Texto de Manuel Portela, comissário do Ciclo «Ana Hatherly: Anagramas da Escrita», Festival Silêncio. [Texto]
O Ciclo «Ana Hatherly: Anagramas da Escrita», com curadoria do poeta, tradutor e ensaísta Manuel Portela, celebra a obra da autora enquanto reflecte sobre as possibilidades materiais e conceptuais da palavra. Entendendo a criação como ato lúdico de descoberta e de experimentação, a obra de Ana Hatherly interpela-nos através da inscrição reiterada de inúmeros gestos, atos, signos e formas da escrita. As iniciativas deste ciclo de programação constituem um testemunho dessa interpelação. Integrado no Festival Silêncio 2016, pretende celebrar e dar a conhecer a obra da autora. Fá-lo a partir de uma noção multiforme de escrita, que interroga a nossa relação com os signos. Entendendo a criação como ato lúdico de descoberta e de experimentação que conduz a um leque infinito de formas e sentidos, a obra de Ana Hatherly interpela-nos através da inscrição reiterada de inúmeros gestos, atos, signos e formas da escrita.
Mais info @ http://festivalsilencio.com/ana-hatherly/
A mão inteligente
«De toda a obra de Ana Hatherly – poesia, ficção, ensaio, tradução, performance, cinema e artes plásticas – se poderia dizer que manifesta o movimento inteligente da mão. O desejo profundo do artista é entregar-se à inteligência da mão, a esse sistema cognitivo expandido, apenas parcialmente consciente, que o seu corpo explora na relação com a matéria. Com a matéria da experiência do mundo e com a matéria dos signos com que tenta dizer a experiência do mundo. Na mútua imbricação da mão e da escrita, a matéria do mundo e a matéria dos signos podem encontrar-se. Através das inscrições da mão, da mecânica fina dos seus movimentos musculares, o sujeito torna-se capaz de enfrentar a linguagem. De inventar-se através do gesto impensado da mão. No traço quase originário – quase fonte da linguagem e quase fonte da poesia – emerge o desenho da escrita. É nessa forja, onde a forma surge a partir do traço da mão, que a sua obra poética e pictórica se situa. Uma e outra parecem nunca abandonar o momento inicial da criação em que o branco e o negro se constituem mutuamente. Ao inscrever-se gestual e gestalticamente na superfície do papel, a mão interroga o enigma da escrita. Da escrita que, escrevendo-se, me escreve. A inteligência autocaligráfica da mão dá-nos testemunho da transição entre legível e ilegível, entre visível e invisível. Vemos a palavra tomar forma. Ouvimo-la. Vemo-nos a ler. “O que é a escrita?”, “O que é a palavra?”, “O que é a leitura?”, perguntam as inscrições iterativamente. A mão sabe sempre mais do que eu. E no excesso significante e silencioso do traço, emerge também o sujeito escondido na escrita. Escondido na pura potencialidade do traço como desejo de ser e de inventar ser.»
Manuel Portela, Curador, 5 de Agosto de 2015.