Texto de Ana Hatherly sobre depoimentos recolhidos de Salette Tavares, com referências a António Aragão, Herberto Helder e Melo e Castro, acerca da participação destes na revista POESIA EXPERIMENTAL I e II. [pdf]
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Descrição > Autor: Tavares, Salette | Título: Poesia gráfica | Data: 1995 | Local
de publicação: Lisboa | Editora: Casa Fernando Pessoa | Número de páginas: 47 p.
Dados da Porbase [Biblioteca Nacional de Portugal] > Salette Tavares : poesia gráfica / Casa Fernando Pessoa ; org. Sallette Brandão, José Brandão | AUTOR(ES): Lisboa. Câmara Municipal. Casa Fernando Pessoa; Brandão, Salete, co-autor; Brandão, José, 1948-, co-autor | PUBLICAÇÃO: Lisboa : C.F.P., 1995 | DESCR. FÍSICA: 47, [1] p. : il. ; 29 cm | DEP. LEGAL: PT — 90426/95 | ASS
NTOS: Tavares, Salette, 1922-1994 — Poesia gráfica — Exposições — [Catálogos] | CDU: 821.134.3-1 Tavares, Salette .09(083.81) ; 061.4(083.81)
Ana Hatherly, “Salette Tavares e a Poesia Experimental”, in Poesia gráfica, pp. 11-15.
Transcrição de SALETTE TAVARES E “A POESIA EXPERIMENTAL” >
Quando em finais de 1974 pedi a Salette Tavares um depoimento sobre a sua participação na POESIA EXPERIMENTAL I e II, nessa altura eu estava a reunir material para escrever uma História da Poesia Experimental Portuguesa, e com esse intuito entrei também em contacto com o António Aragão, o Herberto Helder e o Melo e Castro.
O projecto foi-se modificando e acabou por dar lugar à colectânea que, depois de muitas demoras editoriais, o Melo e Castro e eu publicámos na Moraes em 1981, com o título PO-EX TEXTOS TEÓRICOS E DOCUMENTOS DA POESIA EXPERIMENTAL PORTUGUESA.
Os depoimentos de Salette Tavares, do António Aragão e do Herberto Helder, que me responderam por carta, não chegaram a ser incluídos no volume da PO-EX, tendo ficado inéditos até hoje. Apesar de escritos de uma maneira despreocupada, esses textos têm agora valor histórico, dando importantes informações sobre a génese do Movimento e sobre a dimensão do contributo individual de alguns dos seus mais destacados membros.
Da carta de António Aragão, escrita no Funchal em 16 de Setembro de 1975, considere-se o seguinte fragmento:
Minha Cara Ana Hatherly Recebi a sua carta e apresso-me a responder-lhe. Logo após o meu regresso de Itália onde colaborei em revistas de vanguarda e convivi com poetas da vanguarda italiana, encontrei-me assiduamente com Herberto Helder em Lisboa e, com ele, organizei e dirigi graficamente o I número da Poesia Experimental, publicado em 1964, sendo todos os restantes colaboradores convidados a participar.
O II número da Poesia Experimental foi já realizado com a participação também do Ernesto Melo e Castro, além do Herberto Helder e de mim, sendo os restantes colaboradores igualmente convidados por nós a participar. A Salette aparece simplesmente como convidada. O II volume foi impresso aqui no Funchal tendo eu dirigido a sua apresentação gráfica e consequente trabalho de impressão que me deu água pelas barbas. Note-se porém, esta é a verdade, que no II volume o Ernesto Melo e Castro funciona, conjuntamente comigo, mais como organizador do que o Herberto Helder, que não passa no fundo dum “simples” colaborador. O Ernesto ultrapassou de longe todo um certo apatismo do Helder, que então nele já se manifestava, tornando-se, de facto, o Ernesto um precioso organizador.
Algumas destas informações são corroboradas por Herberto Helder na carta que me escreveu em 1 de Setembro de 1975, onde a certa altura declara:
Quanto ao assunto da POESIA EXPERIMENTAL I, que posso eu dizer? Lembro-me que eu andava às voltas com o Dorfles e o Bense, e estava muito interessado em experiências com computadores, o que não era viável, cá, coisa que fiquei a saber depois de umas conversas com um engenheiro do IBM. Entretanto, o Aragão veio de Roma falando obsessivamente do Umberto Eco. Líamos e discutíamos o que se estava afazer em Itália, sobretudo. Organizámos um volume com textos de nós ambos, que apresentámos à Guimarães Editora. Recusa de publicação. Depois encontrámos um editor mais ou menos pirata que se mostrou disposto a publicar o caderno que, no ínterim, fora sofrendo alterações, com inclusão de mais gente e substituição dos textos iniciais do Aragão e meus. Em seguida, apareceu o Melo e Castro e a Salette Tavares. As discussões alargaram-se. Houve a exposição dos visopoemas na DIVULGAÇÃO. Posteriormente, já concebido no n.° 2 da PE, desinteressei-me do trabalho de grupo, que foi continuado pelos outros.
Numa outra carta, datada de 21 de Outubro de 1977, em que trata de diversos assuntos, Herberto Helder volta a falar da POESIA EXPERIMENTAL:
Vou dizer-lhe: nunca escrevi (e publiquei) qualquer texto através do qual me desvinculasse da Poesia Experimental. (…) Não houve questões parisienses, anos 30, ou catástrofes conjugais, na Poesia Experimental, pelo menos comigo ou de que eu saiba. Lembro-me apenas de que deixei de colaborar com os outros elementos, nas iniciativas posteriores aos começos de 1965 (…) Que quero eu dizer com isto? Que sou avesso aos grupos. Só. De resto, para além dos textos da minha autoria, assinados, só contribuí, para a comunidade experimental, com o título da revista, as citações e parte da antologia do 1.° n.°, e com a designação “Visopoemas” para a exposição na antiga “Divulgação”, hoje Livraria Bertrand, na Estefânia, em Janeiro de 65, suponho. Como vê, muito pouco. Talvez eu nem devesse figurar na história do experimentalismo português. Foi para mim um simples episódio, desportivo, para que fui levado por uma disponibilidade pessoal, na altura. Acho que este género de sucessos deve ser tratado sempre com alguma ironia. Tais coisas nunca são completamente sérias ou graves. Grave é uma dor de dentes que tenho sentido ultimamente.
A carta da Salette Tavares, que aqui transcrevemos integralmente, é um documento importante para o conhecimento da génese do Experimentalismo Português e para o conhecimento de alguns aspectos da obra da escritora.
No que diz respeito à sua colaboração na POESIA EXPERIMENTAL I, Salette recorda, por exemplo, uma conversa com António Ramos Rosa, também colaborador, e que terá veiculado o convite de Herberto Helder. Importantes são também as indicações sobre a génese dos EFES; da famosa ARANHA, que se tornou emblemática da sua produção visual; das BRIN CADEIRAS, etc, bem como as suas queixas a propósito da reacção desfavorável que o Experimentalismo provocou no público português, que iria prolongar-se praticamente até à actualidade.
Quanto à sua colaboração na POESIA EXPERIMENTAL II, além de informações sobre os objectivos que se propôs, são de destacar as queixas sobre as obras suas que se perderam e sobre o modo imperfeito como algumas foram reproduzidas, problema que a iria acompanhar até ao volume final da sua Obra Poética, 1957-1971 (Imprensa Nacional-Casa da Moeda em 1992, Prémio P.E.N. Clube, 1993) como sublinhou Melo e Castro no seu artigo Visões do Espelho Cego, publicado no JL de 25 de Abril de 1993.
Outro aspecto que ressalta dos comentários que Salette faz a algumas das suas obras é a sua particular postura criativa, onde tem lugar preponderante o aspecto lúdico, que ela sempre lucidamente assumiu. Quanto a mim, essa é uma faceta determinante da sua personalidade artística, onde se distinguem, ao lado dum Concretismo bem assimilado, os ecos do Dadaísmo e do Surrealismo e, ainda, as marcas de uma herança barroca, que viria ser uma das vertentes mais produtivas do Experimentalismo brasileiro e português.
A tonalidade dada-surreal de muitas obras de Salette Tavares da época da POESIA EXPERIMENTAL I e II, e mesmo depois, está muito presente na exposição VISOPOEMAS, uma mostra colectiva na Galeria Divulgação, no início de Janeiro 1965, a que se seguiu, no dia 7 do mesmo mês, o happening a que foi dado o nome de CONCERTO E AUDIÇÃO PICTÓRICA, que Salette descreve na sua carta como “um espectáculo, escândalo para muito parvo”, e em que desempenha um papel de grande relevo a sua Ode à Crítica.
Eu não participei nem na Exposição nem no concerto, porque ainda não tinha entrado para o grupo. Nessa altura eu tinha uma coluna semanal no suplemento literário do DIÁRIO POPULAR, onde fazia crítica musical, e foi como repórter/crítico que estive presente no dito CONCERTO, publicando depois a notícia que aqui se reproduz em fac-simile.
Quem me acompanhou nessa audição foi o meu grande amigo Manuel de Lima, escritor surrealista e crítico musical, que esteve sempre ao meu lado, juntamente com Bruno da Ponte, que dirigia nessa altura a Galeria, enquanto o público se manifestava ruidosamente.
O CONCERTO destinava-se a causar sensação, a agitar, e conseguiu plenamente os seus objectivos. O facto de eu o ter descrito como uma manifestação de Neo-Dadaísmo é indicativo do que eu pensava desse que foi, julgo, o primeiro happening português, em que a participação de Salette foi porventura a contribuição mais notável.
No início dos anos 60, vivia-se ainda entre nós um Surrealismo tardio, que Melo e Castro acertadamente definiu como “uma hidra de várias cabeças propondo uma revisão ou um recomeçar da própria ideia de vanguarda, perante o já longínquo Futurismo” (palestra na S.P.A. em 21.2.80).
Quanto ao Dadaísmo, que não se pode dizer que tenha tido a seu tempo verdadeiro impacto no nosso meio, foi de certo modo trazido de novo para a cena pelo Experimentalismo então nascente. A esse respeito, o artigo DADAÍSMO=MUNDIFICAÇÃO, que publiquei no DIÁRIO POPULAR em 25 de Fevereiro de 1965, é representativo, pois começa assim: “Ultimamente o dadaísmo renasceu entre nós. Digo renasceu e bem poderia dizer nasceu, não só porque na verdade não se pode dizer que o dadaísmo tenha morrido como também não me consta que alguma vez se tenha manifestado entre nós com a frequência de ultimamente” E evidente a alusão ao CONCERTO da Galeria Divulgação e mesmo à publicação da POESIA EXPERIMENTAL.
Por outro lado a explosão da música de vanguarda que então se verificava em todo o mundo, e que em Portugal era representada por Jorge Peixinho, desde o início ligado à PO-EX, é outro dado importante a considerar, e os artigos que escrevi em defesa da música de vanguarda dão uma ideia do intenso clima de afirmação das novas tendências que então se verificava, e em que o Experimentalismo poético se inseria (Ver, por exemplo: SEMANA MUSICAL, Escândalo no Tivoli, DIÁRIO POPULAR, 12 de Novembro de 1964 tjohn Cage e Robert Rauschenberg — uma Desigualddade Equivalente, DIÁRIO POPULAR, 24 de Dezembro de 1964).
John Cage foi um compositor muito apreciado pelos Experimentalistas de todo o mundo, e quando ele veio a Portugal juntamente com Merce Cunningham, foi acolhido calorosamente por todos aqueles que se consideravam da vanguarda. A esse respeito é significativa a notícia publicada no Jornal de Letras e Artes de Novembro de 1967, intitulada “John Cage passou perto” em que colaboram Rui Mário Gonçalves, Nelson di Maggio, Mário Cesariny, Ricarte-Dácio, Manuel de Lima e eu própria, notícia acompanhada de uma notável fotografia durante um jantar com Cage e Cunningham. É também notável o texto inédito de John Cage intitulado “Quanto mais vidros, melhor” por ele oferecido ao Jornal de Letras, igualmente inserido nesse número e bastante representativo da particular postura criativa do compositor.
O experimentalismo poético, surge entre nós no início dos anos 60, e que tivera como base inicial o Concretismo euro-brasileiro, inseriu-se naturalmente no movimento geral da arte de vanguarda de então — Experimental, Zen, Pop, Op, etc. — e fazia parte da grande fermentação cultural que se produziu durante essa década em todo o mundo ocidental.
Duma análise atenta da colaboração inserida nos dois cadernos da POESIA EXPERIMENTAL não se pode senão concluir que eles são esteticamente um tanto híbricos, e só depois da publicação desses dois volumes iniciais quando se definiu claramente a directriz que iria seguir o Experimentalismo português, só depois, se veio a verificar que eram os verdadeiros experimentalistas, e quais as bases teóricas que defendiam. Essa definição tornou-se decisiva a partir do momento em que começaram a ser publicados em livros e artigos os textos teóricos básicos, apoiados na Linguística Moderna, na Teoria da Informação, no Estruturalismo, na Semiótica, na Teoria da Poesia Concreta, etc. Basta comparar o happening da Divulgação em 1964, com o happening na Galeria Quadrante, em 1967, quando se fez a apresentação da OPERAÇÃO 1 e 2 para se ver claramente a diferença.
Uma das características mais acentuadas do Experimentalismo é a insistência na afirmação das suas bases teóricas, em que o pendor científico, a consciência política e o culto do lúdico como expressão essencial da criatividade são determinantes. Essas características, que contrariam, entre outras, a tendência onírico-psicologista dos surrealistas, afastou-os da área do Experimentalismo, permitindo que este se definisse cada vez mais claramente. Uma vez bem definidas as bases do seu funcionamento, o grupo dos experimentalistas (se assim se pode chamar), tornou-se muito restrito mas também muito nítido e persistente, acabando por criar um lugar próprio na história da literatura portuguesa contemporânea.
Duma leitura atenta dos princípios que regem o Experimentalismo português facilmente se conclui que o Experimentalismo nada tem a ver com os pressupostos do Surrealismo. Nos seus textos teóricos como nos criativos, os experimentalistas claramente indicam que estão interessados na comunicação pela palavra poética, mas considerando-a como um valor absoluto, substantivo, contrariamente a outras tendências, que se servem da linguagem para outros fins. O Concretismo e o Experimentalismo que se lhe seguiu contemplam a linguagem escrita, e os elementos de que ela se compõe, como uma consistência própria, suficientemente significativa per se, ou seja, como um valor a assumir em toda a sua extensão. Daí a importância da visualidade do texto que, pela habituação, se tinha tornado um dado praticamente invisível.
Os elementos de uma linguagem — os signos como representação de um sistema — são o material com que o poeta trabalha: são o seu campo de experimentação, um lugar onde a expressão e a experiência criativa se fundem ou confundem. A experimentação é um meio para se chegar a ver, para se descobrir, mas o que se descobre é o que se faz, o modo como se faz, e essa é que é a verdadeira experiência criativa. Os experimentalistas estão interessados em conhecer experimentalmente o processo criativo: querem acima de tudo experimentar, ou seja, descobrir pondo à prova todos os elementos ou recursos disponíveis, tradicionalmente usados ou não. Só depois vem o necessário acto de mostrar. Mas também pode acontecer que o acto de mostrar — por exemplo, numa performance — seja o experimento em si.
A espécie de confusão estética que se verifica nos dois únicos números da POESIA EXPERIMENTAL, e que justifica a colaboração heterogénea, é devida à novidade da tendência, que ainda não tinha tempo de se explicar devidamente (fenómeno semelhante ao que ocorreu com a publicação do ORPHEU), e que, por outro lado, fazia apelo ao espírito de subversão, de crítica ao establishment e de gozo lúdico da criatividade, tão tradicionalmente nossos.
Portanto, os dois cadernos da POESIA EXPERIMENTAL, que contêm obras de verdadeiros Experimentalistas e de outros que não o são, são representativos do despertar de um Movimento que só depois viria a definir-se claramente através da prática criativa específica dos seus mais destacados cultores, entre os quais se conta Salette Tavares.
Apesar da publicação do volume da PO-EX em 1981, onde se ofereceram importantes documentos sobre a génese e o desenvolvimento do Experimentalismo português, agora que começam a surgir as primeiras teses académicas sobre o Movimento, começa a tornar-se urgente escrever a sua verdadeira história.
Lisboa, Março de 1995
Ligação permanente > anahatherly_poesiagrafica_salettetavareseapoesiaexperimental_1995.pdf
[Agradecemos a Ana Hatherly a autorização que permitiu disponibilizar este texto no Arquivo Digital da PO.EX]