Densidade endereçada. Uma leitura de Coisas Reais, de António Barros

Texto escrito e lido por Rui Torres no CAAA, Guimarães, na finissage da exposição COISAS REAIS, de António Barros. [Texto. Imagens. Ligações]


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Rui Torres, Ricardo Areias, António Barros


Em diálogo recente com o autor, e num contexto em que ele me confrontava (que é dizer, me inquietava, e, assim, pacientemente, me ensinava…), com a possível relação da sua obra com as propostas de Kenneth McKenzie Wark sobre uma terceira natureza, encontrei-me dizendo que identificava nas suas operações criativas toda uma densidade endereçada que colocava em causa a condição digital que habitamos, essa digitalidade ofuscante e obtusa, que tem vindo a promover a encriptação do real pelos sistemas fechados da informação e da representação numérica: é dizer: pela sua recusa, pela aguda consciência dessa entidade flutuante que é o virtual.

No fundo, um projecto que convoca a realidade humana, e a Razão que lhe está subjacente.

Densidade, portanto, não como propriedade física das coisas reais (massa/volume), mas antes como a qualidade do que é denso: como opacidade, como dificuldade e como desafio.

Ou ainda: densidade como o oposto de simplicidade, de superficialidade, ou de ligeireza.

Não, porém, como o avesso de Vago, já que é de errâncias – do indefinido e do incerto – que se constroem estes objectos e estes gestos: estes obgestos.

Viagem, aqui, como processo, como abertura para uma procura.

E densidade, ainda, como resultado de uma constante revisitação das obras, já que acumulam-se à volta destes obgestos contextos expositivos distintos, e o autor raramente expõe as suas obras sem as alterar, sem as recontextualizar: refazendo-as. Refazendo-se.

A densidade destas “Coisas_Reais” dificulta, porém, qualquer tentativa de as aproximar com um discurso crítico (“não há meta-linguagem que nos valha”, vi-me obrigado a escrever em relação a “Portugal no seu melhor”…). [In > Portugal, essa vã ilusão].

Fazê-las falar, v(l)ê-las, sequer, obriga-nos, como iluminadamente disse Ernesto de Melo e Castro, a estar “imediatamente na frente de enigmas.” [In > Essa ‘coisidade’ inquietante].

Enigmas que resultam de processos de codificação e recodificação semiótica, mas principalmente de uma condição sociológica flutuante e interventiva em que as obras se mobilizam. Poema como problema – p(r)o(bl)ema -, como diria António Aragão.


Antes de avançar na minha leitura de aproximação (sempre difícil, sempre adiada…) às obras dispostas nesta exposição “Coisas Reais”, interessa situar esta variedade de expressividades: que nos tocam, magoam por vezes, como que suturando feridas, as aporias da condição existencial que vivemos.

E, talvez simplificando, pelo que espero me perdoe o autor, julgo que podemos identificar três aspectos estruturantes.

Por um lado, e não necessariamente em primeiro lugar, filiada na Poesia Experimental Portuguesa, estamos perante uma obra marcadamente intermédia, na qual a dimensão plástica dos objectos é sujeita a operações de renomeação, como explica Manuel Portela na biografia do autor publicada no Arquivo Digital da PO.EX. Pela exploração da visualidade gráfica da palavra, inscrita em superfícies que transformam os objectos de que se apropriam em gestos, encontramos toda “uma tensão entre a semântica social da palavra e a sua função referencial de nomeação”. [In > Biografia de António Barros].

Convocando, assim, o visualismo português (e repare-se que eu não disse “convocado pelo visualismo”, mas “convocando o visualismo português”…), estamos situados num espaço intencionalmente ambíguo onde se sinaliza a dissolução das fronteiras entre géneros literários e visuais, passando o poema-objecto a ser uma entidade híbrida, articulada em processos complexos de intersemiose que invocam vários sistemas de signos (visuais, verbais, cinéticos, performativos).

De qualquer modo, a conceptualização do experimentalismo, por muito rica que seja, não basta para compreender o que temos instalado no CAAA, já que também encontramos, na confluência de linguagens, toda uma dimensão política e ética que importa endereçar.

A obra de Barros, como referiu Jorge Pais de Sousa, é a própria negação do espetáculo [In > PROGESTOS_OBGESTOS, 1972-2012]. Entra aqui, nesse sentido, o seu situacionismo.

A dimensão poelítica destas “Coisas Reais” deriva de uma contaminação entre vida e arte.

De um sentido de permanente vigilância em relação à linguagem, como pediram os poetas concretos brasileiros.

Como se algo epifânico devorasse a nossa, e a própria vida do autor.

Estes obgestos resistem à obsolescência das coisas, no tempo apressado da contemporaneidade.

São, como já referi, o oposto dos gadgets; são anti-tecnológicos, embora nos ajudem a compreender esse sentido primordial de tecnologia implicado no discurso artístico, baseado na técnica e no ofício, entretanto perdidos, ou confundidos. [In > De poemas e obgestos: Oito parágrafos para uma aproximação às artitudes de António Barros].

São, por isso, como referiu também Melo e Castro, obras que partilham de um certo espírito medieval.

A heterogeneidade das obras medievais, como Haroldo de Campos explicou, envolvem-se de uma polifonia: uma forma de transculturação.

O reportório medieval era vivido pelo poeta como integração do social e do privado, isto é, como participação.

Ora, como bem lembram Haroldo de Campos e Maria dos Prazeres Gomes, este “sincretismo primitivo” (a expressão é de Roman Jakobson) inclina a poesia trovadoresca para o ritual, para o dialogismo e para a heteroglossia.

Tal como na obra de António Barros: propondo a inversão das categorias narrativas vigentes, num apelo a essa contínua metamorfose dos textos, como referia Maria João Reynaud a propósito das metamorfoses da escrita na obra Húmus de Raul Brandão: colocando-nos “perante um processo descontínuo de enunciação escrita (…) [e] como um testemunho de «la mobilité de l’écrit» de que nos fala Mallarmé na sua utopia do Livro”. (In > Maria João Reynaud, Metamorfoses da escrita. Húmus, de Raul Brandão. Porto, Campo das Letras, 2001).

Por fim, em terceiro lugar mas não menos relevante, inscreve-se esta obra, e este autor, numa cultura fluxista.

António Barros sempre assumiu as “plurais contaminações” do fluxismo [do “movimento” Fluxus] e, desse modo, imprime uma função interventiva na sociedade: criador, operador, educador.

Por um mundo melhor.


Situados neste triângulo (experimentalismo-situacionismo-fluxismo), podemos agora endereçar essa pretensa densidade das obras de António Barros.

O autor convoca, para esta exposição, Walt Whitman, e por isso não podemos ficar alheios a essa densidade referencial.

De que fala Whitman? Ler: “A verdadeira utilidade da faculdade imaginativa dos tempos modernos é dar vida aos factos, à ciência e às vidas vulgares, dotando-as com o brilho, as glórias e o derradeiro carácter ilustre que é próprio de cada coisa real, e somente das coisas reais. Sem essa essencial vivificação – que só o poeta e outros artistas podem dar – a realidade pareceria incompleta e finalmente a ciência, a democracia e a própria vida pareceriam vãs.”

Dar vida a cada coisa real, nesse sentido, poderá parecer o oposto de um luto. Mas dele depende, como iluminação, jogo de sombras: e terapia, auto-gnose, transcendência.

Como também disse Ralph Waldo Emerson no seu ensaio acerca do poeta [“The Poet”, 1883], o poeta transforma e aperfeiçoa os símbolos: “somos símbolos e habitamos (n)os símbolos… e pelo facto de estarmos enfeitiçados com o uso económico das coisas, não sabemos que elas também são pensamento. O poeta, através de uma percepção intelectual ulterior, dá-lhes um poder que faz com que o seu uso antigo seja esquecido, colocando olhos e língua em cada objecto mudo e inanimado” [Tradução minha].

A arte surge aqui, como também pretendia Roy Ascott, como iniciadora de eventos, formando conceitos sobre a própria existência, inscrita no campo dos comportamentos: em perpétuo estado de transição. Instável.

Uma arte viva e da vida do próprio autor, ou pelo menos das vivenciações que vai formulando.

Como o próprio refere: um “metabolismo constante”.

Lembremos a este propósito que McKenzie Wark define uma terceira natureza, ou “telesthesia”, construída artificialmente pelo mito da informação e das teletecnologias.

Ao invés de entendermos e operarmos a máquina localmente, internamente, ela aparece como um dispositivo transparente, fácil e simples de utilizar (isto é, não denso), mas cujo funcionamento verdadeiramente ignoramos.

Como na crítica à máquina negra, feita por Vilém Flusser no seu ensaio sobre a fotografia, também António Barros identifica, aqui e agora, uma “realidade nova e profundamente inquietante como obstrutiva do livre pensamento gerador”. Uma realidade que urge transformar/transfigurar.

Para Barros, informação é oportunidade para “inFormar o outro”.

Ora, o que hoje verificamos é o contrário disto: vivemos uma hipoestasia informativa, uma diminuição de sensibilidade, ao contrário da convulsão e da inquietação que essa inFormação deveria gerar.

Somos, mais uma vez, escravos, iludidos com as flores da libertação que a rede, essa entidade metamórfica que também nos vigia os passos, vai oferecendo. Como subprodutos do entretenimento.

Uma tal ditadura da informação resulta, para o autor, como “um incentivo a que cada um se demita de questionar”.

Dar sentido à vida, neste contexto, é necessariamente retomar o próprio real nessa condição enunciada por Whitman e por Emerson.

E é necessariamente avançar com propostas concretas: de desautomatização da escrita e da linguagem (pela poesia experimental), de estranhamento da nossa condição de objectos numa sociedade do espectáculo (pelo situacionismo), e de desvio a operar por anti-gramáticas que evidenciam a ausência de fronteira entre arte e vida (como no fluxismo).

Haverá aqui, portanto, esse desafio do autor para reprogramar a Palavra, a Palavra “Coisa”, gerando novos sentidos, utopicamente transformando essa terceira natureza numa natureza outra, onde, como refere, “(só) as «coisas reais» residam.”

Negro, portanto, é este mundo (basta ler os jornais).

Mas luminoso, e denso, também.

Celeste Cerqueira refere-se a uma “matéria escura” na obra de Barros, argumentando que ela “subverte (…) a memória dos próprios objectos representados”, e, nesse sentido, “o negro não é oposição à luz. É sim a outra parte do mesmo desejo”. [In > Com um vestido preto, eu nunca me comprometo].

A obra de António Barros é, por tudo isto, um laboratório de investigação social, endereçando o presente, situando-se num futuro imaginado: o do vago, sempre no devir do vago.

Como o próprio refere, o “Processo_Progesto [surge então] como realidade endémica”, isto é, como gesto e comportamento, procurando o autor verificar e experimentar o modo como eles são contaminados e contaminam a própria “condição lusitana”.


“Medo_Vaso Infinito” é um Progesto que enuncia, sem medo, o medo que se vive (em Portugal, de Portugal para o mundo, dentro de cada um).

“Medo_Vaso infinito”, 2014, Coimbra.

O medo que leva à ex_patriação, viagem forçada, exílio.

O medo como densidade resultante do abandono, como morte simbólica.

Inscreve-se nesta obra um poema: “Rente ao veludo vulvar/ há uma lâmina que não corta/ uma agonia navegante/ um vaso infinito/ medo de um sentido vago.”

Do abandono terá que ser colhida (colher) essa ferida aberta, maternidade de uma nova esperança: o sentido do Vago.

Obra de António Barros como Procura; e, claro, como Razão Fluxus: Arte é Vida e Vida é Arte. Procura por uma razão para viver.


Na Artitude “Obt_uso – óbito uso”, pergunta Barros: “De que serve um povo que elege a obtusidade?”.

“Obt_uso – óbito uso”, 2012-2014, Coimbra [Artitude: De que serve um povo que elege a obtusidade?].

Autoflagelação e suicídio, é certo, são aqui convocados metonimicamente, mas apenas como gesto Performativo. Como rito, como exorcismo.

A densidade desse ciclista que repete o gesto suicida até à exaustão, dele esperando, não já o exílio, mas um possível espelho onde possamos re-encontrar-nos.

Um portal de luz que nos aguardasse.

Como em Helder: “A bicicleta pela lua dentro – mãe, mãe -/ ouvi dizer toda a neve./ (…) Que hei-de fazer senão sonhar ao contrário.”


Em “Da Lucidez Perigosa”, a partir de Clarice Lispector, deparamos com a densidade do íntimo, do não revelado.

“Da Lucidez Perigosa”, 2014, Lisboa [à memória de João Nascimento].

A ilegibilidade como condição da rasura.

Em “A Descoberta do Mundo”, Lispector ecoa ainda e também nessa “lucidez vazia”, “vendo claramente o vazio”, reagindo a essa “nossa diária e permanente acomodação resignada à irrealidade – essa clareza de realidade.”…

Ocultada, como num palimpsesto, surge-nos aqui a escrita como glitch: como anti-sistema de notação que põe em crise a própria linguagem. Densidade do ilegível.


O mesmo, de certa forma, em “DePur(o)Ar”: o sentido vago de uma densidade espiritual, reinventando o zen.

“DePur(o)Ar”, 2014, Paris [para Augusta Vilalobos] | V(l)er tb > DePur(o)Ar

Densidade oculta que se opõe ao vazio.


Feito a partir de “Portugal no seu melhor”, aqui revisitado como “Portugal no seu melhor sob um vaso cavalgante”, também esse objecto_livro dedicado a Jorge Lima Barreto, comprometido com o sociológico, e que nos conduz a uma densa tristeza, endereça a dor pelo abandono dos que desistem de viver, cansados de um país em “desolado alvoroço”.

“Portugal no seu melhor sob um vaso cavalgante”, 2014, Vinhais, Bienal JLB [à memória de Jorge Lima Barreto] | V(l)er tb > Portugal no seu melhor

Desvivendo esse Portugal, porém, re-edifica-o António Barros como país imaginário e identitário.


De lucidez ainda se faz “Dos passos sem volta”, naturalmente em diálogo intertextual com os “Passos em Volta” de Herberto Helder.

“Dos passos sem volta”, 2014, Coimbra [num diálogo com Herberto Helder].

A ocultação como defesa, o abandono intencional como possibilidade de “SALVAguardaR a magia”, como refere o autor. Ou ainda: um ex_patriamento para dentro; uma viagem interior.


Em “Lama_Memórias”, surge a Alma, essa entidade não densa, num jogo com a espessura e fluidez da Lama.

“Lama_Memórias”, 2010-2014, Funchal-Coimbra [Obgesto: aL(a)ma].

Memória de um Luto, luto por essa Densidade trágica do 20 de fevereiro de 2010, na ilha da Madeira.

Como diz o autor, “O objecto vivenciado, vivenciável”.

Portanto, também aqui, o obgesto, numa relação com a memória: releitura.


Outra revisitação opera-se em “Sandales_Mal de Mer”, inicialmente endereçando um náufrago da emigração clandestina.

“Sandales_Mal de Mer”, 2006-2014, Limbé-Coimbra [à memória de Frantz Fanon] | V(l)er tb > Sandales_Mal de Mer

Densidade, agora, derivada do percurso, já que o caminho faz-se caminhando.

Como percurso, este reinventar os objectos, os meios, os processos: em direcção ao Vago.


Já “Oratória” transcodifica e reposiciona, de um modo acutilante, esse ícone da cidade de Coimbra, cidade eleita pelo autor para habitar.

“Oratória”, 2012-2014, Funchal [Projecto: What is Watt? ; Obgesto: à memória de Túlia Saldanha] | Ler tb > Guardar a Alma, Túlia Saldanha 35 Anos Depois [Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências, #49, Lisboa]

A Santa, apropriada na sua iconografia quase pagã, banalizada no comércio, reside, em “Coisas Reais”, sobre um ferro de engomar.

Uma oração outra, uma terapia.

Convocando os mass média, convulsionando-os, sinaliza-se aqui uma inovadora hibridização do situacionismo com a cultura fluxista.


E termina (ou inicia?) esta exposição com “Bruma”.

Síntese de processos, circularidade.

“Bruma”, 2010-2014, Coimbra [Artitude: No fundo do poço procurava o corpo da filha que não nasceu].

O nevoeiro, aqui convocado na sua espessura gasosa, adensa o mistério, compromete-se com a incerteza.

“Bruma” acaba por concretizar essa outra “terceira natureza”, pela amargura: “No fundo do poço procurava o corpo da filha que não nasceu.”


Retomando o início desta viagem: voltar às “Coisas Reais” porque o real está refém de uma terceira natureza que instrumentalizou a informação.

As “Coisas Reais” não cedem à simplicidade, nem à ligeireza.

São densidade endereçada porque, intencionalmente complexas, originais, insurgem-se contra as expectativas dos seus leitores, promovendo um efeito de estranhamento em relação ao próprio real.

Desautomatizando a percepção ligeira e superficial das coisas, a arte de António Barros supera esse “método algébrico de raciocínio” (Chklovsky), situando-se, por isso, nos antípodas da economia de inteligência com que nos ameaçam.

“Coisas reais” são densidade endereçada para nos inquietar.

Uma obra para tudo podermos recomeçar.