Texto-Código [Combinatória, Interactividade, Literatura Electrónica]

[ Introdução ]


A PO.EX constitui “um acto de rebeldia contra o status quo [e] um questionar profundo da razão de ser do acto criador e dos moldes em que ele vinha sendo praticado” (Hatherly, 1985: 15). Nesse sentido, “a acção dos seus divulgadores contribuiu para uma atitude de reavaliação e renovação do texto literário, quer do ponto de vista da produção quer do ponto de vista da análise crítica” (Hatherly 1985: 15).

A PO.EX é, por isso, marginal e marginalizada por razões de “ideologia literária” e de “economia do mercado editorial” (Saraiva, 1980: 6). O experimentalismo promove “o desrespeito das leis clássicas, [propondo] a novidade nas técnicas ou nos motivos, a contaminação dos géneros, (…) a complicação estrutural” (Saraiva, 1980: 6). E, também por isso, o marketing literário não o legitima, pois não o consegue compartimentar nos formatos convencionados pelo mercado.


Sendo a poesia experimental caracterizada pelas práticas expressivas que se centram na materialidade significante e nos processos de semiose literária, podemos dizer que a literatura experimental baseada em procedimentos computacionais e informáticos, também designada como literatura electrónica, literatura digital, ou ainda ciberliteratura, envolve, igualmente, um trabalho não-trivial e expressivo que podemos associar à ergodicidade cibertextual.

«Texto Ergódico» é um termo proposto por Espen Aarseth que combina as palavras Ergon (trabalho, obra) e Hodos (percurso, via). Trata-se por isso de configurar uma teoria geral do comportamento textual, ao invés de pensar o cibertexto como uma propriedade exclusiva da informatização. Como explica Aarseth, o cibertexto é uma perspectiva acerca das formas de textualidade. Os textos ergódicos “produzem estruturas verbais, com efeito estético” e são “máquinas de produzir variedade de expressão”.

Ora, se a escrita é uma actividade espacial, então a textualidade ergódica é praticada há tanto tempo como a escrita linear. O livro, interface de conhecimento, permite o acesso aleatório, o comentário (marginalia), a escolha: o códice, nesse sentido, é “tão importante como o computador no desenvolvimento da textualidade não-linear” (Aarseth 67).

No entanto, devemos ter em atenção que a cultura digital é intrinsecamente variável, já que envolve sistemas de processamento de informação que estão em permanente processo de transformação, de abertura e semiose. Não se trata aqui de uma abertura apenas ao nível da ambiguidade textual (como Eco explicou a propósito da música contemporânea de Cage, Boulez, etc.), mas antes uma efectiva codificação das possibilidades de percurso e de participação. E é, ainda, intrinsecamente não-linear (o seu percurso não pré-determinado, pois tem que ser programado) e interactivo (permite a participação, convoca a co-autoria e a colaboração), estando por isso em sintonia com o paradigma dos Novos Média: manipular, participar, personalizar, escolher.

Se o I-Ching, os contos de Borges e Cortazar, os caligramas de Apollinaire e a poesia visual, os livros de artista ou a obra de R. Queneau, são cibertextos em papel, eles são, também, (poderosas) excepções ao paradigma da linearidade que caracteriza o livro, ao contrário dos MUDs, da hiperficção e da literatura generativa, que têm na sua origem essa tessitura elástica do possível.

Pierre Lévy, no seu livro «As tecnologias da inteligência» (1990), fala de um conjunto de princípios do Hipertexto que nos podem ser úteis para começar por mapear estas novas possibilidades (hiper significa estar para além de…): a Metamorfose (o estado de abertura, processo e mutação da rede); a Heterogeneidade (integração multimedial dos elementos mediáticos); a Multiplicidade e encaixe de escalas (a estrutura fractal, i.e., a possibilidade de os nós da rede serem compostos por outras redes de nós, ad infinitum); a Exterioridade (inexistência de uma ordem interna ou unidade orgânica – a indeterminação, como diria John Cage); a Topologia (o labirinto, já que num espaço sem centro tudo acaba por funcionar numa lógica de proximidade e vizinhança, de caminhos e atalhos); a Mobilidade dos centros (a perpétua mobilidade).

Esta conceptualização ecoa a proposta de Deleuze e Guattari, com o seu o conceito de rizoma, estudado no livro Mille plateaux (1980). O rizoma é constituído por elementos permutáveis, nele nada está pré-definido, as ligações são feitas a partir de linhas que podem interligar um ponto a qualquer outro ponto: abolindo a hierarquia).

E se para G. Genette, Hipertexto implica incorporação, derivação e transformação (a partir de um hipotexto), já para Ted Nelson ele é referência, relação, âncora.

Há aqui um debate político que não pode ser menosprezado, já que a retórica industrial do hipertexto (http://) acaba por inibir a própria textualidade digital, naturalizando a sua metamorfose e heterogeneidade, estabilizando a sua indeterminação.

O próprio software, como explica Lev Manovich em «Software Takes Command», aparece como a cola invisível que liga a informação. Bid data is watching you… Tudo é software, tudo depende de software para funcionar. O software torna-se cultural, a cultura torna-se software. Manovich diz que do mesmo modo que a electricidade e o motor de combustão tornaram a sociedade industrial possível, também a sociedade da informação global é activada pelo software.

Paradoxalmente, esse mecanismo subjacente à infraestrutura da cibersociedade, pouca ou nenhuma atenção directa tem recebido. Fala-se de cibercultura, de sociedade da informação, de estudos da Internet, mas não de estudos de software.

A ciberliteratura, como literatura que (ainda) é, constitui uma tentativa de investigar/desnaturalizar o próprio software, obrigando-nos a lidar com as causas em vez dos seus efeitos, remetendo para os programas e as culturas sociais que produzem as saídas que vemos, inocentemente, como interfaces transparentes, nas nossas telas, nos nossos ecrãs.

Como escrita expressiva do próprio código, a ciberliteratura acaba por desfamilizarizar o papel do software na formação da cultura contemporânea, obrigando-nos a entender o modo como as forças culturais, sociais e económicas estão a moldar o desenvolvimento do software em si mesmo. (v. «Poema Google» de Antero de Alda; ou «Terra Google», de Manuel Portela; ou as performances com drones, do Silvestre Pestana).

Digamos (com Manovich), para concluir esta questão, que para entendermos as técnicas contemporâneas de controlo, comunicação, representação, simulação, (…) a nossa análise não pode ficar completa se não considerarmos a camada de software». A nossa arte não será suficientemente efectiva se não integrarmos nela esse tipo de processualidade e consciência.

Este texto-código que permeia as nossas vidas parte também de uma pulverização do signo, que deixa de ser uno. Não há, verdadeiramente, “documentos”, ou “obras”, “mensagens” e até “média”, pelo menos nos termos fixos do século XX: «Em vez de documentos fixos, cujo conteúdo e significado poderia ser determinado através do estudo da sua estrutura completa, agora interagimos com ‘performances’ dinâmicas do software. (…) Performance porque o que experimentamos numa interacção com o computador é construído pelo software em tempo real. Ao contrário das pinturas, das obras de literatura, partituras, filmes, ou edifícios, aqui o crítico não pode simplesmente consultar um ‘arquivo’ único esperando que ele contenha todo o conteúdo do trabalho» (Manovich). Falta, porém, ter consciência disso, já que o que vemos no output é/parece um todo uno.

Texto-código como modularidade. Peças de um conjunto maior.

Ora, onde o utilizador (o «prosumer»…) vê uma unidade, um todo, há, efectivamente, uma construção. Desde logo, este texto-código integra uma semelhança analógica com uma codificação digital (é remediação de convenções culturais existentes e sua representação de acordo com convenções do software). Por isso Katherine Hayles fala de um bilinguismo nos textos electrónicos: eles misturam código e linguagens naturais; envolvem diferentes camadas textuais que devemos compreender. São um palimpsesto.

No entanto, o potencial dos meios informáticos – a estrutura modular, a variabilidade – está aí, à nossa espera. E ela tem como potencial o facto de inverter o paradigma da hierarquia rígida que encontramos no documento único: o computador motiva e legitima a experimentação com os meios, e com os média. Mais: a experimentação está historicamente embebida nos meios computacionais. No entanto, se a cultura moderna, “experimental” e “avant-garde”, era o contrário de uma cultura normalizada e estável, esta oposição desaparece, em grande parte, na cultura do software.

Clarificando este aparente paradoxo: o computador, como metamedium e como máquina universal (Turing), permite representar (e integrar) a maioria dos outros meios de comunicação, ao mesmo tempo que os aumenta com novas propriedades. No entanto, um certo grau de distopia é exigido: ao celebrar a «interactividade» e a «participação», como explica Manovich, o chamado «user-generated content» (conteúdo gerado/criado pelos utilizadores, agora tornados «prosumers»), equacionado como “alternativa” ou como atitude “progressiva”, é largamente motivado pela própria indústria dos produtos electrónicos (câmaras digitais, iPods e tablets, laptops, etc.), e pelas empresas dos chamados «social media» elas próprias (Facebook e Google estão cotados na bolsa). «We are the web – we are teaching the web – the web is us», certamente. Mas a web está a ser feita por nós seguindo templates, modelos, e convenções da indústria do entretenimento. Blogs, tweets, tudo isso tem que ser devorado, invertido.

Podemos então questionar, com Manovich: não estaremos a acentuar o consumo massificado da cultura comercial do século XX, nesse processo de indústria cultural apontada por Theodor Adorno e Max Horkheimer (1944) no seu livro sobre «Enlightenment as Mass Deception», ainda que por uma nova pseudo-progressiva cultura da participação? «Interactivity as Mass Deception»?

Lembre-se que no pólo da oralidade primária, anterior à civilização da escrita (anterior à história, portanto, e à teoria), como explica Pierre Lévy, a memória encontra-se «encarnada em pessoas vivas e atuantes»; já no pólo da escrita (que é em si uma tecnologia, e mais, uma tele-tecnologia…), a memória estava «semi-objetivada no escrito», promovendo a «separação parcial de indivíduo e do saber». E hoje? No pólo infomático-mediático, a «memória social [encontra-e] em permanente transformação, (…) objectivada em dispositivos técnicos»: é o «declínio da verdade e da crítica».

O meio digital e o computador tornam obsoleta a intervenção humana. Ao proporcionarem um «standard» geral da informação (o computador funciona como um alfabeto numa base numérica, substituindo as funções contínuas dos média analógicos por sequências discretas), permitem indexação e processamento de informação, mas este «apagamento da diferença entre os média», como explicou F. Kittler, implica também que «som e imagem, voz e texto reduzidos a efeitos de superfície»: os média são substituídos pela interface, a tradução entre meios apagando o próprio conceito de média.


Pedro Barbosa tem explicado esta transição de um conceito unitário de texto para um paradigma que se caracteriza pelos textos múltiplos e generativos, nos quais existe uma dialéctica entre a virtualidade e a actualidade, entre o código potencial e a sua geração.

Na sua teoria da ciberliteratura, resumida no livro-súmula «A Ciberliteratura. Criação Literária e Computador» (1996), distingue entre computador executivo e computador criativo, configuração que nos ajuda a distinguir entre literatura digitalizada (a que utiliza o computador executivo) e literatura digital, ou ciberliteratura (que utiliza o computador como máquina semiótica).

É importante distinguir ciberliteratura, ou literatura cibernética, de uma literatura digitalizada. A literatura digitalizada, publicada em eBooks, PDFs, e afins, constitui-se a partir de uma remediação de estratégias textuais pré-existentes. Há uma transição do papel para o pixel: o texto, e a sua linguagem própria, mantêm-se inalterados, apenas se alterando o meio, o veículo (escrever na pedra, no papiro ou no papel não altera significativamente as propriedades do texto). A ciberliteratura, pelo contrário, depende de uma construção cibernética (feedback, co-acção homem-máquina, etc.) ou hipermediática a que correspondem novas formas de escrita e de leitura. Neste sentido, interessa ao autor ciberliterário promover as potencialidades gerativas de um algoritmo, que pode ter uma base combinatória, aleatória e interactiva (ou um híbrido destes), em diálogo com o computador, visto como “máquina aberta”.

Um dos aspectos expressivos envolvidos na produção ciberliterária é precisamente a dissolução das fronteiras entre autor e leitor. A palavra escrileitor, proposta por Pedro Barbosa, resulta da fusão das palavras escritor e leitor, em resposta ao papel progressivamente mais activo do leitor na literatura moderna, tornado visível de um modo claro na ciberliteratura.

Pedro Barbosa procurou ainda definir e classificar as possibilidades de utilização do computador como uma máquina semiótica, explicando nesse contexto que há vários tipos de procedimentos possíveis.

Para simplificar, podemos referir que as linhas, géneros ou tendências de criação textual na Literatura Gerada por Computador que nascem com o computador são: Poesia animada por computador, que introduz a temporalidade na textura frequentemente multimediática da escrita em movimento no ecrã; a Literatura generativa, que apresenta ao leitor um campo de leitura virtual constituído por variantes em torno de um modelo; e a Hiperficção, que deriva da narrativa desenvolvida segundo uma estrutura em labirinto em que a intervenção do leitor vai determinar um percurso de leitura único que não esgota a totalidade dos percursos possíveis no campo de leitura.

Trata-se de uma nova noção da obra (de uma nova concepção do Universo, também), que nos obriga a distinguir entre múltiplo e cópia, entre autor e leitor, entre actor e espectador.

Também Manuel Portela explicou que a hiperficção e a hiperpoesia resultam, “não apenas na transposição de géneros e formas textuais conhecidos para o novo meio, mas na produção de géneros e formas especificamente digitais.”


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