«A Essência dos Sentidos» de Fernando Aguiar [Recensão crítica]

Texto de Bruno Ministro sobre A Essência dos Sentidos | The Essence of the Senses, de Fernando Aguiar. [Texto. Ligação]


[Este texto foi também publicado em inglês no Electronic Literature Directory, parceiro institucional do Po-ex.net]


Publicado em 2001, A Essência dos Sentidos | The Essence of the Senses é um livro da autoria de Fernando Aguiar que se apresenta como registo fotográfico de mais de 86 performances realizadas pelo poeta entre 1983 e 1999. Para além da documentação visual das performances, instalações, pinturas e colagens ao vivo, fazem também parte deste livro vários fragmentos de textos críticos sobre a obra de Fernando Aguiar. Estas citações surgem sob a forma de pequenos excertos, sendo algumas das passagens da autoria de Egídio Álvaro, Ana Hatherly, Giancarlo Cavallo, Jorge Lima Barreto, Alberto Pimenta, R. Ballester Añon, Emilio Morandi, Enzo Minarelli, Chévere, Enrico Mascelloni, Johanna Drucker, Hugo Pontes, entre outros.

Figuram ainda no livro cinco textos ensaísticos escritos por Fernando Aguiar sobre os temas da arte da performance e da intervenção poética. Publicados em catálogos e, posteriormente, em jornais culturais e revistas de arte, encontram-se aqui reunidos: “Performance: A Intervenção Viva” (1984), “Performance: A Essência dos Sentidos” (1985), “A In(ter)venção Poética” (1987), “Formas da Performance” (1986) e “Globalização & Interacção” (1999), comunicação apresentada no Simpósio Internacional Localization & Globalization in Art da 4th Sharjah International Arts Biennial, Sharjah, Emiratos Árabes Unidos.

Estes ensaios abordam a problemática do hibridismo disciplinar e intermedialidade na arte contemporânea, fazendo a ligação a outros campos do saber como a comunicação e a semiótica. Nos textos de Aguiar encontramos a procura da definição da performance enquanto objecto artístico. Na perspectiva do artista – na esteira de alguns autores dos estudos da performance, área então emergente – a performance tem como eixos principais: o corpo (tido como instrumento de escrita), o espaço e o tempo (suportes efémeros de inscrição viva) e a participação do público (concebida como parte integrante da obra na relação interactiva que estabelece com ela, com o performer e com os objectos que constituem uma dada intervenção poética).

À semelhança do que acontece com o texto de introdução assinado por Fernando Aguiar (p. 5-6), cada um dos ensaios vem acompanhado por uma versão em inglês lado a lado com o original em português. Esta é uma das provas do carácter internacional do percurso do poeta e performer.

No Arquivo Digital da PO.EX cada um dos ensaios surge numa página dedicada, à excepção do ensaio experimental “Formas de Performance”. O link directo para os textos é fornecido no início de cada uma das secções estruturantes da remediação do livro. Assim, a representação digital do livro mantém-se fiel à sua estrutura física, permitindo ainda a indexação dos ensaios de Aguiar ao corpus de textos teóricos disponíveis no Arquivo.

As fotografias presentes em A Essência dos Sentidos permitem perceber o profuso trabalho performativo desenvolvido por Fernando Aguiar a partir dos anos 1980. Aguiar começa a sua actividade como poeta experimental e visual em 1972, vindo a publicar o seu primeiro livro de poemas em 1974, Poemas + ou – Histo(é)ricos. Mas é em 1983 que se lança pela primeira vez no campo da performance poética, com a intervenção “Escrevo o que está dentro de mim”, apresentada no III Festival Internacional de Arte Viva em Almada (Portugal). Podemos encontrar o registo fotográfico dessa performance logo no início de A Essência dos Sentidos (p. 11). O livro desenrola-se depois duma forma que, não sendo pautada por um critério rigorosamente cronológico, vai acompanhando a evolução da prática performativa e estética de Aguiar nos caminhos que o autor lhe deu.

No trajectória que vai das primeiras performances até às últimas documentadas no livro, é possível entrever a ligação dos pressupostos teóricos apresentados por Fernando Aguiar nos seus ensaios à sua prática efectiva. Um dos apontamentos que interessa aqui fazer tem a ver com a noção do corpo enquanto elemento central nas intervenções poéticas: por vezes surge como elo de ligação entre os elementos que constituem a performance, outras vezes surge como suporte de inscrição da própria escrita. Um excelente exemplo deste último tipo é a performance “Poetical Installation” (p. 102), apresentada no 4º Festival Internacional de Performance Art, que teve lugar em Hiroshima em 1997. Nela o corpo de Nenad Bogdanovic serve de superfície à afixação, por parte de Fernando Aguiar, de letras impressas em material autocolante, produzindo uma instalação poética viva, na qual o meio respira.

A acção é uma constante e o movimento do corpo e dos objectos é trabalhado enquanto elemento significativo. Veja-se a performance “Writings” (pp. 93-95), realizada em 1997, na qual o autor traz para o palco vários objectos do quotidiano (maçãs, spray, copo de vinho, sino, velas, entre outros), recontextualizando o seu uso num soneto experimental.

Dois grandes destaques há a fazer. Por um lado, há que referir precisamente a apropriação que Fernando Aguiar faz da estrutura do soneto tradicional ao usar essa forma literária clássica como esqueleto de várias das suas peças performativas. Esta estratégia é também muito marcada na obra visual do artista. Em segundo lugar, num livro que se assume como uma espécie de antologia fotográfica das performances de Fernando Aguiar, salta à vista o letrismo dos seus cenários, dos objectos e das acções que os interliga. Na poética de Aguiar não é a palavra que é central, mas sim a letra. A presença de letras de várias dimensões e de múltiplas cores, construídas em cartão, em PVC ou material autocolante, é uma constante. Numa dada performance, as letras podem construir palavras no solo, numa outra são atiradas ao ar ou arremessadas ao público, numa outra ainda são coladas na roupa ou na parede e o performer pinta a superfície com tinta sobre elas ou deixa escorrer a tinta pela parede até que esta chegue às letras. Estamos perante uma experimentação dinâmica da natureza plástica da língua e da linguagem.

Sem contar com os casos de descentralização radical da verbalidade em que a letra é um significante por si mesma, neste livro estão documentadas acções poéticas nas quais é possível reconhecer palavras, não só do português, mas também do espanhol e do inglês, deixando patente, uma vez mais, o quão variados são os contextos de actuação de Fernando Aguiar. Também as colaborações com outros artistas são diversas. Para além de Nenad Bogdanovic, encontramos em A Essência dos Sentidos o registo de obras pensadas a várias mãos, nomeadamente com Alberto Pimenta, Enzo Minarelli, Rui Zink e Ruggero Maggi.

A Essência dos Sentidos é, assim, um livro fundamental para conhecer e entender o percurso de Fernando Aguiar no domínio da performance e da intervenção poética. Embora o suporte papel não permita fazer o devido registo da dimensão sonora das suas performances, o impacto visual das intervenções de Aguiar encontra-se bem patente no livro. Os ensaios e excertos críticos de terceiros não devem ser entendidos como pequenos extras, uma vez que adquirem extrema relevância para a compreensão do trabalho que o artista desenvolveu nas décadas de 1980 e 1990. Nas palavras do próprio autor, “A Essência dos Sentidos regista um percurso de procura, de experimentação e de reflexão teórica, no qual as letras representam um fio condutor, e onde os vários conceitos como o tempo, o espaço, o movimento, o volume, a cor, o som e a diversidade de materiais e objectos potencializam a exploração sonora/vocal/verbal e visual da poética, relacionando intimamente a palavra com as artes visuais contemporâneas.” (p. 6) Ao fazê-lo, são também os caminhos da literatura experimental portuguesa que ficam registados na história das práticas ergódicas dos finais do século XX.


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