-) começou a desenvolver um conjunto de práticas de experimentação com recurso à fotocopiadora que, de igual forma, colocaram trabalhos seus em circulação internacional. O movimento inverso também se regista. Isto é, Figueiredo foi, nos anos 90, o principal responsável pela organização de várias exposições de Copy Art [5] que apresentaram ao público português um alargado número de autores e obras deste tipo. César Figueiredo desenvolveu, e continua a desenvolver, trabalhos em colaboração com vários artistas de Portugal, como Abílio-José Santos, e de outros países, nomeadamente Jürgen Olbrich (Alemanha) e Guillermo Deisler (Chile), entre muitos outros.
2. DA PRÁTICA À TEORIA – ALGUNS APONTAMENTOS BREVES
António Aragão, António Dantas, António Nelos e César Figueiredo não são os únicos a desenvolver projetos de Eletrografia e Copy Art em Portugal. São, no entanto, as figuras mais destacadas, tanto pelo volume de trabalho realizado como pela importância das suas publicações, exposições, eventos que organizam ou em que participam, dentro e fora do país. Os quatro autores têm em comum o facto de todos eles estarem ligados às artes visuais: Aragão e Figueiredo têm obra no domínio da Pintura, enquanto que Dantas e Nelos, na sua juventude, começam por estar ligados sobretudo ao Desenho e às Artes Plásticas – que continuam a praticar. Esta experiência nas artes visuais poderia servir como argumento para afastar do campo da Literatura Experimental as obras de Eletrografia e Copy Art desenvolvidas por estes artistas. Contudo, a verdade é que todos eles estão também ligados às poéticas experimentalistas: embora Dantas, Nelos e Figueiredo não pertençam à geração histórica da PO.EX, estão a par das suas práticas, conhecem os seus autores, lêem as suas obras.
De igual modo, podemos afirmar que estes artistas posicionam a sua prática na linha dos campos estéticos plurais desbravados pela Literatura Experimental. Fazem-no, em primeiro lugar, através de uma reflexão sobre a linguagem e os processos de inscrição. Promovendo nas suas obras um lugar de diálogo entre linguagem verbal e linguagem visual, estes quatro autores prolongam a reflexão sobre a visualidade do texto e a topologia da página impressa. Neste caso, avançam numa direção muito específica, que é a da reflexão, não só sobre o suporte papel, mas, em particular, sobre a cópia produzida nesse suporte com recurso a meios de reprodução automática.
Vivendo no apogeu da Cultura Visual e princípios da Era da Técnica como hoje a conhecemos, um tempo marcado pela profusão de imagens técnicas produzidas e em circulação permanente, estes autores constroem propostas de reflexão sobre a sociedade em que vivem. A sua perspetiva crítica é veiculada pelas suas próprias práticas e obras. Isto acontece, num primeiro nível, através do desvio refuncionalizante que fazem da máquina de fotocopiar – aparelho cuja função não é produzir arte, mas sim servir de meio de replicação do igual – e, num segundo nível, por meio de um conjunto de estratégias ligadas à apropriação de materiais da cultura de massas, sua consequente dessemantização e ressemantização num novo objeto.
Se é verdade que a reflexão sobre o mundo é construída por estes artistas através da prática artística em si mesma, inscrevendo nas próprias obras uma visão crítica da sociedade, é igualmente relevante ter em linha de conta a produção teórica deixada pelo único autor já falecido entre os nomes mencionados.
António Aragão, não tendo sido um profuso ensaísta, deixou-nos um pequeno conjunto de textos que merecem um lugar de destaque pela sua perspetiva incisiva. Por exemplo, em “Tecnologia, arte e sociedade” (1987) o argumento central é a ligação da arte à sociedade e às tecnologias emergentes. António Aragão considera aqui que, não existindo separação entre arte e sociedade, uma poética verdadeiramente ligada ao seu tempo terá obrigatoriamente que se caraterizar pelo uso dos meios tecnológicos disponíveis. Este uso, descrito pelo autor como “simbiose cumulativa” entre sujeito e máquina (Aragão, 1987: 159), não representa um mero uso instrumental, mas antes uma apropriação crítica dos meios expressivos e sua consequente expansão. Também em “Electrografia e comunicação estética” (1985), publicado em dossier sobre Poesia Visual organizado por Fernando Aguiar e Luiz Fagundes Duarte, Aragão reafirma a convicção de que, ao coincidirem, arte tecnológica e sociedade tecnológica promovem uma mudança no sinal comunicativo:
Esta adopção contemporânea da era electrónica em que vivemos, obrigando à mutabilidade dos “valores artísticos”, confere-nos a possibilidade de descobrir outras categorias estéticas, de inventar e de atingir, consequentemente, outra maneira de comunicar. (Aragão, 1985b: 21).
A alteração do valor da arte que Aragão refere implica o pluralismo estético que eclode com aquilo que Arthur C. Danto designou de “fim da arte”. Por tal expressão o filósofo entende o início de um período pós-histórico no qual a obra de arte deixa de responder a critérios universais e ideológicos, passando a coexistir uma miríade de formas artísticas todas igualmente válidas do ponto de vista estético e político. Também a Literatura Experimental, enquanto plataforma vasta que congrega em si várias formas díspares, unidas pelo caráter de experimentação transgressor de géneros literários, acolheu sempre, ao longo da sua História internacional, uma pluralidade de estéticas e fazeres. Nesse sentido, as palavras de Aragão tanto podem ser aplicadas a objetos particulares, como a Copy Art, como podem ser usadas para descrever a amplitude da Literatura Experimental. O que, neste artigo, permite aclarar a ideia de que as barreiras entre os campos de ação da Literatura Experimental e da Copy Art não são possíveis de balizar de uma forma definitiva e inequívoca.
Este esbatimento dos limites de (sub)género não é novo. Antes da “era eletrónica” a que Aragão faz alusão, a Literatura Experimental já se pautara pela apropriação de outros sistemas sígnicos e meios de inscrição. Pense-se na apropriação dos sistemas de som feita pela Poesia Fonética e Sonora, fruto do eco das máquinas de Russolo; na reinvenção da página espacializada, herdeira de Mallarmé, que informou a Poesia Concreta; na retro-descoberta dos labirintos Barrocos que entusiasmaram a Poesia Visual; ou no uso expressivo do corpo, espaço e tempo que, remontando ao Dadaísmo do início do século XX, ocupou o tempo, o espaço e o corpo dos poetas performers na segunda metade do mesmo século.
3. DA TEORIA À PRÁTICA – ALGUMAS OBRAS COMO EXEMPLO POSSÍVEL
A Eletrografia e a Copy Art portuguesas desenvolvem-se em torno da acentuada heterogeneidade das suas práticas, suportes e materialidades. O elemento unificador é, sempre, a reflexão sobre a linguagem e a inscrição no seu contexto socio-técnico particular. Os artefactos que são produto do gesto poético de apropriação da fotocopiadora e dos materiais de base resultam numa estética plural, unida sob o signo do excesso, da distorção e da fragmentação.
Entendendo a arte como uma forma de comunicação, todos os meios e materiais são passíveis de ser apropriados como elementos de produção de sentido na cadeia de comunicação da sociedade tecnológica. António Aragão, António Dantas, António Nelos e César Figueiredo colocam em prática esse gesto de apropriação de materiais-matriz, operando a sua rematerialização num novo artefacto comunicativo. Segue-se uma breve análise de alguns trabalhos e estratégias processuais e estéticas que, se espera, contribuam para traçar um retrato exemplificativo, ainda que não exaustivo, da Eletrografia e Copy Art desenvolvidas em Portugal. Dado o argumento principal e a extensão deste artigo, opta-se por escolher apenas exemplos de materialidades planográficas [6], quer as que tomam a forma de opúsculos ou livros, quer outras estruturas bidimensionais com existência autónoma enquanto texto-imagem ou série.
3.1. Degeneração, desgaste e fragmentação
Em PRAVDA (1993), uma pequena publicação com tiragem de 30 exemplares, António Nelos apropria um reduzido número de imagens e textos, desenvolvendo uma série marcada pela repetição de reformulações iterativas desses mesmos documentos. O trabalho desenvolve-se através de um processo de montagem de materiais verbais e pictóricos, destacando-se o desgaste que é efetuado através do processo de produção de fotocópias sucessivas de uma dada imagem-matriz. A rasterização e homogeneização planográfica do texto operada pela fotocopiadora ao transformá-lo em imagem permite-nos questionar a própria ontologia do texto e da imagem, problematizando a relação que os aproxima e afasta. Ao ser fotocopiado, o texto passa a ser imagem. Só o olho humano pode destrinçar onde está o texto, vê-lo, lê-lo, construir a partir dele algum sentido. Em adição, a sucessiva cópia da cópia faz com que as palavras vão perdendo nitidez, resultando na dificuldade da leitura que transforma o signo verbal em signo pictórico degenerado.
César Figueiredo tem desenvolvido a sua obra à volta de tópicos como o trabalho, a burocracia e a alienação, refletindo sobre o excesso de linguagem e o ruído visual provocado pela sobrecarga de imagens nas sociedades contemporâneas. From the desk (2007), série que mistura palavra caligráfica e tipogáfica, entre vários outros elementos visuais, mostra como a secretária de escritório é um lugar de embate de linguagens. A profusão de letras, números, caracteres chineses, entre outros símbolos, elabora uma ecologia de caos descontrolado, onde a fragmentação de sentido constrói novos sentidos à margem das significações que cada um dos materiais tinha no seu contexto original.
É o que sucede também em bureaucrazy (2015), trabalho elaborado em colaboração com Jürgen Olbrich. Esta obra é composta por quatro envelopes em papel kraft de tamanho A4, em cujo interior Figueiredo e Olbrich fornecem várias folhas dispersas. Estas folhas vão desde rascunhos de escritório, aqui reaproveitados com novas impressões sobrepostas, até guias de remessa, faturas, formulários de vários tipos, entre muitos outros. No seu conjunto, esta obra apresenta-nos a sociedade burocrática como uma entidade caótica, precisamente quando tenta impor uma linguagem caraterizada pelo excessivo número de estratégias para se organizar ao mais ínfimo pormenor.
3.2. Repetição, movimento e distorção
Electrografia 1 é o primeiro de três volumes publicados em 1990 que sistematizam a obra de António Aragão no domínio da Eletrografia e Copy Art. Concebido aproximadamente seis anos antes da sua publicação, este trabalho é constituído por três imagens fotográficas de base que se metamorfoseiam por meio da manipulação que delas é feita no decurso do processo de cópia. O deslocamento do material original durante o processo de cópia transmite um efeito de movimento que distorce as imagens. Também as palavras, inscritas junto das imagens geradas, apresentam este movimento, estando de igual forma sujeitas à manipulação do artista através do manuseio que este faz da máquina. Sendo que as 38 páginas do livro se baseiam em apenas 3 imagens-matriz, e tendo em conta que alguns fragmentos verbais também se repetem, Electrografia 1 tem a unidade caraterística de um trabalho desenvolvido em série. Assim, a publicação de Aragão aproxima-se do livro de artista, questionando a linearidade do discurso e as convenções do livro enquanto objeto.
A estratégia de deslocamento dos materiais usada por Aragão, um dos mecanismos de distorção mais comuns na Copy Art, está também presente num trabalho de 1987, sem título [Pânico], da autoria de António Dantas. Aqui, as implicações são distintas. Mais do que introduzir uma ideia de movimento ou produzir uma distorção que pretende subverter os materiais, a imagem que Dantas nos apresenta opera uma síntese entre significado e significante, uma estratégia sobejamente praticada pela Poesia Visual e Concreta. A inscrição da palavra “PÂNICO”, em letras capitais, na parte inferior da dupla-página e o efeito distorcido que essa palavra e a ilustração que o acompanha adquirem, remete imediatamente para a sensação de pânico. Assim, os elementos verbais e pictóricos (significantes) adoptam eles mesmos uma forma visual que exprime o sentido que codificam (significado). Ou, se quisermos, há uma coincidência entre palavra e coisa, testando uma contradição criativa da arbitrariedade do signo.
3.3. Gesto(s) múltiplo(s)
As obras apresentadas, entre muitos outros exemplos que aqui se poderiam referir, resultam num conjunto de trabalhos atravessados por uma poética de sobreposição e aglomeração. Como resultado, o jogo de sobrecarga e desvanecimento dos materiais contamina os textos-visuais com uma estética glitch. Esta estética, produzida por processos de interferência material e conceptual sobre os documentos apropriados, convoca uma reflexão sobre os processos de escrita e de leitura, entendidos de forma ampla.
O conceito de “materialidade performativa”, cunhado por Johanna Drucker, pode aqui ser usado para melhor entender os mecanismos dinâmicos de significação das obras de Copy Art. Drucker afirma que “[p]erformative materiality suggests that what something is has to be understood in terms of what it does, how it works within machinic, systemic, and cultural domains.” (Drucker, 2013: parag. 4), acrescentando, mais adiante no seu artigo, que
Performative approaches are modeled on a probabilistic premise that suggests an object is produced as an effect of a dynamic relation between provocation of the object’s characteristics and an interpretative process. (Ibidem: parag. 16)
Os artefactos eletrográficos, enquanto objetos experimentais metarreflexivos, inscrevem em si mesmos os processos que os geram, bem como as suas caraterísticas formais e de emergência de sentido. Ou seja, codificam a “provocação das caraterísticas do objeto” e o “processo interpretativo” mencionados por Johanna Drucker. Daí a relevância de conceber Eletrografia e Copy Art como formas poéticas onde o gesto performativo tem um lugar central: o gesto que manipula os materiais; a máquina que manipula o gesto que manipula os materiais; o gesto da leitura material dos gestos da máquina e do artista.
De um ponto de vista discursivo, as imagens e os textos apropriados transformam-se sempre noutra coisa. Em alguns casos, porque o gesto de colocá-los num novo contexto fá-los ser outra coisa; noutros casos, muito notório nas obras de César Figueiredo, porque os materiais de base são manipulados e, nesse processo interventivo de subversão de discursos, passam a significar precisamente o oposto daquela que era a sua mensagem no contexto de origem. Como Herberto Helder afirmou no prefácio ao primeiro número dos cadernos da Poesia Experimental, “existe apenas uma lei que abrange tanto o mundo das coisas como o da imaginação.” Essa lei, diz, é “a metamorfose” (Helder, 1964: 5).
3.4. Arquivo(s) múltiplo(s)
O conceito de arquivo revela-se particularmente operativo no contexto da investigação sobre Eletrografia e Copy Art. Em primeiro lugar, porque, ontologicamente, este objeto de estudo liga-se às ferramentas mecânicas de reprodução e, portanto, de criação, registo e disseminação de memória. Nessa continuidade, é necessário entender os âmbitos em que estas obras propõem, precisamente, uma metarreflexão sobre a noção de arquivo e museu imaginário. Em segundo lugar, de um ponto de vista muito prático, porque as obras de Eletrografia e Copy Art têm a sua sede em acervos e arquivos pessoais, os quais devem ser reavivados e estudados, contando, neste capítulo, com a generosidade dos artistas e demais detentores de materiais relacionados com o tema. Em último lugar, o conceito de arquivo é relevante para o projeto atualmente em curso dado que está planeada a publicação eletrónica de uma coleção dedicada à Eletrografia e Copy Art a disponibilizar no Arquivo Digital da Literatura Experimental Portuguesa (po-ex.net).
O Arquivo Digital da PO.EX é coordenado por Rui Torres, na Universidade Fernando Pessoa, e resulta de dois projetos financiados pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. Atualmente, o Arquivo continua em expansão, nomeadamente através da criação da Coleção de Eletrografia e Copy Art (CECA). Esta coleção foi criada recentemente, sendo que, numa primeira fase, agrupou trabalhos já patentes no Arquivo através da adição de tag específica no seu sistema de organização. Numa segunda fase, a CECA será alargada a novos trabalhos que resultem da recolha, digitalização e tratamento de materiais em curso. O objetivo é permitir a reunificação virtual de um conjunto de documentos dispersos por vários arquivos pessoais, criando um lugar privilegiado para o registo, disseminação e interpretação do objeto eletrográfico português na sua relação com o experimentalismo poético desenvolvido em Portugal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A heterogeneidade do objeto eletrográfico e copigráfico contribui para a expansão do conceito de experimentalismo literário e das suas sociabilidades, como julgo ficar comprovado pela narrativa das práticas colaborativas entre autores, pelas suas experiências no domínio da Arte Correio ou pelas exposições internacionais em que os artistas portugueses participam ou organizam.
De igual forma, Eletrografia e Copy Art realizam uma ampliação criativa dos meios que apropriam. Quer as práticas internacionais, quer as portuguesas, não se cingem ao uso da fotocopiadora e papel, alargando o seu campo de ação, materializando-se em instalações, livros de artista, performances, happenings, videoarte ou arte sonora. Embora este artigo se tenha debruçado apenas sobre obras categorizadas como materialidades planográficas, encontra-se em curso uma investigação mais ampla que permitirá relacionar a multimodalidade da Eletrografia e Copy Art com outras formas experimentais inter- e transmediáticas. Julgo também ser interessante notar como mesmo estas obras planográficas recorrem a estratégias conceptuais, procedimentais e estéticas comuns a outras artes – não só estratégias das Artes Plásticas, mas também técnicas menos óbvias como a montagem, do Cinema, ou o sampling, mashup e remixing da Música.
Eletrografia e Copy Art desenvolvem-se, assim, em esferas plurais de ação, num movimento duplo, simultaneamente de expansão e de pertença. De expansão porque estas formas dialogam com os limites, já de si porosos, das poéticas experimentais, através da reformulação dos seus modos de fazer e de dar a ver, sempre a partir da base conquistada por formas experimentais como a Poesia Visual e Concreta. De pertença porque, mesmo extrapolando os seus limites e dialogando com outras artes, em Portugal, é sobretudo debaixo do largo e inclusivo chapéu da Literatura Experimental que Eletrografia e Copy Art acontecem e se tornam presentes como meio para pensar a linguagem, a inscrição e a sociedade.
NOTAS
[1] Existe uma vasta discussão sobre os termos que não cabe documentar neste artigo. Assim, opta-se por referir ambos, tal como deles fizeram uso os praticantes portugueses. Tendo presente que os termos podem ser intercambiáveis, haverá momentos neste texto em que o aparecimento de apenas um termo implica também o outro, assumindo que Eletrografia e Copy Art não são portadoras de caraterísticas distintivas entre si.
[2] Este recorte do objeto de estudo não implica a crença numa noção de nacionalidade ou a desacreditação das sinergias criadas numa rede mais global. A relação com artistas estrangeiros é uma constante na Literatura Experimental portuguesa e é, de facto, um importante catalizador e energia-motriz no caso particular da Eletrografia e Copy Art desenvolvida em/a partir de Portugal.
[3] Publicação coletiva na qual também participam Alberto Pimenta, E. M. de Melo e Castro e Ana Hatherly. A obra foi organizada pelos quatro autores e publicada pela editora & etc, em Lisboa.
[4] Representações digitais de dois exemplares de Filigrama, endereçados a E. M. de Melo e Castro, encontram-se disponíveis no Arquivo Digital da PO.EX. Por se tratar de seis URLs, correspondentes aos trabalhos dos vários autores, em lugar de fornecer os endereços diretos, sugere-se pesquisa no motor dedicado do Arquivo.
[5] A saber: Copy art: Electrographic exhibition (orgs. César Figueiredo, Avelino Rocha, Graça Santos, 1990), Electrografias (orgs. António Nelos e César Figueiredo, 1991), 1ª exposição internacional de arte postal de Matosinhos (orgs. Abílio-José Santos e César Figueiredo, 1993), Copy.Porto portfolio (orgs. Jürgen O. Olbrich e César Figueiredo, 1993) e Expo-Copy 93: Exibição internacional de copigrafias (org. César Figueiredo, 1993).
[6] O termo aqui em uso é emprestado da taxonomia do Arquivo Digital da PO.EX, entendendo por materialidades planográficas o conjunto de “obras bidimensionais apresentadas em superfícies planas e usando diferentes técnicas de inscrição”. A justificação metodológica da taxonomia do Arquivo, elaborada por Rui Torres, Manuel Portela e Maria do Carmo Castelo Branco de Sequeira, pode ser consultada em https://po-ex.net/sobre-o-projecto/referencias/torres-portela-castelobranco-justificacao-metodologica-da-taxonomia-do-arquivo-digital-da-literatura-experimental-portuguesa
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