Texto de Bruno Ministro sobre homeóstatos, e sobre os homeóstatos de José-Alberto Marques. [Texto. Imagens]
Este texto faz parte de Dossier de Homenagem a José-Alberto Marques. Leia outros textos e releituras em > Homeóstatos de José-Alberto Marques: Uma Homenagem pelo Arquivo Digital da PO.EX.
Homeostasis: The tendency towards a relatively stable equilibrium between interdependent elements, especially as maintained by physiological processes. (in Oxford Dictionary)
Os homeóstatos de José-Alberto Marques são organismos vivos habitados por letras que se combinam e recombinam para construir um sistema complexo de sentido. Os homeóstatos são um excelente exemplo de como cada enunciado textual transporta em si mesmo o seu próprio protocolo de leitura. Os textos obrigam o leitor a seguir regras de leitura particulares, estranhas ou em estranhamento com o protocolo de leitura convencionado. Para produzir sentido, os olhos do leitor têm de navegar no espaço da página, eliminar espaços em branco e juntar conjuntos de letras para formar palavras. Este movimento pode ser feito do topo da página até ao seu limite inferior, mas essa não é a única possibilidade. Há homeóstatos que crescem na página de baixo para cima (homeóstato 2), outros posicionam-se na vertical (homeóstatos 7, 8 e 9) e outro há que cresce de forma simultânea de cima para baixo e de baixo para cima, choca no centro da página e forma a palavra “corpo” (homeóstato 4).
Imagem de Homeóstato 2, José-Alberto Marques, 1965, in Operação 1 (1967). Também publicado em Antologia da Poesia Concreta em Portugal (1973).
Imagem de Homeóstato 4, José-Alberto Marques, 1965, in Operação 1 (1967).
Imagem de Homeóstato 7, José-Alberto Marques, 1965, in Operação 1 (1967).
Imagem de Homeóstato 8, José-Alberto Marques, 1965, in Operação 1 (1967). Também publicado em Antologia da Poesia Concreta em Portugal (1973); Antologia da Poesia Experimental Portuguesa Anos 60 – 80 (2004).
Imagem de Homeóstato 9, José-Alberto Marques, 1965, in Operação 1 (1967). Também publicado em Antologia da Poesia Concreta em Portugal (1973).
Os homeóstatos desenvolvem-se por camadas. Cada homeóstato possui apenas um verso-base, sendo o restante texto composto pelo conjunto de recombinações das várias partículas desse mesmo verso. Assim, a primeira camada de homeóstato 1 é composto pelo seu verso inicial (“sem luz. a noite acontece. ventre escuro. sombra: neve. alguém: o teu grito”) e a segunda camada consiste nos versos que dela derivam (“em a noite tece vento. som eu grito”, “e lua entre som e em teu grito”, e por aí adiante).
Imagem de Homeóstato 1, José-Alberto Marques, 1965, in Operação 1 (1967). Também publicado em Poesia Experimental 2 (1966); Antologia da Poesia Concreta em Portugal (1973); Antologia da Poesia Experimental Portuguesa Anos 60 – 80 (2004).
Isto, por um lado, coloca-nos a dúvida sobre a linearidade ou não linearidade da superfície da página. Por outro, reforçando o primeiro ponto, mostra a língua a ser usada como um sistema algorítmico, aproximando código natural (língua) e código matemático (algoritmo).
Os procedimentos de derivação presentes nos homeóstatos poderiam ser entendidos como um afastamento do objecto inicial (o seu verso-base), mas a verdade é que a combinatória dinâmica que é operada neste sistema aberto contribuiu para uma certa forma de equilíbrio e coesão interna. Todas as palavras novas que surgem, todos os novos sentidos que são desencadeados pela permutação dos materiais, estavam já latentes na formulação basilar. Determinismo? Não, dinamismo. A tendência para a estabilidade do sistema textual de homeóstatos é alterada em determinados momentos. Isto acontece, por exemplo, quando o nome “Célia” irrompe ocupando duas linhas numa subversão da norma de inscrição previamente estabelecida (homeóstato 1), quando o verso-base é recortado em letras soltas e a mancha gráfica se atomiza na página, numa exploração simultaneamente visual e sonora (homeóstato 6), ou quando oralidade e escrita são problematizadas numa dimensão onomatopeica transversal ao verso-base e aos versos que a partir dele se criam (homeóstato 9).
Aqui reside a grande metáfora dos textos de José-Alberto Marques: as múltiplas acções destas letras vivas regem-se pela homeostasia dos sistemas biológicos e ecológicos. Ou será que já não estamos no campo da metáfora e as letras são pura homeostasia no organismo vivo do poema?